EUA e China: chances de conflito e cooperação na relação entre as duas potências
Com intensidade cada vez maior, os chineses vêm buscando ocupar espaços econômicos e políticos em países com os quais o governo americano e as empresas dos Estados Unidos têm maior dificuldade em projetar seus interesses.
Para discutir as relações entre Estados Unidos e China, a Fundação FHC trouxe ao Brasil o vice-presidente de estudos do Carnegie Endowment for International Peace, Douglas Paal, e o diretor do Centro de Cooperação China-EUA da Universidade de Denver, Suisheng Zhao. Paal foi diretor de Assuntos Asiáticos do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, no governo de Ronald Reagan e George Bush. E Zhao fundou e é o editor-chefe do Journal of Contemporary China, além de integrar o Conselho de Segurança para a Cooperação na Ásia-Pacífico, uma entidade não governamental. O seminário aconteceu no dia 19 de agosto, na sede da Fundação.
Paal destacou logo ao início o glorioso passado do Império do Meio, como os chineses chamaram o seu próprio país por muitos séculos. Disse não ser possível entender a China de hoje sem lembrar que ela foi mais rica e poderosa que os países ocidentais até o século XVIII. Depois vieram a submissão ao domínio colonial britânico, na segunda metade do século XIX, e a invasão japonesa, na primeira metade do século XX, resultando em perdas territoriais e econômicas, muitas mortes e humilhação para a China. Ao voltar à cena mundial no século XXI, o país traz na bagagem ressentimentos históricos, frisou Paal. Aos ressentimentos se associam a suspeita de que o Ocidente, em geral, e os Estados Unidos, em particular, buscarão conter a ascensão da China como grande potência.
Até recentemente, mais do que conter a China, os americanos procuraram atrai-la para o interior da ordem global construída sob a hegemonia dos Estados Unidos a partir da Segunda Guerra Mundial. Exemplar a esse respeito foi o ingresso do país na Organização Mundial do Comércio, em 2001. A reinserção da China no mundo coincidiu perfeitamente com o interesse da liderança política chinesa, pós Mao Tse Tung, de modernizar o país por meio de um acelerado crescimento econômico. Os resultados econômicos foram espetaculares. Nesse processo, as economias da China e dos Estados Unidos se tornaram interdependentes e a integração cultural entre os dois países, antes quase inexistente, tornou-se significativa, com um número crescente de alunos chineses estudando em universidades americanas, para dar um exemplo. Ante os benefícios econômicos da integração internacional e da interdependência com os Estados Unidos, a China seguiu à risca uma estratégia de evitar tensões com a superpotência. Para ilustrar essa estratégia, Zhao recordou o episódio do acidental bombardeio americano a uma embaixada da China em Belgrado, em 1999, em meio às operações da OTAN para conter o líder sérvio Slobodan Milosevic em sua guerra de extermínio na então província do Kosovo. Apesar de mortos e feridos, o governo chinês deu ao seu protesto diplomático um tom comedido para evitar dano às relações estratégicas com os Estados Unidos.
Diferente, assinalou o próprio Zhao, tem sido a atitude chinesa no período mais recente. As bases objetivas da convergência dos interesses não desapareceram, mas as percepções sobre o quadro internacional e sobre as relações de poder entre os dois países se alteraram. Zhao localizou o ponto da mudança na crise financeira de 2007/2008. Esta não se deu na Ásia, como na crise de 1997/1998, mas no Ocidente, tendo como epicentro os Estados Unidos e como principal vítima a Europa. Dela, a China saiu fortalecida, ao contrário dos principais países desenvolvidos do Ocidente. Diante da fragilidade demonstrada pelas economias desses países e das dificuldades políticas encontradas por seus governos para responder à crise, os chineses se sentiram confiantes para imprimir maior ousadia a sua estratégia de projeção internacional. Antes limitada à expansão da presença econômica da China no mundo, em busca de fontes estáveis de suprimento de matérias primas, a projeção internacional chinesa abriu-se em novas vertentes: uma delas, a reivindicação assertiva de soberania sobre territórios marítimos considerados, pelos chineses, mas não por vários de seus vizinhos, como parte integral da China histórica; a outra, a disseminação de uma suposta superioridade do modelo econômico e político chinês em relação ao capitalismo liberal. Sinais claros de um país mais confiante em seus instrumentos de poder robusto (hard power), que de fato se fortaleceram com o acelerado crescimento econômico e a modernização de suas forças armadas, e de seu poder brando (soft power).
