Debates
25 de junho de 2020

Envelhecimento, Desigualdade e Pobreza no Brasil

“Nenhum outro país do mundo viveu a experiência de envelhecer (do ponto de vista demográfico) com os níveis de desigualdade social e pobreza ainda existentes no Brasil”, afirmou o médico e gerontólogo Alexandre Kalache neste debate.

“É bom envelhecer, morrer jovem é que não presta.” Assim o médico e gerontólogo brasileiro Alexandre Kalache, um dos maiores especialistas mundiais em políticas do envelhecimento, deu início à sua fala neste webinar sobre os impactos da pandemia do novo coronavírus na população mais idosa do país. “Oitenta e cinco por cento dos mais idosos depende do SUS (Sistema Unificado de Saúde), um marco civilizatório brasileiro que vem sendo sucateado por financiamento inadequado e gestão ineficiente”, ressaltou o ex-diretor do Departamento de Envelhecimento e Curso de Vida da Organização Mundial da Saúde (OMS).

“Assim como o racismo, o preconceito contra os mais velhos é disfarçado de diversas maneiras no Brasil. Quando alguém diz que fulano é um velho com espírito jovem, existe um preconceito aí. Somos um país em rápido e irreversível processo de envelhecimento. Esta pandemia – por atingir principalmente, mas não apenas, os idosos – nos obriga a sair do lugar e a nos reinventar como indivíduos e como sociedade, como gestores públicos e privados”, disse a médica geriatra Karla Giacomin, titulada pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).

“Envelhecer foi uma das maiores conquistas do ser humano no século 20. Quando nasci, em 1945, a expectativa de vida no Brasil era de 43 anos, hoje é de 77 anos. Quando me formei em medicina em 1970, apenas 5% da população brasileira tinha mais de 60 anos. Em 2020, somos 14% e, em 2050, 31% da população brasileira serão idosos. Daqui a 30 anos, o Brasil terá 67 milhões de habitantes com mais de 60 anos, população maior do que qualquer país europeu”, disse Kalache.

Segundo o presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil (ILC-BR), “nenhum outro país do mundo viveu a experiência de envelhecer (do ponto de vista demográfico) com os níveis de desigualdade social e pobreza ainda existentes no Brasil”.

Boas leis, mas políticas acanhadas

Ambos os palestrantes lembraram que o Brasil tem boas leis, como o Estatuto do Idoso (instituído em 2003, quatro anos após a promulgação da Constituição de 1988), mas faltam políticas. “Nossas políticas públicas são acanhadas, mal construídas e mal implementadas. E ainda há retrocessos inexplicáveis, como a intervenção do atual governo no Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Idosas em 2019, que desde então está totalmente desarticulado, sem efetiva participação da sociedade civil”, disse o epidemiologista (com PhD pela Universidade de Oxford, no Reino Unido). Em agosto do ano passado, o governo federal cancelou a 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa por alegadas dificuldades dos estados e falta de recursos federais.

“Já passou da hora de construirmos uma política nacional de cuidados continuados neste país. Já está claro que, neste governo, o exemplo e o esforço não virão de cima. Teremos de pavimentar esse caminho de baixo para cima, a partir da mobilização e do trabalho da sociedade”, disse Giacomin, consultora da OMS na área de envelhecimento e uma das idealizadoras da Frente Nacional de Fortalecimento às ILPIs (Instituições de Longa Permanência para Idosos).

De acordo com os dois especialistas, uma política consistente de envelhecimento ativo deve garantir a todos a oportunidade de cuidar bem da saúde, ter acesso a informação, conhecimento, segurança e proteção e a condições para continuar a participar da vida em sociedade até o fim. “Todo mundo fica doente um dia. Se tiver um teto em cima da cabeça, comida na mesa, acesso a médicos e medicamentos e apoio da família e da sociedade, encarar a doença é um pouco mais fácil”, disse Giacomin.

