Homenagem a Franco Montoro (1916-1999)
“Montoro foi um inovador. Falava de temas como ecologia, sustentabilidade e hidrovias. Ele tinha muito mais capacidade de renovação e me permitiu ver melhor o mundo”, disse FHC neste debate.
“A Gilda Portugal Gouvea brincou que eu sempre inicio uma conversa concordando, mas no final acabo discordando. Com o Montoro, foi o contrário. Começamos discordando, mas pouco depois passei a concordar sempre.”
Fernando Henrique Cardoso
Com a frase acima, Fernando Henrique Cardoso lembrou a campanha de 1978 ao Senado, quando o então MDB (Movimento Democrático Brasileiro) lançou dois candidatos em São Paulo: o próprio Franco Montoro (1916-1999), já um político veterano historicamente ligado à Democracia Cristã, e Fernando Henrique, um sociólogo respeitado, mas sem experiência política anterior.
“Minha candidatura foi ideia do Ulysses Guimarães, que achava ser necessário uma outra candidatura pelo MDB, além da do Montoro, para ganharmos votos no meio (acadêmico, intelectual e universitário). Eu cumpria um papel de ampliação da oposição ao regime militar, mas não era para ganhar”, lembrou FHC.
“Brigamos muito, o Montoro e eu, na convenção do MDB, mas depois, durante a campanha, aprendi muito com ele. Eu, iniciante na política, não gostava de repetir discurso. O Montoro, experiente, era 1, 2, 3. Aprendi que com 1, 2, 3 se vai longe”, disse o ex-presidente na homenagem aos 100 anos de nascimento do ex-governador de São Paulo na Fundação FHC.
Naquele ano, Franco Montoro acabou eleito senador e FHC ficou com a primeira suplência. Em 1982, quando Montoro foi eleito governador (na primeira eleição direta para os governos estaduais desde os anos 1960), Fernando Henrique assumiu o cargo de senador por São Paulo, iniciando assim sua trajetória política que culminou com a eleição para a Presidência do Brasil em 1994.
“Montoro foi um inovador ao tratar de temas que ninguém falava na época: ecologia, sustentabilidade, as hidrovias como meio de transporte, a questão atômica. Como governador, implementou a descentralização e a participação popular na administração de São Paulo. Eu me considerava progressista e avançado, mas ele tinha muito mais capacidade de renovação e me permitiu ver melhor o mundo”, concluiu FHC.
O comício da Sé e a campanha Diretas Já
Durante a homenagem — que lotou o auditório da Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, com familiares, amigos, intelectuais, políticos e ex-colaboradores do homenageado —, também foi lembrada a participação essencial de Montoro na campanha das Diretas Já (1983-1984). Em 25 de janeiro de 1984, dia do aniversário de São Paulo, o então governador paulista organizou um comício na Praça da Sé que reuniu centenas de milhares de pessoas e deu o impulso que faltava para o crescimento, por todo o país, do movimento que exigia eleições diretas para presidente.
“Na época eu era presidente do PMDB, o Mário Covas era prefeito de São Paulo. O Montoro me chamou e disse que queria fazer um comício pelas Diretas no centro em pleno 25 de janeiro, quando a cidade costumava ficar vazia. Fizemos uma reunião na casa da Ruth Escobar (atriz) e todo mundo achou uma loucura. Mas o Montoro não se deu por vencido. Fez o comício e foi aquela maré humana impressionante”, lembrou Fernando Henrique.
A emenda constitucional Dante de Oliveira, que restabelecia as eleições diretas para presidente, foi derrotada na Câmara dos Deputados, mas o movimento levou à candidatura indireta (no colégio eleitoral) de Tancredo Neves por uma aliança de partidos de oposição e dissidentes do regime militar. Em 15 de janeiro de 1985, o político mineiro foi eleito o primeiro presidente civil do Brasil desde o golpe de 1964, colocando fim à ditadura militar. Na véspera de sua posse, adoeceu gravemente e acabou morrendo de infecção generalizada. José Sarney, seu vice, se tornou presidente do Brasil.
Já o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, lembrou da participação do ex-governador na fundação do PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), em 1988. “Não foi fácil criar um novo partido. Lembro-me de uma viagem pelo Vale do Paraíba num final de semana, fazia um frio danado, chegamos a Cruzeiro, já era a quarta cidade do roteiro. Tínhamos um comício, umas oito pessoas para discursar, mas umas três na plateia. Ele foi o primeiro a discursar, era muito entusiasmado. Que o Montoro continue a ser uma grande inspiração para todos nós”, contou Alckmin.
Vocação humanitária
O advogado José Carlos Dias, secretário da Justiça do Governo Montoro e ministro da Justiça do Governo FHC, elogiou a defesa incondicional dos direitos humanos durante toda a carreira política do homenageado e, em especial, nos quatro anos em que ocupou o Palácio dos Bandeirantes. “O Montoro me deu total apoio quando decidimos instituir políticas de direitos humanos no sistema presidiário, o que provocou enorme oposição por parte de alguns radialistas, jornalistas e políticos”, disse Dias.
