Debates
10 de setembro de 2020

Eleições nos EUA: o que está em jogo na principal democracia do planeta?

Para analisar as tendências eleitorais, os possíveis cenários resultantes do pleito de 3 de novembro e suas repercussões sobre o mundo em geral e o Brasil em particular, este webinar reuniu três jornalistas brasileiros que conhecem de perto a realidade americana.

Toda vez que os Estados Unidos votam para presidente, o mundo observa com atenção devido ao peso econômico, militar e geopolítico do país. Neste ano algo mais fundamental está em jogo: “A eleição de 3 de novembro de 2020 será decisiva para o futuro da democracia nos EUA e no globo”, afirmou Paulo Sotero, que dirigiu o Brazil Institute da Woodrow Wilson Foundation por 13 anos e é um dos brasileiros que mais conhece Washington D.C e seus bastidores.

Nos EUA, o resultado eleitoral deve não apenas aprofundar uma polarização que já divide o país há muitos anos, como pode levar a um questionamento do colégio eleitoral, uma das bases do federalismo norte-americano. “Se Joe Biden vencer o voto popular a nível nacional, como indicam as pesquisas, e Trump conquistar o número de delegados necessário para se reeleger no colégio eleitoral, será a terceira vez que isso terá acontecido em apenas 20 anos, o que pode provocar uma crise política e um questionamento do próprio sistema político”, disse Cláudia Trevisan, ex-correspondente do Estadão em Washington e Pequim.

Os democratas Al Gore e Hillary Clinton venceram o voto popular nacional em 2000 e 2016, respectivamente, mas não chegaram à Casa Branca devido à eleição no colégio eleitoral, onde cada um dos 50 estados tem direito a um número de delegados, de acordo com o número de representantes que possui no Congresso. A capital, Washington D.C., também tem direito a representantes no colégio eleitoral. Costuma-se dizer que a escolha do presidente é feita em 50 eleições diferentes que acontecem nos estados, cada um com suas características demográficas, sociais e econômicas, e não nacionalmente. Em 48 deles, quem ganhar no voto popular assegura todos os delegados no colégio eleitoral (the winner takes it all). São 538 no total, o que dá a vitória ao candidato que obtiver pelo menos 270 delegados. Os integrantes do colégio eleitoral são obrigados a votar no candidato do partido que representam, por isso são chamados de pledged delegates (delegados comprometidos) .

“Neste ano, as eleições se caracterizam por uma conjunção de crises: crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, crise econômica resultante da paralisação de boa parte da atividade econômica e crise social deflagrada pelo assassinato do afroamericano George Floyd por um policial branco e a onda de protestos antirracistas que se seguiu”, explicou Roberto Simon, diretor de políticas públicas do Council of the Americas, think tank sediado em Nova York.

Os três jornalistas brasileiros, de diferentes gerações, foram convidados pela Fundação FHC para analisar as tendências eleitorais, os possíveis cenários resultantes do pleito e suas repercussões sobre o mundo em geral e o Brasil em particular. Uma das preocupações neste ano é em relação ao voto pelo Correio, que, embora já exista há bastante tempo, deve ser recorde devido à pandemia, podendo atingir (ou superar) o percentual de 50% do total de votos, o dobro do observado em 2016. Sem apresentar indício ou prova, o presidente Donald Trump, candidato à reeleição pelo Partido Republicano, tem dito que o voto pelo correio pode ser fraudado e incentivou seus eleitores a votar duas vezes (no correio e na urna), o que é ilegal.

“A eleição está sendo muito dura e perdeu-se qualquer limite nas acusações e mentiras que estão sendo ditas. Há dúvida se haverá um resultado claro na madrugada do dia 4 e os dois candidatos já têm legiões de advogados para contestar a votação em diversos estados. Se as disputas se arrastarem, podemos chegar a 20 de janeiro (data da posse) sem que o vencedor seja oficialmente declarado, explicou Sotero, atualmente professor visitante da Elliott School of International Affairs na George Washington University.

“Trump tem dito que a votação pelo Correio não é segura e ameaça não reconhecer o resultado se sair perdedor. Se não houver vencedor claro, haverá contestação judicial. Por este motivo, o Carter Center (que atua como observador em processos eleitorais em diversos países) acompanhará pela primeira vez uma eleição nos Estados Unidos”, disse Trevisan. 

