Internet e Mobilizações Sociais: transformações do espaço público e da sociedade civil
Neste debate, três especialistas discutem o que a internet pode fazer pela mobilização política. E o que ela não pode fazer.
Redes sociais como o Facebook são o lugar adequado para se discutir (e fazer) política? Por que o debate político online é dominado por ataques pessoais, denúncias sem fundamento e teorias conspiratórias? De que forma devemos utilizar a internet para aprimorar e aprofundar a democracia? Como compreender novos fenômenos como o partido espanhol Podemos, que surgiu das manifestações de rua no auge da crise econômica europeia?
Questões extremamente atuais como as colocadas acima estiveram no centro do seminário Internet e Mobilizações Sociais: Transformações do Espaço Público e da Sociedade Civil, que marcou o lançamento do e-book com o mesmo nome, publicado pela Fundação FHC), com apoio da Fundação Konrad Adenauer. O livro é fruto do projeto Plataforma Democrática (www.plataformademocratica.org).
Ao abrir o debate, o sociólogo Bernardo Sorj, codiretor da Plataforma Democrática e autor de um dos três textos que integram o e-book, apresentou brevemente o texto de sua autoria, assim como os trabalhos dos pesquisadores Danilo Martuccelli e Nicolás Somma. Em seu trabalho, Sorj busca identificar as mudanças ocorridas nas sociedades brasileira e latino-americana entre a segunda metade do século 20 e os primeiros 15 anos do século 21. Segundo Bernardo, três grandes ondas marcaram esse período.
A primeira onda de organização da sociedade civil teve como motor sindicatos de trabalhadores e associações de assalariados e funcionários públicos, assim como grêmios e organizações estudantis, entre outros grupos representativos de importantes setores socioeconômicos.
A segunda onda surgiu com o advento das ONGs (Organizações Não-Governamentais) nos anos 1970, que levantaram bandeiras como a defesa dos direitos humanos e a preservação do meio ambiente, entre outras.
A terceira onda, que vivenciamos agora, é a do ciberativismo, sobre a qual ainda se fazem mais perguntas do que afirmações. “Devemos parar de pensar o mundo online, do ponto de vista de comunicação política, como sendo totalmente separado do mundo off-line. São subsistemas de uma nova realidade”, afirmou o diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais em sua fala de abertura.
Para Bernardo, o impacto real se dá quando o mundo online consegue chegar à rua e cria uma nova realidade: “A internet é hoje um instrumento de mobilização muito importante, mas são os grupos organizados na rua que vão ter capacidade ou não de transformar as demandas em algo concreto.”
Sorj também alertou para a polarização entre um grupo que celebra a internet como sendo algo democrático, igualitário, transparente e sem estruturas hierárquicas frente a uma forma antiga, burocrática e piramidal e, de outro lado, uma visão mais pessimista, que vê a internet, onde cada um fica no seu mundo e só lê aquilo que lhe interessa, como o fim da vida pública tal como a conhecemos desde a Grécia antiga.
“Ambas visões são verdadeiras. É verdade que a internet democratiza o acesso à informação e à cultura e facilita o intercâmbio direto entre as pessoas, para o bem e para o mal. Mas o tipo de informação que circula na internet, curta, rápida, aqui e agora, traz a perspectiva de destruição do mundo tal qual o conhecíamos”, disse Sorj.
O que há de novo no ciberativismo
“Quando uma nova onda (de ativismo social) surge, as outras não desaparecem. Elas se sobrepõem e influenciam umas as outras. Mas, em uma perspectiva de longa duração, o mais interessante é que cada nova onda tende a substituir a capacidade de produção de utopias das ondas anteriores”, ressaltou o sociólogo brasileiro de origem uruguaia.
Para o sociólogo Rudá Ricci, autor dos livros Nas Ruas: a outra política que emergiu em 2013 e 2014: a eleição que não queria acabar (Editora Letramento), a terceira onda traz a promessa de superar as antecessoras. “Se vai lograr essa intenção, veremos nos próximos anos, mas ela não dialoga com as anteriores e promete superá-las”, afirmou o sociólogo.