‘Aqui a pandemia é mais negra, mais jovem e mais desigual’

No início de março, Kalache estava em Portugal e, ao retornar às pressas ao Brasil para se juntar aos esforços de combate ao novo coronavírus, previu que a pandemia no país seria mais negra, mais jovem e mais desigual. “Aqui as pessoas, principalmente as que têm menos recursos financeiros, não esperam chegar aos 60 para ter diabetes, hipertensão, doenças cardiovasculares e respiratórias, comorbidades que aumentam o risco de morte em decorrência da Covid-19. Elas já são envelhecidas ao 45, 50 anos. Compare a saúde de um negro pobre de 45 anos com a de um branco rico de 75 anos. A diferença, na maioria das vezes, é abismal”, disse.

“A pandemia de Covid-19 não forjou nossas desigualdades, apenas as escancarou de forma flagrante. Um exemplo trágico é a falta de saneamento básico e de água potável para dezenas de milhões de brasileiros. Como se proteger do vírus nessas condições?”, continuou Kalache.

“Para complicar ainda mais a situação, vivemos a cultura do descartável. Todo mundo vai morrer um dia, então que morram logo os pobres, os negros, os doentes, os velhos. O que vivenciamos no Brasil hoje é um verdadeiro geronticídio”, afirmou Kalache.

‘Tempestade perfeita’

Segundo o gerontólogo, a Covid-19 atingiu o Brasil em meio a uma “tempestade perfeita” e a resposta do poder público, principalmente do governo federal, foi marcada não apenas pelo preconceito e descuido com os mais idosos e mais pobres, mas também pelo desrespeito à ciência e por absoluta falta de governança.

“Como escreveu Albert Camus, uma peste só pode ser confrontada com coesão e decência. E com ciência, é claro. No Brasil, vivemos uma distopia. Uma sociedade não pode reagir assim diante de uma situação tão grave como a que estamos vivendo”, disse Kalache.

A “tempestade perfeita” começou a se formar a partir da crise fiscal e econômica iniciada em 2015, que resultou em aumento do desemprego e congelamento dos gastos sociais. “Desde então, nossos indicadores de desenvolvimento humano (definidos pela ONU) vêm caindo e a desigualdade social só cresce. A partir de 2019, as perspectivas se agravaram ainda mais devido ao total descaso do atual governo com a educação, a cultura, a ciência e a saúde. Não são esses os pilares para que um dia o Brasil se torne uma nação desenvolvida?”, perguntou.

Chega então a pandemia e a resposta do poder público foi “caótica”, com orientações desencontradas em relação ao necessário isolamento social e o fracasso de medidas essenciais para reduzir seu impacto, entre elas um programa eficaz de testes, monitoramento dos infectados e das pessoas que tiveram contato com eles e fortalecimento do SUS.

“Dois ministros da Saúde demitidos, disputa política com governadores e prefeitos, militarização do Ministério da Saúde e a tentativa de maquiagem das estatísticas. Para coroar essa sequência de graves equívocos, o presidente da República vira garoto propaganda da cloroquina”, disse o fundador da Unidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres.

‘Vitória do medo’

“Temos sanitaristas, epidemiologistas, médicos e cientistas de primeira classe no Brasil. Por que não foram ouvidos?”, perguntou o palestrante, que como diretor da OMS concebeu e publicou o Marco Político do Envelhecimento Ativo em 2002.

Kalache criticou a flexibilização do isolamento social defendida pelo governo no início da pandemia: “Isolamento vertical? Só se isso significar os mais ricos fazendo home office enquanto os mais pobres são obrigados a sair para a rua para buscar o sustento de cada dia. O ministro da Economia descobriu que a informalidade no mercado de trabalho existia quando o coronavírus desembarcou no país.”

Por fim, criticou a resiliência da corrupção em plena pandemia: “O governo do Rio de Janeiro, onde moro, prometeu sete hospitais de campanha. Só um foi entregue. O placar foi de 7 a 1 para a corrupção. A mesma coisa se repetiu em diversos estados e municípios brasileiros.”

