Indivíduos ou cidadãos? O desrespeito às regras sanitárias no combate à Covid-19 no Brasil
Webinar com Fernando Gabeira e Eduardo Giannetti para entendermos como a pandemia nos levou à beira do abismo.
A pandemia mundial do novo coronavírus se abateu sobre o Brasil como uma “tempestade perfeita” (perfect storm): uma sociedade historicamente desigual, políticas públicas ineficazes, um governo negacionista em Brasília, estratégias de culpabilização, falta de liderança, corrupção, individualismo selvagem. Compreender esse cenário não é uma tarefa simples, mas o momento pode funcionar como uma experiência catalisadora, que ilumina linhas de tensão latentes na sociedade brasileira.
A Fundação FHC convidou dois brasileiros acostumados a analisar o Brasil sob uma perspectiva multidisciplinar e com ampla experiência no espaço público — o jornalista, escritor e ex-deputado federal Fernando Gabeira e o economista, cientista social, professor e escritor Eduardo Giannetti — para nos ajudar a entender como e porquê a pandemia de Covid-19 nos levou à beira do abismo.
“O Brasil tem características objetivas que não nos favorecem em uma situação de emergência coletiva — é um país profundamente desigual, e milhões de brasileiros não têm poupança ou recursos para atravessar um período de dificuldades como o que estamos vivendo. Há grande informalidade, principalmente em atividades que demandam contato pessoal, algo prejudicial nessa fase em que o isolamento social é muito importante. Além disso, há o nosso principal déficit secular, a baixa escolarização”, introduziu Giannetti, autor de vários livros, entre eles “O Elogio do Vira Lata e Outros Ensaios” (Editora Companhia das Letras, 2018) e “Trópicos Utópicos” (Editora Companhia das Letras, 2016).
Além dessa realidade estrutural, o economista também mencionou uma característica da psicologia social brasileira, que chamou de “individualismo selvagem”. Segundo ele, por uma série de razões históricas e culturais, o brasileiro não teria constituído, ao que parece, um espírito de pertencimento e de coletividade. A exemplo de comparação, Giannetti citou o caso do Vietnã, país do Sudeste Asiático que obteve resultados surpreendentes no enfrentamento do novo coronavírus, adotando uma quarentena extremamente rigorosa, com as comunidades exercendo vigilância interna e controlando uns aos outros.
Individualismo e falhas de liderança
Durante uma pandemia, o individualismo atuaria como um agravante para o quadro já instalado. “O problema, aqui, é de falácia de composição. O que cada um percebe como melhor para si, quando se generaliza, torna-se uma catástrofe para todos”, explicou Giannetti, que se doutorou na Universidade de Cambridge (Reino Unido) e foi professor da FEA-USP por mais de uma década. Para sair desse padrão de “salve-se quem puder”, seria necessário que existisse uma capacidade de internalização de regras pré-estabelecidas, ou que emergisse uma liderança capaz de orientar a população. “Precisaríamos ou da autoridade das regras ou de uma liderança crível. No Brasil, o grau de internalização de regras é baixo, e nossos governantes, em especial na esfera federal, são omissos, não oferecendo qualquer tipo de coordenação necessária para uma situação como essa”, afirmou.
Não qualquer tipo de autoridade, observou Gabeira. “Uma autoridade, para se impor no Brasil, precisa ser reconhecida como amiga”, disse ele, que quando jovem participou da luta armada contra a ditadura militar, exilou-se na Europa e lá se tornou ativista ambiental. O ex-deputado endossou as críticas ao governo Bolsonaro: “Já não tínhamos experiência de mobilização nacional e não temos uma liderança nacional, e sim um governo que nega a pandemia, que a vê como um empecilho para planos particulares de reeleição. A autoridade nacional, cujo papel seria o de articular a mobilização do país em uma guerra contra o vírus, é a mesma que diz que tudo não passa de ficção.”
“Lição de moral” não é eficaz
O autor de livros como “O que é isso Companheiro?” (Companhia das Letras, 1979), “Entradas e Bandeiras” (Editora Codecri, 1981) e “O crepúsculo do Macho” (Editora Nova Fronteira, 1982) também vê falhas na reação ao negacionismo de Bolsonaro. Em vez de insistir na acusação à irresponsabilidade individual dos que não obedecem às regras sanitárias, teria sido mais produtivo mobilizar sentimentos de solidariedade e co-responsabilidade no combate ao novo coronavírus.
As maiores críticas do jornalista se dirigiram às elites políticas brasileiras. Atos de corrupção associados à compra de respiradores mecânicos e ao superfaturamento de hospitais de campanha, por exemplo, provocam na população um sentimento de suspeição e insegurança. Festas sem máscaras em mansões de Brasília tampouco servem de bom exemplo.
Além disso, para Gabeira, não teria havido empenho suficiente para viabilizar medidas que de fato protegessem mais a população de baixa renda dos riscos de contaminação. “Por exemplo, não houve tentativa de melhorar o transporte coletivo, no qual há grande risco de contaminação. Isso revela uma ausência de compreensão do outro, por parte dos políticos”, argumentou.