Esse ciberativismo ganhou importância nos últimos anos com fenômenos como a Primavera Árabe e as grandes manifestações ocorridas em diversos países, entre eles os EUA, a Turquia e o Brasil, nos últimos dois anos. Organizadas principalmente via redes sociais, as manifestações foram caracterizadas por uma agenda difusa que surpreendeu políticos, cientistas sociais, jornalistas e profissionais de comunicação em geral.
Para Rudá, membro do Observatório Internacional da Democracia Participativa, essas mobilizações de rua foram como “enxames de abelhas que vêm e vão sem ninguém saber de onde e para onde”. “Quando os jornalistas e nós, pesquisadores, tentávamos entender qual era a pauta, percebemos que não havia uma única demanda, mas uma miríade delas. Também não havia lideranças definidas. Os protestos surgiram a partir de um novo tipo de organização lacunar, distinta da organização das igrejas, do Estado, dos partidos, da estrutura militar e das ONGs, com a qual estávamos acostumados no século 20”, explicou.
Rudá lembra que naquele ano os protestos eram dirigidos a todos os partidos políticos e governos, assim como ao sistema econômico e financeiro em geral, diferentemente dos ocorridos em diversas cidades brasileiras neste primeiro semestre de 2015, contra os escândalos de corrupção envolvendo o governo do PT e pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. “O poder de contestação de todo o sistema foi muito mais avassalador em 2013, e todas as lideranças políticas ficaram muito assustadas. Agora só uma força política está com medo”, afirmou.
O advogado, professor e pesquisador Ronaldo Lemos, especialista em temas como tecnologia, mídia e propriedade intelectual, lembrou recentes declarações do cientista político e jornalista Ivan Krastev, autor do livro Democracy Disrupted – The Politics of Global Protest, que analisou os protestos ocorridos em mais de 70 países nos últimos anos. Segundo afirmou Krastev em recente encontro no Rio, nossas sociedades viveram durante décadas “com causas que possuíam pouca mobilização e agora experimentam um momento de mobilizações sem causas”.
“Após ler o texto de Bernardo Sorj publicado no livro que está sendo lançado hoje, pensei que uma saída seria unir o modelo das ONGs, de causas sem mobilização, com o dos ‘hacktivistas’, de mobilização sem causa. Quem conseguir fazer essa costura terá nas mãos algo muito poderoso”, brincou Ronaldo.
A política nas redes sociais
Os três debatedores foram unânimes em criticar a falta de qualidade da informação política disponível na internet brasileira atualmente, assim como o baixo nível do debate que acontece no mundo virtual. “A capacidade de geração de mal-estar na internet é enorme, mas é muito difícil a partir disso elaborar agendas organizadas e defensáveis para o bem comum”, disse Bernardo Sorj.
Segundo Rudá Ricci, quem discute política nas redes sociais está “em busca de versões e não dos fatos”. “Os jovens usam as redes sociais não para falar com o mundo, mas com sua comunidade virtual. Elas estimulam emocionalmente os ativistas, mas não organizam”, disse.
Tomando como exemplo a aprovação em 2014 do Marco Civil da Internet pelo Congresso Nacional, após um processo de consultas públicas que durou sete anos e no qual a rede teve papel fundamental, Ronaldo Lemos, eleito um dos Jovens Líderes Globais pelo Fórum Econômico Mundial, destacou a importância de se compreender melhor o que a internet pode fazer pela mobilização política e o que ela não pode fazer.
