Debates
23 de outubro de 2025

Ex-colaboradores e amigos prestam homenagem a Ruth Cardoso: ‘Faz uma imensa falta ao Brasil’

Encontro na Fundação FHC marcou o lançamento do livro “Comunidade Solidária: Memória e Legado”, que resgata a trajetória e o impacto do programa social criado nos primeiros dias do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Lançamos em 23 de outubro na Fundação FHC o livro “Comunidade Solidária: Memória e Legado – Homenagem a Ruth Cardoso”. Organizado por Miguel Darcy e por mim, com o apoio inestimável de Beatriz Kipnis, o livro traz depoimentos de pessoas que atuaram no programa e/ou conviveram com a antropóloga que, com luz própria, ressignificou o papel de primeira-dama e marcou o governo de seu marido. A publicação contém ainda três textos de reflexão sobre o programa, escritos à época, um deles com Ruth entre os autores. Está disponível para download gratuito.

Livro “Comunidade Solidária: Memória e Legado – Homenagem a Ruth Cardoso” –
Foto: Vinicius Doti

Das várias coisas interessantes que foram ditas no lançamento-homenagem, destacamos algumas aqui.

Augusto de Franco, que integrou o conselho do programa, ressaltou a inovação da Comunidade Solidária no combate à pobreza. Em vez da ênfase exclusiva nas carências, o programa colocou o foco nas potencialidades latentes de desenvolvimento das populações pobres, e articulou parcerias entre órgãos de governo, empresas e entidades da sociedade civil para  ativar essas potencialidades. Um exemplo: rendeiras em cidades alagoanas que receberam apoio para se organizar, ampliar a produção, conquistar mercados e gerar renda própria com autonomia.

Pôs em prática teorias que ganharam fôlego nos anos 90 do século passado, a exemplo da teoria do capital social, conceito elaborado pelo sociólogo norte-americano Robert Putnam, entre outros autores que enriqueceram as explicações preexistentes sobre por que certas regiões ou países se desenvolvem mais do que outros. Em vez de tomar o capital social como um dado imutável, o Comunidade Solidária se propôs a estimular a geração de mais capital social em comunidades pobres. Não com fórmulas prontas aplicadas de cima para baixo, mas a partir da análise dos potenciais latentes de desenvolvimento em cada uma delas e com a participação de seus membros.

Anos 1990 foram ‘janela de inovação social’

“A pobreza não é resultado apenas de insuficiência de renda, mas também de insuficiência de rede. Ruth compreendia isso e, sem ela, não teria existido a Comunidade Solidária. Sob sua liderança, o programa se desenvolveu a partir de meados dos anos 90, quando houve uma janela de inovação social e um florescimento do Terceiro Setor. Foi um tempo espetacular”, disse Augusto de Franco.

Miguel Darcy, outro braço direito de Ruth no conselho da Comunidade Solidária e organizador do livro, chamou a atenção para a estranheza causada pelo programa ao seu início. O governo extinguira, já no dia da posse do presidente FHC, em 1º de janeiro de 1995, a Legião Brasileira de Assistência. A LBA era o símbolo do assistencialismo estatal, tradicionalmente presidido pela primeira-dama. Estaria tentando recriá-la com nova roupagem? Ou seria a Comunidade Solidária, através do seu conselho, presidido por Ruth Cardoso, a instância que determinaria o rumo e os recursos de toda a política social do governo, favorecendo o PSDB? Nem uma coisa nem outra. Nada mais distante de Ruth do que o assistencialismo e o partidarismo. Muito menos tinha Ruth a intenção de controlar as políticas sociais do governo.

O programa Comunidade Solidária foi criado para conceber, experimentar e avaliar novos modos de combater a pobreza, não para substituir as políticas de educação, saúde e transferência de renda. Ao contrário do que reza a lenda, o programa Bolsa Escola e outros programas de transferência de renda não nasceram da Comunidade Solidária, embora Ruth tenha influenciado a sua concepção. Não por acaso coube às mulheres receber o recurso dado a cada família beneficiada. Uma decisão que, ao mesmo tempo, dava maior autonomia às mães e favorecia as crianças, beneficiárias últimas dos programas.

Evento de lançamento do livro “Comunidade Solidária: Memória e Legado – Homenagem a Ruth Cardoso” na Fundação FHC – Foto: Vinicius Doti

Miguel lembrou também o modo de ser e proceder de Ruth, a sua capacidade de escutar com atenção e explicar com simplicidade e clareza. Dessa maneira, ela esclareceu mal-entendidos que poderiam ter matado o programa no nascedouro, seja por receio dos políticos ou resistências da burocracia estatal. As mesmas qualidades permitiram à Comunidade Solidária engajar agentes públicos e privados tão distintos quanto as Forças Armadas, as universidades, empresas e ONGs em parcerias que deram vida a programas como o Artesanato Solidário, Alfabetização Solidária, Comunidade Ativa, entre outros.