Giannetti concordou com a ineficácia da lição de moral. Na cultura brasileira ela não funciona. “A pandemia agride e afronta tudo aquilo que nós temos de bom e belo na convivência brasileira — afetividade, espontaneidade, viver intensamente o presente. Temos que usar esse momento para valorizar aquilo que nos falta, mas temos de buscar um equilíbrio. Não precisamos adotar um individualismo selvagem, tampouco suprimir o indivíduo, mas devemos encontrar um ponto nesse eixo que reflita os nossos valores, o nosso modo de ser e o nosso ideal de felicidade”, disse.
Invisibilidade do vírus e criação de teorias absurdas
Outro fator que contribuiu para o negacionismo do presidente da República encontrar eco na sociedade brasileira é a invisibilidade do vírus. A guerra é, nesse sentido, uma realidade muito mais inquestionável que uma pandemia. “O drama se passa em hospitais muito bem protegidos da curiosidade de quem está do lado de fora. Isso pode dificultar a compreensão de que o vírus de fato existe, que não é uma invenção marxista ou uma arma dos chineses para dominar o mundo”, disse Gabeira. É mais fácil criar uma realidade paralela a uma pandemia — em que proliferam teorias absurdas sobre as origens do vírus, suas formas de disseminação e as maneiras de combatê-la ou curar os doentes — do que durante uma guerra. Nenhum habitante de Londres em 1940 poderia negar que havia bombardeios alemães sobre a cidade, exemplificou.
Fake news, desarticulações do governo federal, falta de políticas que sejam eficazes para permitir que a população fique em casa — com esse cenário, é ainda mais difícil convencer um grande número de pessoas de que certos sacrifícios valem a pena, em nome de benefícios que se materializarão no tempo. “O sacrifício é concreto, está no presente. Em nome do quê? De sair gradualmente dessa situação. Pode parecer uma miragem. Esse tipo de troca no tempo é muito complicada em todas as dimensões da vida brasileira; é uma operação que necessitaria de liderança, talento e habilidade para se tornar atraente”, explicou Giannetti, autor de “O Valor do Amanhã” (Editora Companhia das Letras, 2005).
Esperança para o futuro?
Em meio à tempestade perfeita, há esperanças de um futuro melhor? Giannetti acredita que traumas e adversidades podem ser experiências capazes de suscitar amadurecimento. “Não podemos mais aceitar que 40% dos brasileiros não tenham uma situação regular de emprego, que milhões de pessoas vivam na precariedade, à margem de tudo. Acredito que essa situação trágica que estamos vivendo possa nos alertar para o que há de frágil em relação aos nossos valores comunitários. Precisamos construir um capital cívico, de pertencimento, para estarmos juntos num momento grave como esse.”
“Uma vez passada a tragédia, espero que o país amadureça no modo de encarar seus problemas estruturais, como os da desigualdade e da informalidade, mas ao mesmo tempo recupere a beleza da capacidade de viver o momento, o que também é uma característica brasileira: uma afirmação da vida como celebração”, concluiu Giannetti, não sem antes relembrar que ao fim da gripe espanhola — uma pandemia do vírus influenza que matou, entre 1918 e 1920, centenas de milhões de pessoas no mundo, incluindo milhões de brasileiros, deu-se no Rio de Janeiro o chamado “carnaval da gripe”, em que o samba e as festividades na rua ganharam liberdade e expressividade inéditas.
Gabeira vê um caminho mais tortuoso até o esperado “carnaval pós-Covid”. O jornalista está preocupado com a capacidade de o Brasil curar suas feridas, em um momento de crise política tão acentuada. “No Brasil, a polarização teve e continua a ter um papel central. Bolsonaro jamais vai apelar para um esforço nacional, pois isso significaria colocar em segundo plano as diferenças políticas, significaria uma união que ameaça a sua posição. Precisamos superar esse trauma do tribalismo brasileiro”, colocou.
“Dificilmente alcançaríamos a celebração do carnaval sem resolver antes a questão política. A superação da pandemia e dos nossos problemas sociais passa por uma superação das deficiências políticas que estão articuladas com ela. Existe uma oportunidade de isso vir a acontecer na eleição de 2022, que poderia ser um novo recomeço para o país”, concluiu o jornalista.
Para Saber Mais:
Leia o ensaio “O dilema brasileiro: entre o individualismo cívico e o personalismo transgressor”, do sociólogo Bernardo Sorj, publicado no Journal of Democracy em Português, que discute a tensão entre o individualismo anárquico e os cidadãos, no Brasil.
Assista a websérie “Impactos do covid-19”, produzida pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), que, em 55 episódios com especialistas de diferentes áreas, busca destrinchar esse momento histórico.
Assista ao vídeo O mundo sob pandemia: Um diálogo entre FHC e Manuel Castells
Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.