Debates
01 de novembro de 2017

Macron frente à ‘epidemia’ do nacionalismo e do populismo

“A vitória de Macron significa o fim do populismo na França e seu enfraquecimento na Europa? Infelizmente não. Existe um caldo de cultura para que o populismo e o nacionalismo prosperem”, falou o historiador Marc Lazar.

“Não é só a economia, mas a identidade! Muitos europeus votam em candidatos nacionalistas e populistas principalmente por temerem os imigrantes.”

Dominique Reynié, cientista político, é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris 

“A árvore Macron não vai impedir que a floresta populista e nacionalista continue a crescer e a se espalhar pelo continente.”

Marc Lazar, historiador, leciona na mesma instituição acima, conhecida como Science Pos

A eleição do centrista Emmanuel Macron, com apenas 39 anos de idade, para a presidência da França em maio deste ano impediu que um dos principais países europeus e uma das seis maiores economias do planeta, símbolo mundial da democracia e da liberdade, se tornasse um bastião do nacionalismo xenófobo e do populismo, assim como evitou o desmoronamento da União Europeia. Porém, o velho continente vive uma “epidemia política” que não vai desaparecer rapidamente, com consequências imprevisíveis para a Europa e o mundo.

“Se a França tivesse caído, todo o sistema europeu teria desmoronado junto. Isto foi evitado, mas nos últimos anos o populismo e o nacionalismo vêm se instalando como grande força política na Europa, tendência que tem todos os ingredientes para continuar”, disse o cientista político Dominique Reynié, professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), neste evento na Fundação FHC.

“A vitória de Macron significa o fim do populismo na França e seu enfraquecimento na Europa? Infelizmente não. Existe um caldo de cultura para que o populismo e o nacionalismo prosperem”, concordou Marc Lazar, que leciona história e sociologia política na mesma instituição, uma das mais respeitadas da França.

O que temem os europeus?

Segundo Dominique Reynié, não há (por enquanto) uma onda conservadora que ameace o estilo de vida europeu, que, apesar das diferenças entre os países, é caracterizado pela liberalidade nos costumes e pelo direito de cada um viver como quiser, desde que respeite a lei. O que há, de acordo com o palestrante, é uma reação diante do medo de uma dupla degradação.

De um lado, os europeus, principalmente os integrantes da classe média que vivem (ou viviam) de trabalho assalariado na indústria ou da agricultura, têm a sensação de que seu bem-estar econômico está sob ameaça e que seus filhos não desfrutarão da mesma qualidade de vida à qual eles estão acostumados.

Segundo dados coletados pela pesquisa “Para onde vai a democracia?”, com base em 22 mil entrevistas em 26 países, realizadas entre fevereiro a março de 2017, e publicada pela Fundação para a Inovação Política (Fondapol), think tank dirigido por Reynié, 58% dos cidadãos europeus (UE) acreditam que seus descendentes terão um futuro pior em seus próprios países do que a geração adulta atual (veja os resultados na seção Conteúdos Relacionados).

Além disso, o aumento da imigração, composta tanto por imigrantes ilegais vindos dos países mais pobres da África como por refugiados da guerra na Síria e de outros países em conflito, é visto por muitos como uma ameaça ao estilo de vida e à cultura europeias, de origem cristã (ainda que muitos europeus não sejam praticantes e os Estados sejam em sua maioria laicos). Segundo a pesquisa da Fondapol, 62% dos cidadãos da UE consideram que seu estilo de vida está ameaçado (nos EUA, são 69%). Para 58% dos europeus, o islamismo é uma ameaça (56%, entre os norte-americanos).

“O islã, cada vez mais presente nas ruas das cidades europeias, das maiores às menores, põe em xeque o sentimento íntimo de quem antes se sentia protegido em casa e, agora, precisa lidar com um multiculturalismo étnico ao qual não estava acostumado”, disse Reynié. “A Europa vive hoje um certo chauvinismo social, o desejo íntimo de defender tanto um patrimônio material como imaterial. Queremos perpetuar nossa maneira de viver, nos fecharmos em uma espécie de ‘socialismo para brancos’. Pode ser que, no futuro, esse fenômeno conduza a uma revolução conservadora (dos costumes), mas por enquanto não é isso que está acontecendo.”

No Leste Europeu (que permaneceu muitas décadas isolado devido ao comunismo), o percentual de entrevistados que veem o Islã como ameaça chega a 63% e, na Europa Ocidental, a 54%. Para apenas 21% dos europeus orientais, a imigração é positiva para seu país, enquanto 44% dos ocidentais têm essa opinião.

Merkel enfraquecida

As dificuldades que a chanceler alemã, Angela Merkel, enfrenta para formar um governo majoritário, após obter uma vitória menor do que a esperada nas urnas neste ano, confirmam a tese de que a Europa vive um período de incertezas. Nas eleições federais de 24 de setembro, o partido AfD (Alternativa para a Alemanha, com um discurso anti-imigração, islamofóbico e contrário à União Europeia) ficou em terceiro lugar, com 12,9% dos votos, e terá quase 90 cadeiras no Bundestag. É a primeira vez desde a derrota de Hitler e o final da Segunda Guerra Mundial que a extrema direita estará representada no Parlamento alemão.