Ele também lembrou que Montoro sempre foi contrário à repressão aos protestos de rua durante seu governo, inclusive em ocasiões em que manifestantes ameaçaram invadir o palácio. “Antes de um desses protestos, ele deu uma ordem expressa: ‘José Carlos, coloque em liberdade todos os que forem presos pela polícia!’ Não vejo isso como demonstração de fraqueza, mas de força”, afirmou o ex-secretário.
“Fui liderado por Montoro e, depois, por Fernando Henrique. Graças a Deus, hoje nesta fundação podemos lembrar com saudades de Montoro. Vamos torcer para que apareçam novas figuras como ele na política porque estamos precisando”, concluiu o advogado.
O também ex-ministro da Justiça José Gregori elogiou a capacidade de Montoro de concretizar seus sonhos. “Montoro foi um desses homens raros cuja oxigenação vem do que é sonhado e realizado. Uma etapa vencida já exigia outra ainda mais ambiciosa. Ele tinha um tônus vital, não era um homem de amenidades. Sempre tinha um manifesto à mão, uma ideia ou um livro que ocupava a sua mente”, afirmou.
Segundo Gregori, as diversas obsessões de Montoro — entre elas, o parlamentarismo, a defesa da anistia das dívidas de países do Terceiro Mundo, o governo participativo, as hidrovias e as hortas comunitárias — formavam “um só mosaico”. “Não estamos tomados só pela saudade, mas pela convicção de sua dimensão política e de homem de Estado”, continuou.
Gregori se lembrou também de uma frase dita por Montoro durante a posse de FHC como presidente, em 1985: “Ele se aproximou e me disse, em voz baixa, mas incisiva: ‘Agora o próximo passo é o parlamentarismo’”. Montoro também foi defensor convicto do voto distrital misto, criado na Alemanha após a Segunda Guerra Mundial.
Conectado ao mundo
Já o embaixador Rubens Barbosa destacou seu profundo interesse por política externa. “Foi um dos poucos políticos e parlamentares brasileiros que sempre se interessou por política externa. Na Assembleia Constituinte de 1987-1988, foi inspiração dele a inclusão na Constituição do artigo 4º Parágrafo Único, que determina que o Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina. Montoro sempre teve visão de estadista”, relatou.
Barbosa também elogiou a capacidade de Montoro de formar equipes coesas e competentes. “Ele sabia escolher os melhores e os mais sérios. Por isso, toda uma geração de líderes lançados por ele se destacou e, desde então, tem dado importante contribuição à vida pública nacional”, afirmou.
FHC: “O chefe do celeiro (de novos políticos e gestores públicos ligados ao PSDB) não fui eu, nem o Covas. Foi o Montoro.”
A cientista social Gilda Figueiredo Portugal Gouvea, a primeira mulher a exercer a chefia de gabinete do Governo de São Paulo, durante a administração Montoro, lembrou de sua obsessão por controle de despesas e informações detalhadas dos candidatos a cargos públicos. “Naquela época, não existia acesso à informática como hoje e ele sentiu que podia perder controle sobre o que acontecia nas estatais. Por isso, exigia que eu tivesse uma ficha detalhada de cada funcionário, com currículo, folha corrida e quem indicou”, disse.
O jornalista Jorge da Cunha Lima, que foi secretário das Comunicações e da Cultura, destacou a forma integrada e colaborativa de governar, em que os diversos secretários, diretores e demais responsáveis por uma determinada área eram estimulados a trabalhar juntos. “Montoro governava por setores. Chamava os secretários de Cultura, da Educação, das Comunicações, os diretores de museus e todos os envolvidos em um tema para decidirem juntos”, afirmou.
E, embora aceitasse indicações de partidos aliados, ele próprio tomava a decisão final sobre os nomes que integrariam o governo. “Montoro dizia: ‘O partido vai ter espaço, mas quem escolhe sou eu!’ Era essa metodologia de escolha de colaboradores e tomada de decisões que possibilitou a formação de um governo com unidade”, afirmou Cunha Lima. “Vim aqui feliz hoje porque Montoro chegou à plenitude, e não ao fim da vida”, disse. Montoro morreu em 1999, aos 83 anos, de parada cardíaca.
‘Sonhadores’
Eugênio Montoro, um dos sete filhos do ex-governador, destacou as semelhanças entre Franco Montoro e Fernando Henrique Cardoso, dois dos principais líderes do PSDB. “Presidente Fernando Henrique, o sr. construiu a ponte para o futuro do Brasil e hoje, passados mais de 13 anos, percebemos que estávamos no caminho certo. Papai não teve a oportunidade de ver o fim de seu trabalho, mas estava entusiasmado. Nós, os filhos, vemos muitas semelhanças entre vocês. Ambos são sonhadores e construtores de pontes”, afirmou.
Eugênio lembrou também o compromisso de Montoro com a política e os partidos. “Para ele, os partidos são fundamentais na democracia. Têm que ser fortes, ter programa e ser um real instrumento de participação política”, disse.
Otávio Dias, jornalista, é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.