Debates
08 de dezembro de 2020

Estamos assistindo ao fim da Lava Jato?

“A Lava Jato é uma operação policial e judicial de caráter penal. Mas o combate à corrupção é holístico: envolve aspectos civis, administrativos, institucionais, políticos e culturais”, disse Herman Benjamin, ministro do STJ, neste debate.

Não se deve confundir o combate à corrupção com a Operação Lava Jato. Por seus méritos e defeitos, esta mobilizou paixões e interesses políticos. Seus erros, como o protagonismo de grandes operações punitivas, cobram hoje um custo em credibilidade ao mesmo tempo que parte da classe política aproveita a oportunidade para promover retrocessos. O desafio agora é evitar novos recuos e, para avançar, dar caráter sistemático ao combate à corrupção.

Para atingir este objetivo, é essencial reforçar o desenho institucional dos órgãos envolvidos (e do sistema como um todo), evitar retrocessos na legislação e na jurisprudência, investir na prevenção e aprimorar o sistema político-partidário.

Estas foram as principais conclusões de webinar “Estamos assistindo ao fim da Lava Jato? O que isso significa para o combate à corrupção no país?”, que teve as participações do ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin, da procuradora regional da República Silvana Batini, e do professor da FGV Direito SP Rubens Glezer.


“O combate à corrupção é neutro: não tem ideologia nem partido.”
Silvana Batini, procuradora regional da República, integrou a equipe da Operação Lava Jato no Rio de Janeiro.
 

“O protagonismo de grandes operações punitivas tende a trazer prejuízos para o combate à corrupção a médio prazo, se não vier acompanhado de medidas estruturais de prevenção do crime.”
Rubens Eduardo Glezer, professor da FGV Direito SP, coordena o projeto Supremo em Pauta. 

“A Lava Jato é uma operação policial e judicial de caráter penal. Mas o combate à corrupção é holístico: envolve aspectos civis, administrativos, institucionais, políticos e culturais.”
Herman Benjamin, juiz, é ministro do Superior Tribunal de Justiça.

Morte morrida ou morte matada?

Na abertura de sua fala, Silvana Batini lembrou João Cabral de Melo Neto, autor de Morte e Vida Severina. “Parafraseando o poeta pernambucano, podemos nos perguntar se a Lava Jato estaria morrendo de ‘morte morrida’ ou de ‘morte matada’? De morte morrida, a operação estaria longe, pois há muita coisa a ser feita. De morte matada, o risco é bem maior porque são muitos os que têm interesse em acabar com a Lava Jato.”

Segundo a procuradora regional da República, não é possível matar a Lava Jato com uma só bala ou em uma única emboscada: “Ela já sofreu e sofrerá ainda várias emboscadas, mas sobrevive. Estamos, no entanto, em um novo momento em que é preciso reforçar seu legado”, afirmou.

De acordo com a ex-integrante da equipe da Lava Jato no Rio de Janeiro, a Operação Lava Jato “não caiu do céu nem foi inventada por um grupo de procuradores e juízes federais em Curitiba (em 2014), mas resultou de um processo histórico de aprimoramento e amadurecimento do sistema de combate à corrupção no Brasil”.

Seu principal legado, explicou a professora da FGV Direito Rio, é um novo modelo de atuação, com investigações baseadas em colaborações premiadas, uso intenso de tecnologia para obter e cruzar informações, articulação horizontal entre várias instituições do Estado e intensa colaboração com órgãos de combate à corrupção de outros países.

A atuação do Ministério Público Federal possibilitou avanços estratégicos com o amplo uso de medidas cautelares, como prisões preventivas e bloqueios de bens, e a recuperação de ativos em escala nunca vista anteriormente. Para Batini, o MP deve “institucionalizar” tais avanços por meio de um debate aberto e franco.

“A conclusão inexorável é que o combate à corrupção exige procuradores com formação específica e dedicação exclusiva. Não é um trabalho que possa ser feito de forma individual, como antigamente. Daí a importância de forças-tarefa ou equipes multidisciplinares. É bom lembrar que, do outro lado (defendendo os investigados ou réus), estão os melhores advogados do país”, continuou.

A palestrante concluiu lembrando (e adaptando) a frase “Enquanto houver bambu, lá vai flecha”, dita pelo então procurador geral da República, Rodrigo Janot, em 2017. “Tem muito bambu e muita flecha, mas é fundamental ter índios treinados, agrupados, motivados e unidos”, disse Batini.

Lições não aprendidas

A Operação Lava Jato representou uma inflexão crucial no imaginário social brasileiro em relação à impunidade, ao mostrar que políticos e empresários importantes poderiam, sim, ser punidos. Mas pouco foi feito desde então para combater e, principalmente, prevenir a corrupção de forma estrutural.

“Em 2004, o próprio juiz Sergio Moro escreveu um artigo chamado Considerações sobre a Operação Mani Politi (Mãos Limpas, em italiano) em que falava sobre a necessidade de mimetizar aquela operação no Brasil e mobilizar a opinião pública como ponta de lança para conseguir fazer as reformas estruturais sem as quais o combate à corrupção seria destinado ao fracasso”, disse Rubens Glezer, coordenador do projeto Supremo em Pauta (FGV).