Merkel, cujo partido, a CDU (democratas cristãos, centro direita), obteve 33% dos votos, negocia até aqui sem sucesso uma coalizão com outros partidos situados da esquerda ao centro do espectro político. Caso não consiga formar uma maioria parlamentar, a chanceler, em seu quarto mandato, ameaça convocar novas eleições, mas existe o temor de que, se houver uma nova votação, a extrema direita possa se fortalecer ainda mais.

França isolada?

Após a grande vitória de Macron, que obteve 66% dos votos no segundo turno contra a ultradireitista Marine Le Pen (Frente Nacional), diversos analistas previram que França e Alemanha juntariam forças para renovar e aprofundar a integração europeia. Afinal, Merkel sempre foi uma defensora da UE, e Macron venceu a eleição com um discurso pró-integração. Entretanto, o revés (relativo) de Merkel nas urnas frustrou essa expectativa, ao menos por enquanto.

“Com o enfraquecimento de Merkel, intensifica-se a corrida entre a progressão do populismo e do nacionalismo, de um lado, e a construção de uma Europa que garanta um futuro de paz e prosperidade a todos os europeus”, disse Reynié. Segundo o cientista político, uma Europa dominada por governos nacionalistas xenófobos “tende a se fechar para o mundo, que então não será mais o mesmo”.

Partidos de direita nacionalistas já governam Hungria e Polônia e, em outubro, um bilionário populista e eurocético venceu eleição na República Tcheca e pode se tornar o próximo premiê do país, embora não tenha conquistado maioria.

Visão apocalíptica

Diante do impasse na Alemanha, recai principalmente sobre os ombros de Macron o desafio de liderar o processo de fortalecimento e renovação da União Europeia, começando com reformas em seu próprio país, para torná-lo mais dinâmico economicamente e capaz de oferecer respostas adequadas às expectativas e necessidades dos cidadãos, descontentes com os rumos da política, o presente e preocupados com o futuro.

No primeiro turno da eleição presidencial, cerca de 50% dos franceses que compareceram às urnas (78% do eleitorado) votaram em candidatos críticos ao sistema político e econômico e à UE. Os mais bem votados entre os ‘antissistema’ foram a direitista Marine Le Pen, que obteve 21,3% dos votos válidos no primeiro turno (34% no segundo), e o esquerdista Jean-Luc Mélenchon, com 19,6% dos votos. “O que os dois tinham em comum? Além de uma visão negativa da integração europeia e da globalização em geral, ambos adotaram um discurso de ódio às elites, buscando personificar o papel do líder que encarna as verdadeiras aspirações do povo”, disse Marc Lazar.

“Eles apresentaram uma visão apocalíptica da Europa e do mundo, em que questões complexas foram reduzidas a uma dicotomia em que só existe sim e não, bem e mal, nós e eles. Ao criar uma nova linguagem, inclusive corporal, colocaram os demais partidos na defensiva”, continuou o historiador.

Embora membro da elite intelectual e política francesa (foi ministro das Finanças de 2014 a 2016), o próprio Macron (que obteve 24% dos votos no primeiro turno) se apresentou como um candidato independente, com críticas à classe política tradicional do país. Os principais derrotados na França foram justamente os dois partidos que dominaram a política no país por décadas: o Socialista (que, por ser governo até recentemente, sofreu o maior desgaste, obtendo apenas 6% dos votos) e o Republicano (20% dos votos, terceiro colocado).

“O resultado eleitoral na França comprova que algo novo e muito importante está acontecendo na Europa, pois vem se repetindo em sucessivas eleições no continente. Algo que está mudando as próprias condições da democracia na Europa”, afirmou Lazar. Segundo a pesquisa apresentada, 55% dos entrevistados na Europa acham que a democracia funciona mal em seus países (nos EUA, 54% têm a mesma opinião).

Duplo desafio

Macron tem, portanto, um duplo desafio. Internamente, precisa avançar na solução dos problemas econômicos e sociais da França, entre os quais o desemprego e a imigração, que para muitas pessoas são temas conectados entre si. Necessita também encontrar uma forma mais eficaz de combater o terrorismo islâmico, cujos ataques mais recentes foram praticados por (ou tiveram o envolvimento de) cidadãos franceses ou europeus descendentes de famílias originárias da África, do Oriente Médio ou da Ásia que migraram para a França ou outros países europeus, algumas delas há décadas. Filhos de imigrantes, embora nascidos em solo europeu, se radicalizaram nos últimos anos e passaram a integrar células terroristas na Europa. Representam uma parcela ínfima, mas as consequências que provocam são enormes. Para 61% dos europeus, a imigração é prejudicial à economia de seu país e, para 56%, ela eleva o risco de terrorismo.