Zhao assinalou ainda que a maior assertividade da política externa chinesa atendeu igualmente a razões políticas internas. O nacionalismo chinês é uma poderosa força de coesão política e social do país. Espetacular em seus resultados econômicos, o “modelo chinês” produz também insatisfação com a desigualdade social crescente, problemas ambientais cada vez maiores e críticas cada vez mais difíceis de sufocar contra o enriquecimento pessoal e familiar da elite do Partido Comunista. Nesse contexto, uma política externa mais desinibida em mostrar os seus músculos serve para provocar sentimentos nacionalistas e fortalecer o governo.
Desse novo cenário das relações sino-americanas faz parte a decisão do governo Obama de fazer “um giro estratégico em direção à Ásia”, anunciado pelo próprio presidente em viagem à região no final de 2011. Como o chamado “pivot to Asia” consiste, entre outras coisas, em reforçar as alianças econômicas e militares com países asiáticos vizinhos à China, a iniciativa dos Estados Unidos reavivou o velho fantasma chinês do cerco estrangeiro ao seu território. Dessa percepção sobre as intenções dos Estados Unidos e da necessidade de apelar ao sentimento nacional para gerar dividendos políticos internos, resultaram as investidas chinesas em águas compartilhadas com as Filipinas e o Vietnã, ao Sul, e com o Japão, ao Norte. Sob a justificativa de que tais águas são extensões do território chinês, a China passou a reivindicar explicitamente a soberania sobre ilhas e recursos naturais ali existentes, mobilizando forçar navais para mostrar sua determinação em assegurá-la.
Seria o prenúncio de um conflito na região, que poderia escalar para um confronto entre China e Estados Unidos? Nenhum dos dois palestrantes avaliou esse cenário como provável. Paal resumiu a questão em uma frase: “a China é um ator racional”. Ou seja, um país cuja elite é capaz de perceber que um conflito com os seus vizinhos levaria a um embate com os Estados Unidos, produzindo danos à economia chinesa, umbilicalmente ligada às economias do Sul e do Sudeste da Ásia, do Japão e dos Estados Unidos. Consciente também, esta mesma elite, do erro estratégico que representaria, para um país com quinze vizinhos, provocar uma situação que os levassem a aliar-se contra a China. Não é, portanto, razoável esperar atitudes tresloucadas do governo chinês.
Mas se isso é verdade, advertiram os dois palestrantes, também é inegável que a China já não mais parece disposta a aceitar pacientemente a hegemonia dos Estados Unidos. Com intensidade cada vez maior, os chineses vêm buscando ocupar espaços econômicos e políticos em países com os quais o governo americano e as empresas dos Estados Unidos têm maior dificuldade em projetar seus interesses. É o caso de países da África, do Oriente Médio, como o Irã, e mesmo da América Latina, em particular Cuba e Venezuela.
Estaríamos assistindo ao retorno a uma situação semelhante à da Guerra Fria? Novamente Paal e Zhao concordaram na resposta negativa a essa questão. Mas reconheceram, nas palavras do primeiro, que há tensões se acumulando em camadas profundas das estruturas de poder de ambos os países. Paal acredita que os líderes americanos estão conscientes da necessidade de dissipar essas tensões. No entanto, como os Estados Unidos continuam ocupados da gestão de novos e velhos conflitos no Oriente Médio e na Eurásia, a prioridade que a relação com a China requer se perde entre outros focos de atenção da política externa americana. À falta de um engajamento estratégico mais fluido e permanente entre os governos dos dois países, Zhao teme que as percepções distorcidas prosperem de parte a parte criando condições menos favoráveis a uma abordagem racional nas relações entre os dois países. A racionalidade, neste caso, se fundamenta no reconhecimento de que Estados Unidos e China se tornaram tão interdependentes e tão indispensáveis ao bom funcionamento do sistema internacional que não podem causar dano ao outro sem causa-lo a si mesmo e a todo o mundo.