“Quando não há confiança, o medo vence. Medo de adoecer, de morrer, de perder familiares, de ficar sem trabalho, de não ter o que comer, medo do presente e do futuro. Tudo isso forjado pela tempestade perfeita descrita no início de minha fala e pela absoluta falta de governança verificada nos últimos meses”, concluiu. 

‘Polarização nos leva ao desastre’

Karla Giacomin, membra da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG), disse que a polarização que se instaurou no país é mais um obstáculo no longo caminho de combate ao novo coronavírus. “O Brasil não era conhecido em todo o mundo por seu povo aberto, simpático e caloroso? Cadê a solidariedade, cadê a empatia? A polarização apenas nos emburrece e nos conduz ao desespero e ao desastre”, disse.

Segundo a geriatra, o único caminho para superar a pandemia é a junção de esforços do Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) e dos três níveis de governo (União, Estados e Municípios) com a sociedade civil. “Lembro-me sempre do importante trabalho de articulação entre Estado e sociedade realizado pela Doutora Ruth Cardoso (1930-2008) durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1997-2002). No início, parecia que a antropóloga falava sozinha ao propor o programa Comunidade Solidária, mas juntos conquistamos muitas coisas naquele período. Anos se passaram e estamos novamente desarticulados, sozinhos”, afirmou.

Logo nos primeiros dias da pandemia, Giacomin decidiu fazer a sua parte e, junto com especialistas e gestores de todo o país, criou a Frente Nacional de Fortalecimento das ILPIs (Instituições de Longa Permanência para Idosos). “No Brasil, temos algumas instituições com muitos recursos e de alto nível, mas a grande maioria sobrevive sem nenhum aporte financeiro por parte do Estado e depende unicamente de doações. Sem infraestrutura adequada e condições mínimas de assepsia, não tinham nem mesmo protocolos específicos para evitar o alastramento da Covid-19”, relatou.

Em duas semanas, a Frente discutiu, consolidou e publicou um relatório técnico com todas as informações necessárias para o combate à pandemia. “Chamamos todos à responsabilidade e a resposta foi ampla e rápida”, disse.

Para manter contato permanente com instituições de todo o Brasil, tirar dúvidas e organizar ações de apoio, a Frente optou por usar o WhatsApp. “Criamos um primeiro grupo, que logo atingiu o limite de 256 participantes. Criamos então outros grupos e já temos mais de mil pessoas envolvidas. A cada dia recebemos novas adesões. Com frequência, gestoras e gestores dessas instituições nos dizem que antes se sentiam completamente isoladas, sem qualquer informação e ajuda”, disse a palestrante.

Segundo Giacomin, a iniciativa não teve apoio do governo federal, pelo contrário. “Os atuais responsáveis pelo Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas Idosas enviaram cartas para seus contatos nos estados e municípios solicitando que não respondessem às nossas perguntas e evitassem contato conosco”, relatou. 

“É inacreditável que o Conselho Nacional, justamente ele que deveria fazer esse trabalho de articulação com a sociedade civil, tente colocar obstáculos para dificultar o enfrentamento da pandemia”, comentou Kalache.

‘Líderes mulheres foram mais bem sucedidas’

Kalache elogiou o trabalho das líderes políticas no combate à pandemia. “Os países que melhor responderam à Covid-19 são governados por mulheres. Foi o caso da Alemanha (Angela Merkel), da Nova Zelândia (Jacinda Ardern), da Dinamarca (Mette Frederiksen) e da Noruega (Erna Solberg). Deve ser porque elas compreendem melhor a política do cuidado, são menos arrogantes e, quando não sabem a resposta para um problema, procuram pessoas competentes para assessorá-las”, disse.

“Marta Temido, ministra da Saúde portuguesa, também tem feito um trabalho admirável. Enquanto isso, aqui no Brasil, seguimos perdidos, sem liderança. Como disse Chico Buarque, será que o Brasil ainda vai tornar-se um imenso Portugal? Espero que sim. Dentro da tempestade, existe uma oportunidade. Vamos nos unir e quem sabe sairemos desta tragédia mais fortes e mais solidários”, concluiu Kalache.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.