No plano externo, o jovem presidente francês precisa ter sucesso em reduzir a crescente resistência a uma maior integração europeia, que inclui temas complexos  como um sistema de defesa e segurança unificado, uma política externa e de imigração comum e a sobrevivência do tratado que permite a livre circulação de pessoas no espaço europeu (Acordo de Schengen), entre outros.

“Macron vai conseguir provar que o Estado é capaz de exprimir e realizar os desejos e as necessidades das pessoas?”, perguntou Dominique Reynié. “Antes de tudo, ele precisa recuperar a confiança dos franceses na política e, assim, dar sua contribuição para que ela não se torne monopólio dos populistas na Europa, o que representaria uma ameaça à democracia liberal, como já está acontecendo em países como Hungria e Polônia (governados pela direita mais radical).”

“Se Macron tiver êxito em seu governo, poderá reduzir a força dos populistas em seu país e consolidar o papel da França como líder da Europa (preferencialmente ao lado da Alemanha). Mas, se fracassar, o que virá em seu lugar?”, disse o cientista político. O mandato presidencial francês é de cinco anos, com direito a uma reeleição consecutiva. Em 2019, haverá eleições para o Parlamento da UE, que servirão de termômetro para medir a temperatura da febre populista e nacionalista no velho continente. 

Início promissor

Passados pouco mais de seis meses de sua eleição, Macron obteve vitórias importantes. Em junho, seu partido, o ‘En Marche!’, fundado pouco mais de um ano antes, venceu as eleições legislativas (realizadas após a presidencial) e conquistou 308 das 577 cadeiras na Assembleia Nacional Francesa. A bancada governista é formada metade por homens, metade por mulheres, em sua maioria representantes da sociedade civil em vez dos políticos tradicionais.

Com apoio de outros partidos, Macron chega a ter uma base de 350 deputados, o que lhe dá condições de aprovar reformas polêmicas como a trabalhista, assinada em setembro, que flexibilizou as leis do trabalho, apesar dos protestos de rua organizados pelos sindicatos, fortes no país.

Ponto cego

Mas, de acordo com o cientista político francês, a principal incógnita em relação ao mandatário francês é mesmo o tema da imigração. “Este é um ponto cego de seu programa de governo, não se sabe o que ele realmente pensa sobre o assunto”, disse Reynié.

Aliás, a questão da imigração também foi um dos motivos do desgaste eleitoral sofrido por Angela Merkel, que no auge da crise migratória europeia (2015), defendeu que a Alemanha deveria abrir as portas e dar um tratamento humanitário aos refugiados de guerras, como determina a Convenção da ONU sobre o Estatuto dos Refugiados. Inicialmente, parte da população alemã a apoiou, mas pouco a pouco cresceu a resistência diante do fluxo de imigrantes do Oriente Médio rumo à Alemanha, e Merkel foi forçada a estabelecer limites mais rígidos.

O gráfico abaixo mostra uma muralha de rejeição aos refugiados nos países em torno da Alemanha.

“De maneira geral, os governos europeus, tanto de direita como de esquerda, não construíram políticas públicas adequadas para lidar com a imigração. É como se os políticos (mais tradicionais) não quisessem tocar no problema. Macron não foi diferente, embora o tema tenha sido crucial nas últimas eleições, quando foi monopolizado pelos candidatos populistas. Como o presidente lidará com a questão?”, disse.

Euro resiliente

Já o euro, apesar das previsões de que estaria com os dias contados, feitas durante a crise da dívida de alguns países da UE entre 2009 e 2012, se consolida como um esteio da Europa, segundo Reynié. E explica, em parte, a derrota da candidata da Frente Nacional, na França, e de outros políticos europeus críticos à moeda única em eleições recentes (apesar do progressivo fortalecimento do populismo na região). Em março, o premiê holandês Mark Rutte (liberal de direita) acabou vencendo o candidato anti-UE Geert Wilders, que chegou a liderar as pesquisas, na primeira derrota do populismo xenófobo na Europa após o Brexit.

Durante a campanha, Le Pen chegou a dizer que o euro representava uma “facada nas costas” dos franceses e ameaçou convocar um referendo sobre a manutenção da moeda, se eleita. Mas, entre o primeiro e o segundo turno, mudou de opinião e disse que o euro poderia conviver com um franco ressuscitado, despertando críticas.

“Marine Le Pen não perdeu por ser má candidata ou por ameaçar a Quinta República (regime instituído pela atual Constituição francesa sob a liderança de De Gaulle, em vigor desde 1958). Foi derrotada porque os europeus, no final das contas, se sentem mais apegados ao euro do que aos princípios que levaram à criação da UE. O euro representa hoje um ponto de resistência e uma proteção (contra aventuras populistas). A verdadeira capital democrática da Europa não é Bruxelas (onde fica a Comissão Europeia, braço executivo da UE), mas Frankfurt (sede do Banco Central Europeu). É triste, mas é assim”, disse.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.