O professor da Escola de Direito de São Paulo também lembrou de seminário realizado pela FGV em 2016 com a economista norte-americana Susan Ackerman, conhecida por seus estudos sobre corrupção nas relações entre governos e empresas. “Na ocasião, a professora Ackerman (Universidade Yale) disse para o procurador geral Rodrigo Janot, presente, que, se não houvesse reforma do sistema de prevenção, os avanços obtidos no combate à corrupção no Brasil iriam por água abaixo. Infelizmente a lição não foi aprendida”, afirmou Glezer.

Como exemplo de reforma não realizada, Glezer citou as licitações públicas: “Desde 2014 não houve mudança relevante neste sistema, um dos principais focos de corrupção no país. Pouco caminhamos no sentido de eliminar os incentivos à corrupção e alterar a relação custo-benefício desses atos.”

“Em vez de a opinião pública pressionar deputados e senadores a se debruçar sobre as questões relacionadas à corrupção, o discurso preponderante é o de que é melhor esquecer o Congresso, pois ele não tem solução”, afirmou.

Ainda segundo o especialista, ao escancarar o problema estrutural das relações perigosas entre os mundos político e empresarial, a Lava Jato foi como um curto-circuito. “Quando há um curto em casa, temos duas opções: resolver o problema estrutural ou deixar a casa pegar fogo. Estamos exatamente neste momento. Vamos deixar queimar sem nada fazer?”, perguntou.

Para Glezer, existe um desgaste em relação à pauta anticorrupção na sociedade, o que abre o flanco para um contra-ataque do mundo político, que quer se proteger. “Vejo hoje um risco real de perda de autonomia por parte da Polícia Federal e de desmobilização dos quadros do Ministério Público”, concluiu.

Combate à corrupção é obrigação internacional

“Não gosto de tratar do fundamental combate à corrupção à luz da Operação Lava Jato porque este modo nos leva ao varejo, mesmo que seja um ‘mega varejo’”, disse o ministro do Superior Tribunal de Justiça Herman Benjamin no início de sua fala. “Quando falamos em Lava Jato, aparecem rostos, sofrimentos pessoais, observações de justiça ou injustiça. O combate à corrupção, no entanto, é um tema muito mais amplo, com diversas facetas, e que diz respeito a todos os brasileiros”, afirmou.

“A Lava Jato virou grife e foi apropriada por setores que não representam o leque de instituições e pessoas que se preocupam verdadeiramente com a luta contra a corrupção. Corremos o risco de cair nos braços de paixões de toda ordem, o que prejudica o bom senso e nos impede de agir de forma racional”, continuou.

Ainda segundo o juiz, o Brasil não pode se eximir do combate à corrupção porque é signatário de compromissos internacionais de transparência e correção nos negócios públicos e privados. “A corrupção tem hoje tratamento internacional, assim como os direitos humanos, o meio ambiente e a propriedade intelectual, entre outros temas globais. Não há como fugir deles”, disse.

Benjamin criticou enfaticamente a possibilidade de o Congresso aprovar alterações na Lei de Improbidade Administrativa, em debate na Câmara dos Deputados. “Esta lei, de 1992, está consolidada e sua interpretação, pacificada, nos tribunais de todo o país. Nenhuma lei é perfeita e imutável, mas seria um absurdo mudá-la sem amplo debate público”, disse.

Ainda segundo o ministro, o Brasil precisa avançar na luta contra a corrupção “sem individualismos e exibicionismos, mas com racionalidade, garantias constitucionais e justiça.” “Não há República, Estado de Direito e justiça social se não vencermos esse bom combate”, concluiu. 

Reforma político-eleitoral

Os três palestrantes concordaram que a reforma do sistema político e dos partidos é fundamental para a luta contra a corrupção. “A fragilidade da estrutura político-partidária é a mãe da corrupção. O robusto Fundo Eleitoral, que é um dinheiro público, é com frequência destinado não a presidentes de partidos, mas a donos de partidos, que fazem o que quiser com ele”, afirmou Benjamin, que foi corregedor-geral do Tribunal Superior Eleitoral entre 2016 e 2017.

“O sistema de financiamento eleitoral foi modificado via STF, mas de forma pontual. Não houve uma dimensão sistemática naquela mudança, que precisa ser feita pelo Congresso brasileiro no contexto de uma ampla reforma política”, disse Rubens Glezer.

“Para criar um ambiente de mais ética e lealdade que o combate à corrupção exige, é indispensável pensar no direito eleitoral. Não acredito em soluções mágicas como baratear campanhas ou adotar o voto distrital e listas fechadas sem uma avaliação mais aprofundada”, disse Silvana Batini.

Segundo a procuradora, falta transparência aos partidos brasileiros. “Em geral, são ambientes opacos, onde há irregularidades e é muito difícil fazer uma auditoria. Precisam se abrir e criar regras de compliance. Ao lidar com recursos públicos, devem ser colaboradores ativos no combate à corrupção”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. É editor de conteúdo da Fundação FHC.