Debates
27 de outubro de 2020

Mario Vargas Llosa: ‘Só a democracia nos levará à prosperidade’

“Com a democracia, podemos escolher entre a pobreza ou a prosperidade, que só é conquistada com liberdade nos campos social, político, econômico e cultural”, disse o escritor peruano neste debate.

A corrupção e o populismo estão intimamente ligados na América Latina e, embora nossas democracias sejam imperfeitas, o caminho democrático é o único que pode levar à redução da desigualdade social e à prosperidade econômica. Esta foi a principal mensagem desta conversa online com o escritor peruano Mario Vargas Llosa, da qual participaram a escritora Rosiska Darcy, o embaixador Marcos Azambuja, o jornalista Merval Pereira, o presidente do CEBRI,  José Pio Borges, e Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC. As duas instituições promoveram o encontro.

“A corrupção é uma herança que vem de longe e infesta a maioria dos países do continente. Nada desmoraliza tanto uma sociedade, e não há democracia que resista a ela. É preciso unir forças para enfrentá-la, mas sempre por meio de uma democracia ativa e instituições que se renovem”, disse o autor de cerca de 50 livros (ficção, não ficção e teatro), entre eles Conversa no Catedral (1969), Tia Júlia e o Escrevinhador (1971) e A Guerra do Fim do Mundo (1981), este último sobre a Guerra de Canudos.

Segundo o palestrante, “mesmo nossas democracias imperfeitas representam um progresso diante das ditaduras militares que marcaram os séculos 19 e 20, e das guerrilhas inspiradas em Cuba e no comunismo que aterrorizaram alguns de nossos países na segunda metade do século passado. Felizmente, pouco sobra disso. Temos apenas Cuba, Venezuela e Nicarágua, que são caricaturas do que um dia foram os regimes comunistas.”

Quando estudante de Direito e Literatura na Universidade Nacional de San Marcos (Lima), Vargas Llosa participou da política estudantil e era simpatizante do socialismo. Já reconhecido como escritor, apoiou a Revolução Cubana (1959), mas alguns anos depois rompeu com o regime de Fidel Castro devido à repressão política e às violações aos direitos humanos. Com o tempo, tornou-se um dos principais intelectuais liberais da atualidade.

“É verdade que a maioria das democracias latino-americanas são imperfeitas, devido à corrupção e à desigualdade social, entre outros problemas, mas elas podem se corrigir e melhorar gradualmente. Com a democracia, podemos escolher entre a pobreza ou a prosperidade, que só é conquistada com liberdade nos campos social, político, econômico e cultural”, afirmou o autor de O Chamado da Tribo (Editora Objetiva, 2018), coleção de ensaios sobre os grandes pensadores liberais da história, inspirado em Rumo à Estação Finlândia, de Edmund Wilson (publicado originalmente em 1940), que apresenta a história do pensamento revolucionário e o nascimento do socialismo.

‘Se fosse chileno, teria votado a favor de uma nova Constituição’

“Após o retorno do peronismo na Argentina (2019), a vitória do movimento de Evo Morales na Bolívia e o resultado do referendo por uma nova Constituição no Chile (ambos em 2020), podemos dizer que o pêndulo está retornando ao campo da esquerda na região?”, perguntou Merval Pereira, colunista de O Globo. 

“É lamentável que os argentinos tenham optado por trazer de volta o peronismo, cujos sucessivos governos marcados pela demagogia e pela corrupção levaram um país próspero à ruína. Também lamento que os bolivianos tenham escolhido o candidato do MAS (Movimento ao Socialismo), pois durante o governo Morales a Bolívia se alinhou às ditaduras de Cuba, Venezuela e Nicarágua”, disse o palestrante.

“Já o Chile é um caso diferente”, continuou. “Se eu fosse chileno, também teria votado por uma nova Constituição, pois a atual é obra do general Augusto Pinochet (ditador que governou o país com mãos de ferro de 1973 a 1990). Nenhum liberal que se preze pode apoiar ditaduras, nenhuma delas.”

Segundo Vargas Llosa, o Chile prosperou nas últimas três décadas (desde o fim do regime Pinochet) como resultado de um consenso entre coalizões de centro-esquerda e centro-direita que, revezando-se no poder, comprometeram-se com a democracia, a economia de mercado e a inserção internacional do Chile. “Essa aliança possibilitou que a pobreza extrema fosse praticamente eliminada e muitos chilenos ascenderam à classe média. De uns anos para cá esse processo parece ter batido em um teto, o que provocou grande frustração e resultou nos grandes protestos do ano passado. Espero que o processo constituinte seja conduzido de forma a preservar os avanços do passado recente e permita à sociedade chilena recuperar o dinamismo e o caminho do progresso”, disse.

Como exemplo positivo na região, ele citou o Uruguai: “É um país pequeno (cerca de 3,5 milhões de habitantes), mas que respeita a legalidade e não é complacente com a corrupção. Assim como a Costa Rica, é um exemplo para os demais países latino-americanos.”