“No início, foi difícil explicar o que era o programa Comunidade Solidária. Não era apenas governo, mas também não era só sociedade civil. Além de conhecimento e pensamento estratégico, Ruth inspirava confiança, ética e cuidado. Pouco a pouco, as pessoas foram entendendo a proposta e as parcerias foram se espalhando, incluindo diversos órgãos do governo federal, prefeituras de todo o país, organizações não governamentais e participação expressiva do empresariado. O que a Comunidade Solidária ainda tem a dizer ao Brasil de hoje?”, disse Miguel Darcy.

O papel dos movimentos sociais no Brasil democrático

Com a redemocratização do país a partir de 1985  –  cujo marco foi a posse de José Sarney (vice de Tancredo Neves, que adoeceu na véspera de assumir a Presidência da República e faleceu em 21 de abril daquele ano), mas sobretudo após a promulgação da “Constituição cidadã” em 1988 e as primeiras eleições diretas para presidente em 1989  –  surgiu nas universidades um debate sobre qual deveria ser o papel dos movimentos sociais em um Brasil democrático, lembrou a cientista social Simone Coelho, ex-orientanda de Ruth Cardoso.

“Nas discussões que tivemos na universidade naquela fase crucial da história do país, a professora Ruth Cardoso defendeu que, com a conquista da democracia, não havia mais espaço para que os movimentos sociais continuassem atuando como se fossem ‘anti-Estado’. Eles precisavam se institucionalizar e assumir um novo papel político. O programa Comunidade Solidária, criado quando Fernando Henrique e Ruth chegaram ao Palácio do Planalto, tinha como base esse importante debate iniciado nas universidades”, explicou Coelho, especialista em Terceiro Setor. 

Evento de lançamento do livro “Comunidade Solidária: Memória e Legado – Homenagem a Ruth Cardoso” na Fundação FHC – Foto: Vinicius Doti

Ruth e FHC: diálogo permanente baseado na individualidade de cada um

Fernando Henrique e Ruth tinham um diálogo permanente e respeitoso da individualidade de cada um, ressaltou Celso Lafer, em texto lido na abertura do evento. Um diálogo sobre temas substantivos, nos quais a qualidade da relação entre o Estado e a sociedade civil no aprofundamento da democracia tinha um lugar central. No governo, a interlocução do casal passou a se refletir nas políticas sociais do governo, em especial na Comunidade Solidária. Ambos acreditavam que a relação deveria ser de parceria, mas sem cooptação política e perda de autonomia da sociedade civil frente ao Estado.   

Além de modos novos de fazer política social, a Comunidade Solidária produziu mudanças legais, como a criação do novo Marco Legal do Terceiro Setor e das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs). Ou seja, afora demonstrar na prática as possibilidades de parcerias amplas na área social, o programa fortaleceu o terreno para a multiplicação de iniciativas do gênero. Um legado que ficou, ao qual se soma a Lei do Voluntariado, que estimulou as empresas a atuarem nesse campo, como lembrou Ruth Goldberg, hoje minha colega na diretoria da Fundação Fernando Henrique Cardoso.

O Brasil como uma ‘verdadeira comunidade solidária’ 

Ainda sobre o modo de ser e proceder de Ruth, Rosiska Darcy de Oliveira, que presidiu o Conselho dos Direitos da Mulher no governo FHC, disse uma coisa marcante. “Se pudesse descrever a Dona Ruth com uma palavra, esta palavra seria dignidade. Sem ser religiosa, Ruth tinha uma fé profunda na possibilidade de mobilizar nas pessoas sentimentos e compromissos de solidariedade em favor do bem comum. E fazia isso de forma radicalmente democrática, com escuta atenta e persuasão, sem demagogia ou manipulação. Ruth queria que o Brasil se transformasse em uma verdadeira comunidade solidária. E trabalhou muito para isso”.

Por fim, uma recomendação: não deixe de ler o texto escrito por Ignácio de Loyola Brandão, especialmente para a ocasião. Conterrâneo de Ruth, ambos de Araraquara, no interior de São Paulo, relata a conversa que tiveram em 1995, quando ele, editor da revista Vogue, conseguiu convencê-la a lhe dar uma entrevista. É uma conversa que revela uma faceta menos conhecida de Ruth, mas não menos importante para compreender a sua personalidade.

Leia os textos de:

Celso Lafer: A dimensão republicana de Ruth Cardoso

Ignácio de Loyola Brandão: Você devolveu minha cidade



Sergio Fausto, cientista político, é diretor geral da Fundação Fernando Henrique Cardoso.

Colaborou Otávio Dias, editor de conteúdo da Fundação FHC.