Como já aconteceu em eleições anteriores, a deste ano será definida por um número reduzido de eleitores indecisos em alguns estados-chave, os chamados swing states, que votam ora nos republicanos ora nos democratas. Outro fator que pode mudar o resultado é a taxa de comparecimento às urnas (presencialmente ou pelo correio), já que o voto não é obrigatório. Os EUA têm 255 milhões de eleitores potenciais (americanos com mais de 18 anos) e, nos últimos 50 anos, a eleição que teve maior participação eleitoral foi a de 2008, quando 57% dos eleitores votaram e o democrata Barack Obama conquistou a Casa Branca. 

“A polarização política vem se acentuando nas últimas décadas e, hoje, democratas e republicanos vivem praticamente em universos paralelos, com lugares de moradia, estilos de vida, visões e ideologias totalmente diferentes. Consomem até mesmo mídias diferentes. Cada lado vê o outro como uma ameaça existencial. Tudo isso dificulta entendimentos e políticas públicas consensuais”, explicou Cláudia, mestre em Políticas Públicas Internacionais pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.

“Os EUA vivem uma aguda tensão racial, com sinais de desorganização social em algumas áreas. Há protestos nas ruas e grupos de direita armados. Por enquanto, os grupos mais à esquerda têm conseguido segurar suas bases, mas pode haver enfrentamentos a qualquer momento. Tudo isso põe em dúvida a legitimidade do processo eleitoral e ameaça a tão celebrada democracia norte-americana”, disse Sotero, que vive há décadas nos EUA e é eleitor norte-americano, assim como sua esposa e filhos.

Sotero destacou a importância do resultado das eleições para a Câmara dos Representantes e o Senado: “Se os democratas conquistarem a maioria em ambas as casas, como sugerem algumas pesquisas, o poder de um Trump reeleito ficará seriamente comprometido. Já Biden ganharia muita força para implementar novas políticas.”

O que esperar de Biden ou Trump?

O mundo vive um período de recessão democrática e de crise do sistema internacional construído após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) sob a liderança principalmente dos EUA. Líderes com discurso nacionalista e tendências populistas e autoritárias governam diversos países, entre eles Estados Unidos e Brasil, e analistas que participaram de recentes webinars realizados pela Fundação temem que a reeleição de Trump reforce esses processos. “Se Trump for reeleito, o que resta de multilateralismo dificilmente vai sobreviver. Já Biden deverá se esforçar para revigorar as instituições internacionais, que vêm perdendo poder e influência nos últimos anos”, disse Trevisan.

“Trump coloca pra fora seus instintos de oposição à ordem liberal e aos mecanismos de governança internacional, com boicote à OMC (Organização Mundial do Comércio), críticas  à ONU (Organização das Nações Unidas) e ameaças à OMS (Organização Mundial do Comércio). Também abandonou o Acordo de Paris (sobre mudança climática). Biden propõe o oposto. Quer valorizar as organizações internacionais como espaço de diálogo e cooperação entre os países e se reaproximar de antigos aliados, inclusive como estratégia de  contenção da China. É difícil, no entanto, imaginar que os EUA voltem a ser a grande potência liberal, atuante e influente em todo o mundo, que foi no passado recente”, disse Simon, mestre em Políticas Públicas pela Harvard Kennedy School.

“Na Casa Branca, Biden valorizaria o soft power norte-americano e buscaria mobilizar os EUA e os demais países em torno de ideias como respeito à democracia e aos direitos humanos (inclusive de minorias), competição comercial justa e cooperação global. Já Trump não sabe o que é soft power. Ele quer impor suas vontades aos demais países, como vimos no caso do México, humilhado com ameaças de construção de um muro separando os dois países e fim do Nafta, se as condições impostas por Trump não fossem atendidas”, disse Sotero.

Para Simon, um governo Biden seria mais à esquerda do que o do também democrata Barack Obama (2009-2017): “Biden é um político experiente e bom comunicador, mas nunca teve uma plataforma clara em temas como meio ambiente e igualdade racial. Grupos mais à esquerda do Partido Democrata devem ter bastante influência nessas questões.”

Já Trump não teria compromisso com “os preceitos básicos do Partido Republicano” e, segundo o editor de política da revista Americas Quarterly, “defende ideias que estão mais próximas da Frente Nacional” (partido de extrema direita francês, cuja líder, Marine Le Pen, ficou em segundo lugar nas eleições presidenciais de 2017). “Sob o comando de Trump, o Partido Republicano passou a ser o que ele quiser, com um papel especial destinado a sua família. As tradições e os ideais republicanos pouco importam”, disse.

Relações EUA-China: ‘rivalidade continua, mas há possibilidades de cooperação’

Assim como o cientista político Joseph Nye (Harvard University), Cláudia Trevisan disse ser improvável uma “nova guerra fria” entre Estados Unidos e China. “As trocas comerciais entre Estados Unidos e União Soviética não passavam de US$ 2 bilhões ao ano, já a soma das importações e exportações entre EUA e China hoje chegam a US$ 2 bilhões por dia. A grandeza do comércio sino-americano representa, sem dúvida, um pilar de estabilidade nas relações entre as duas potências”, disse. 