“A internet pode ter um papel cada vez mais impactante na democracia, mas estamos depositando expectativas em plataformas erradas, que não foram pensadas para fazer isso”, explicou. Para Ronaldo, o uso do Facebook como espaço de debate político durante a campanha eleitoral de 2014 resultou em uma “verdadeira briga de gangues e muita frustração”. “É um erro achar que a ‘timeline’ é um reflexo da opinião pública. Ela foi criada para manter as pessoas o maior tempo possível no Facebook e maximizar os lucros da empresa dona do Facebook. Não é uma plataforma para debater política”, afirmou Lemos.
Ao definir o debate político nas redes sociais, Ronaldo utilizou a sigla SMART: simplista, mecanicista, a-histórico, reacionário e tautológico. “Onde estão todas as discussões que ocorreram durante a eleição no ano passado? É impossível resgatá-las e reconstruir aquele debate”, disse.
Com o objetivo de contribuir com um “jeito construtivo de fazer políticas públicas”, o Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITSrio.org), fundado e dirigido por Ronaldo Lemos, acaba de lançar o projeto Plataforma Brasil (plataformabrasil.org.br), cuja primeira proposta é debater a reforma política do século 21.
“Queremos unir a academia, os think tanks, os governos, o setor privado, as ONGs, os movimentos sociais e os novos grupos que surgiram nos últimos anos em um debate consistente, que aconteça tanto no mundo virtual quanto presencial e possa ser preservado e reconstruído”, disse Lemos.
Para Ronaldo, os políticos estão debatendo a reforma política com base em ideias ultrapassadas, esquecendo-se de que estamos em um outro mundo. “Quais são as ferramentas que podemos utilizar para aprofundar a participação democrática do cidadão? Nos EUA, se uma petição pela internet reunir cem mil assinaturas, a Casa Branca é obrigada a responder. A tecnologia não vai desaparecer e deve se tornar parte da democracia”, afirmou.
“No Brasil há 270 milhões de celulares e o acesso à internet será em breve universal. Não aproveitar este momento para fazer a reforma política do século 21 é uma grande perda de oportunidade”, disse Lemos.
Para Bernardo Sorj, coordenador do livro Internet e Mobilizações Sociais, a juventude que domina o mundo online assumiu um enorme poder no imaginário cultural neste primeiro quarto de século 21, mas esse fenômeno ainda não se traduziu em conquista do poder político. “Como demonstra Danilo Martuccelli em seu trabalho, há um enorme distanciamento entre a dimensão cultural predominante no mundo online e o sistema político, que segue dominado pelos velhos. Reduzir esse fosso é o grande desafio”, concluiu o sociólogo.
Rudá Ricci citou o trabalho de Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Internet e Cultura da Universidade Federal do Espírito Santo (LABIC/UFES), cujas pesquisas sobre a linguagem utilizada pelos partidos tradicionais nas redes sociais revelam um total descompasso com aquela utilizada pelos jovens e os grupos mais identificados com eles.
“Os partidos só falam bem de si e mal do adversário. E os jovens odeiam isso. Enquanto isso a montagem do diálogo nas redes sociais é interativa. Alguém joga uma ideia e a conclusão vai sendo construída no percurso. Veja o exemplo do grupo Anônimos durante as manifestações de 2013. Eles simplesmente publicavam uma foto e perguntavam ‘O que você acha disso?’. Imagine se partido político e sindicalista têm paciência para isso. Eles são donos da verdade”, disse Rudá.
A experiência do Podemos na Espanha
Em seguida, o sociólogo falou sobre a experiência do movimento Podemos (www.podemos.info), criado na Espanha em janeiro de 2014 e que, desde então e sempre lançando mãos de recursos digitais inovadores, conseguiu tirar proveito do enorme descontentamento provocado pela crise econômica e o alto desemprego no país nos últimos anos para crescer e se tornar uma alternativa de poder real. Segundo Rudá, um diferencial explica o rápido sucesso do novo partido.
“Eles perceberam que a mobilização social e política no século 21 precisa de três camadas. A primeira é a internet, que mobiliza mas não forma. A segunda é a ruas, que mostra a força política e, sem a qual, a internet vira um jogo de ódio. Mas tem um terceiro campo, que no Brasil ainda não temos, que é o uso da televisão, com o programa La Tuerka”, explicou.