‘Educação é o único caminho para uma sociedade mais igualitária’ 

Segundo Vargas Llosa, o caminho para enfrentar a desigualdade social é investir em sistemas públicos de ensino de alto nível, comparáveis ao oferecido por escolas privadas: “A única maneira de construir uma sociedade igualitária e desenvolvida é possibilitar que todas as crianças tenham oportunidades iguais na educação.”

“A França conseguiu isso e muitas pessoas humildes chegaram a posições de destaque. Também já houve na Argentina, que tinha um dos melhores modelos educacionais do mundo no início do século 20, infelizmente destruído pelo populismo peronista. Por que é tão difícil priorizar a educação na América Latina?”, perguntou.

“Nós, liberais, somos a favor das diferenças salariais, com base no mérito profissional, mas o ponto de partida tem de ser igual para todos, e o que garante isso é principalmente a educação pública de qualidade”, afirmou.

‘Ditadores querem controlar a realidade, mas a literatura resiste’ 

“Não vejo hoje mais sentido nessa dicotomia esquerda-direita, mas sim no eixo eficiência-ineficiência. A agenda do século 21 tem a ver com ciência, tecnologia, cultura. Nossas ideias estão desatualizadas? Estamos perdendo o barco?”, perguntou Marcos Azambuja, ex-embaixador do Brasil em Paris. 

“Em nosso tempo, a cultura se estendeu muito, mas perdeu qualidade e impacto. Nunca se publicaram tantos livros, nunca houve tantos museus e tanto conteúdo gratuito na internet. Ao mesmo tempo, a cultura — e quando falo de cultura me refiro à criação e ao intercâmbio de ideias — tem influência cada vez mais minoritária. Vivemos um tempo de imagens e, diante da enorme pressão que elas exercem especialmente entre os mais jovens, as ideias tendem a perder força. Este é um grande perigo para a democracia”, respondeu o escritor.

“O sr. é membro de minha família secreta de escritores. Seus personagens me marcaram e me transmitiram valores. No seu livro A verdade das mentiras (1990), o sr. define a literatura como uma forma de utopia, que nasce de uma relação com o mundo sentida como inconclusa, e a descreve como um sonho lúcido. É esse poder mágico da literatura que faz com que todos os autoritários tenham como denominador comum o ódio aos escritores?”, perguntou Rosiska Darcy, membra da Academia Brasileira de Letras.

“Através da literatura, expressamos nosso descontentamento com o mundo e a vida real, pois a realidade é insuficiente para o que queremos imaginar, sonhar, desejar. Os livros são um testemunho dessa insatisfação que nos habita e, graças a eles, a vida está em permanente mudança e é objeto de progresso. Os ditadores almejam controlar absolutamente a realidade, e a literatura os impede. Por essa resistência, os verdadeiros escritores são tão perseguidos pelos autocratas”, disse o palestrante.

‘Se não tivesse sido candidato, não teria escrito alguns dos livros que escrevi’

“Como a experiência política de se candidatar à Presidência do Peru afetou sua literatura?”, perguntou o mediador Sergio Fausto. Em 1990, o já célebre escritor foi candidato a presidente do Peru com um programa de governo liberal, apoiado por uma coalizão de centro-direita. Na época, o país vivia uma hiperinflação e o Sendero Luminoso (guerrilha de inspiração maoísta) estava no auge de sua atividade terrorista. Favorito durante toda a campanha, perdeu no segundo turno para o quase desconhecido Alberto Fujimori. No livro Peixe na Água (1993), Vargas Llosa faz um relato detalhado daquela campanha presidencial e dá sua versão para as causas da derrota na reta final.

“Minha vocação sempre foi a literatura. No final dos anos 1980, o então presidente Alan García (em seu primeiro mandato) decidiu nacionalizar todos os bancos peruanos. Havia uma parte significativa da sociedade contrária e iniciamos uma campanha, que teve êxito. Surgiu então a ideia de dar continuidade ao projeto de um Peru liberal por meio de minha candidatura. Fui empurrado a aceitá-la. Durante três anos me afastei totalmente da literatura e percorri todo o país. Não sei de que maneira essa experiência afetou minha escrita, mas, se não tivesse participado da política, não teria escrito alguns dos livros que publiquei posteriormente, como A Festa do Bode (sobre o ditador dominicano Rafael Leónidas Trujillo, publicado em 2000)”, disse.

“Quando jovem, fui admirador do escritor francês Jean-Paul Sartre (1905-1980). Ele nos dizia que literatura é ação, e que palavras são fatos. Mais tarde, me afastei das ideias de Sartre, identificado com o socialismo. Mas o sentimento de escritor engajado, que combate as mentiras, tem consciência social e é a favor da liberdade, segue presente em mim. Boa parte da literatura latino-americana busca exercer esse realismo crítico, que, creio, trato de praticar desde os meus primeiros livros até hoje”, concluiu Vargas Llosa.

Assista à íntegra da conversa com Vargas Llosa 

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.