A ex-correspondente em Pequim, Nova York e Washington (Folha ou Estadão) trouxe dados que impressionam: segundo a Câmara de Comércio Americana na China, 70% das empresas norte-americanas não têm intenção de deixar o país, pelo contrário, anunciaram novos investimentos no país. Desde 2009, a China já é a segunda maior economia do mundo e em breve será o maior mercado consumidor, com 1,4 bilhão de habitantes cujos hábitos de consumo evoluem rapidamente à medida que o nível de vida melhora.

Segundo Cláudia, que voltou ao Brasil há poucos meses para assumir o cargo de diretora executiva do Conselho Empresarial Brasil-China, a rivalidade comercial e tecnológica entre Washington e Pequim permanecerá mesmo no caso de vitória de Biden, mas haverá esforços de cooperação em questões de interesse global, como a mudança climática. Em 2014, Obama anunciou um acordo com a China para combater o aquecimento global, cancelado por Trump após sua posse.

“EUA e China disputam quedas-de-braço em três áreas principais: no comércio, com acusações de violação de patentes e subsídios excessivos; na área tecnológica, com destaque para o 5G; e na área financeira. A China, sempre acusada de manter sua moeda (renminbi) desvalorizada para reforçar suas exportações, lançou recentemente uma moeda digital com o objetivo de diminuir a influência do dólar nas trocas internacionais. Essas disputas fazem parte do jogo e continuarão, mas existe espaço para um trabalho conjunto e maior cooperação em diversas outras áreas”, disse Roberto Simon.

América Latina: ‘Espaço para Washington impor sua vontade diminuiu muito’

Questionada sobre a possibilidade de Trump, se reeleito, tentar colocar pressão sobre o Brasil e outros países latino-americanos para reduzir a presença chinesa no continente, Trevisan respondeu que “o espaço para os EUA imporem sua vontade na região diminuiu muito nos últimos 20 anos”.

Novamente, Cláudia apresentou números: anteriormente, 25% das exportações brasileiras eram destinadas aos EUA, hoje são apenas 10%, enquanto 40% vão para a China. Argentina, Peru e Chile também têm a China como principal parceira comercial. Por fim, a China é hoje o maior investidor na América Latina, principalmente na produção de commodities e nos setores de energia e infraestrutura.

“Para Washington, interessa que a América Latina seja estável e próspera. Tentativas de prejudicar a China para reduzir sua presença na região podem comprometer tal estabilidade. O melhor seria os EUA adotarem uma política mais pragmática. Biden tem mais condições de fazer isso”, concluiu Trevisan.

“Biden daria maior ênfase à relação com a América Latina do que Trump, mas o Brasil vai pro fim da fila enquanto a política externa adotada pelo governo Bolsonaro não mudar”, disse Paulo Sotero. “O Brasil tem tudo pra ser uma voz importante nas áreas de segurança alimentar e clima, mas não este Brasil de hoje. Para ser ouvido no mundo, o país precisa atuar de forma inteligente e articulada tanto nas relações bilaterais como nos fóruns internacionais. Se fizer isso, terá espaço para defender seus interesses junto a um eventual governo Biden e a Pequim. Já de Trump, não devemos esperar nada”, afirmou o ex-diretor do Brazil Institute na capital americana.

“A relação entre Bolsonaro e Trump foi um caso de amor platônico que não se concretizou”, brincou Roberto Simon, que há anos se dedica a pesquisar e escrever sobre a América Latina e suas relações com o mundo. “Por mais que os democratas estejam descontentes com o apoio explícito do presidente brasileiro ao rival republicano, não interessa a Biden criar uma crise com Brasília. Existem, no entanto, alguns riscos que poderiam abrir caminho para isso, como uma ruptura institucional no Brasil ou um desastre ambiental de grandes proporções na Amazônia”, disse. 

Simon vê “linhas de continuidade e de mudança” nas relações dos EUA com a América Latina, no caso de vitória do democrata. “Biden faria alterações importantes na política de imigração, o que tem forte impacto para a região. Também deve retomar a normalização das relações diplomáticas e econômicas com Cuba, que avançou com Obama e retrocedeu com Trump. Não vejo, no entanto, grandes novidades em relação à Venezuela, enquanto Maduro seguir no poder as sanções devem continuar, e no relacionamento com a Colômbia, que já há alguns anos anda unha e carne com os EUA, ou mesmo com o México”, concluiu.

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Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.