O programa La Tuerka é uma espécie de Porta dos Fundos da política, que, embora exibido por um canal de TV pequeno, se tornou um fenômeno na Espanha impulsionado pelas redes sociais. “O Podemos percebeu que a TV tem um timing que permite ao espectador assistir, ouvir e refletir, algo que as redes sociais e a rua não têm. Com La Tuerka e o bom uso das redes sociais, o Podemos conseguiu reunir 50 mil pessoas para abraçar o Parlamento espanhol e mandar os políticos pra casa”, contou Rudá. “Naquele momento eles deram o salto para o campo institucional.”
Ronaldo Lemos completou dizendo que, além do programa de cunho político e humorístico La Tuerka, o Podemos lançou mão de mais duas ferramentas digitais inovadoras: o Plaza Podemos, um espaço virtual de encontro e debate dos membros e simpatizantes do Podemos hospedado no Reddit, e o Appgree, um aplicativo web e móvel que permite que um grande número de pessoas converse de forma clara, objetiva e transparente, tornando mais fácil a tomada conjunta de decisões.
“Com o Appgree, o Podemos montou os chamados ‘Círculos’, onde acontecem os grandes debates que resultam em diretrizes para o partido. Ao utilizar essas três ferramentas digitais poderosas e inovadoras, o Podemos em pouco mais de um ano se tornou umas das principais forças políticas na Espanha e, segundo pesquisas de opinião, desponta como favorito para as próximas eleições gerais no país, que devem acontecer até o final deste ano”, afirmou Lemos.
Ronaldo alertou, no entanto, para críticas que têm surgido na Espanha nos últimos meses de que o Podemos estaria abrindo mão da horizontalidade e se parecendo cada vez mais com um partido tradicional, com a criação de uma estrutura de poder burocrática e personalista em torno de seu fundador, Pablo Iglesias Turrión. Pablo Iglesias foi eleito deputado no Parlamento Europeu pelo Podemos em 2014, é secretário-geral do novo partido e deve ser seu candidato a primeiro-ministro da Espanha nas próximas eleições.
“De fato, o Plaza Podemos está meio parado e o uso do AppGree e as atividades dos Círculos perderam a força. Se ficar comprovado que o Podemos deixou de ser horizontal e se tornou vertical, será um caso de cooptação, de uso dessa estrutura de horizontalidade para gerar uma expectativa de representação diferente e democrática, para logo em seguida, assim que você sobe a escada, chutar a escada para que aquele mecanismo pare de funcionar”, afirmou Lemos.
Para Ronaldo, a trajetória do Podemos é um laboratório fascinante do que será a política do século 21: “Esta história ainda não terminou. Por isso é tão importante acompanhar de perto a campanha e o resultado das eleições gerais na Espanha, assim como o que acontecerá depois”, disse.
O Estado é a bola da vez?
O professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro concluiu sua participação alertando para algo que ele considera a principal novidade em gestação neste admirável mundo novo: a iminente dirupção (tradução do termo ‘disruption’) do papel histórico do Estado, provocada pelas novas tecnologias, assim como já aconteceu com o jornalismo impresso, a música e determinadas áreas da indústria e do setor de serviços com a migração dos centros de manufatura e da mão-de-obra para países em desenvolvimento.
“O próximo ator que vai sofrer uma dirupção pesada é o Estado. Ele terá sua capacidade de tributação e de regulação abalada pelas novas tecnologias, como já está acontecendo no caso do aplicativo Uber. Um dos desafios da política será como lidar com esse xeque-mate do protagonismo do Estado como ator social”, afirmou Lemos.
O debate aconteceu em 29 de maio em São Paulo e foi mediado pelo superintentendente-executivo da Fundação FHC, Sergio Fausto.
Otávio Dias é jornalista especializado em política internacional. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do portal estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post.