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26 de novembro de 2024

Eleições, Direito de Voto e Democracia: Estados Unidos e Brasil em Perspectiva Comparada

O debate discutiu a importância que as instituições e as legislações eleitorais têm na sustentação da democracia e as diferenças recentemente observadas no Brasil e nos Estados Unidos.

“A Constituição norte-americana garante o direito universal ao voto?” Com esta pergunta provocativa, o professor Joshua A. Douglas (University of Kentucky J. David Rosenberg College of Law) deu início à sua palestra na Fundação Fernando Henrique Cardoso em novembro de 2024, poucos dias após as eleições presidenciais que marcaram o retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca. 

“O direito universal ao voto não está listado como um direito afirmativo na Constituição dos Estados Unidos da América (1787). Ele aparece sempre na negativa, em frases como ‘nenhum estado (do país) pode rejeitar o direito ao voto com base em raça, sexo ou incapacidade de pagar impostos’”, disse o pesquisador norte-americano especializado em temas como direito ao voto, legislação eleitoral e direito constitucional.

Diferentemente do Brasil — onde as eleições têm regras e procedimentos válidos para todo o país, e são realizadas pelo Tribunal Superior Eleitoral, presidido por um ministro do Supremo Tribunal Federal, com auxílio dos tribunais regionais eleitorais —, nos EUA as eleições para presidente e para o Congresso (Câmara dos Representantes e Senado) são realizadas em cada um dos 50 estados. As regras e procedimentos podem mudar de um estado para outro e quem tem a prerrogativa de definir as regras é o Legislativo estadual.

Palestra de Joshua A. Douglas na Fundação FHC — Foto: Vinicius Doti

“Cada estado pode organizar as eleições como achar melhor. Quando acionada, a Corte Suprema pode decidir se determinada regra ou procedimento é constitucional ou não, criando assim uma jurisprudência federal. Em alguns momentos de nossa história, a Corte Suprema garantiu de forma robusta o direito ao voto, mas na minha opinião ela tem abdicado dessa responsabilidade nos últimos tempos”, disse Douglas.

Como uma decisão robusta do passado, ele citou a Equal Protection Clause (Cláusula de Igualdade de Proteção, a 14ª emenda à Constituição ratificada em 1868), que determina que nenhum estado norte-americano deve negar a qualquer pessoa a igual proteção das leis em sua jurisdição. Aplicada à legislação eleitoral pela Corte Suprema, ela impede que o direito ao voto seja negado a qualquer cidadão ou cidadã em função de características como sexo, raça etc. Ou seja, o direito ao voto deve ser garantido de maneira igualitária para toda a população do estado.

Em seu último livro — “The Court v. The Voters: The Troubling Story of How the Supreme Court Has Undermined Voting Rights” (Beacon Press 2024) — o autor descreve dez casos em que a Corte Suprema, na sua opinião, teria decidido contra os eleitores. “A Corte busca encontrar um balanço entre o direito dos estados de decidir sobre as suas eleições e o direito dos eleitores de votar, mas na minha visão ela tem sido condescendente com os estados, em prejuízo dos direitos dos cidadãos”, afirmou.

“Qual é o principal objetivo de uma pessoa após ser eleita para um cargo público importante? Ser reeleita no pleito seguinte. Umas das maneiras mais eficientes de garantir isso é mudando as regras do jogo de forma a facilitar que seus eleitores votem e aqueles que não votaram em você não votem. Desde 2020, diversos estados norte-americanos aprovaram regras de votação mais restritivas, que dificultam o acesso de parte da população à urna. Em vez de interferir para impedir que isso aconteça, a Corte Suprema tem preferido deixar que a própria dinâmica do processo democrático em cada estado encontre suas soluções”, explicou.

Palestra de Joshua A. Douglas na Fundação FHC — Foto: Vinicius Doti

Como exemplo de medidas restritivas, ele citou dificuldades para o eleitor se registrar para poder votar, empecilhos ao voto pelo correio ou mesmo falta de clareza na definição dos distritos eleitorais. O Partido Republicano tem sido o autor dessas iniciativas que visam restringir o voto de comunidades que tendem a votar no Partido Democrata. Elas têm ocorrido sobretudo em estados onde os republicanos detêm a maioria da assembleia legislativa. 

“A jurisprudência recente da Suprema Corte em relação ao direito ao voto é perigosa não somente por não garantir de forma mais contundente o direito universal ao voto, mas porque vários cortes estaduais acabam seguindo as decisões da Corte ainda que a constituição do próprio estado seja mais robusta do que a Constituição federal em relação ao direito ao voto”, concluiu.

A Corte Suprema dos Estados Unidos é composta por nove juízes e tem atualmente uma maioria conservadora, com seis juízes mais alinhados às ideias do Partido Republicano e três juízes mais próximos às ideias do Partido Democrata, embora não seja possível sempre classificar as decisões dos magistrados em um dos dois campos político-ideológicos. Em seu segundo mandato, Trump poderá ampliar essa maioria e, assim, garantir uma Corte Suprema ainda mais conservadora por muitos anos.

O direito universal ao voto não está listado como um direito afirmativo na Constituição dos Estados Unidos da América. Ele aparece sempre na negativa, em frases como ‘nenhum estado (do país) pode rejeitar o direito ao voto com base em raça, sexo ou incapacidade de pagar impostos.

Joshua A. Douglas, professor da University of Kentucky J. David Rosenberg College of Law

Brasil tem voto obrigatório e universal, mas democracia não é plena

“No Brasil, o voto é obrigatório e universal, embora na prática não seja tão democrático como determina a Constituição de 1988”, disse a jornalista Thais Bilenky, colunista do UOL e apresentadora dos podcasts “A Hora” e “Lira: os atalhos do Poder”. “O voto é assegurado constitucionalmente, mas é falho devido à combinação do poder do status quo com uma formação política deficiente.”

Especializada na cobertura de processos eleitorais, Bilenky citou o uso excessivo e ilegal da máquina pública como um fator que distorce os resultados eleitorais. “Tem o prefeito que asfalta a rua na véspera da eleição, o presidente que adota medidas populistas para tentar se reeleger, o deputado que destina emendas com fins puramente eleitoreiros. E tem até a compra de votos da maneira mais escancarada, por meio da coação de eleitores por empresários inescrupulosos e facções criminosas.”

A jornalista Thais Bilenky em uma palestra na Fundação FHC — Foto: Vinicius Doti

Segundo a jornalista, embora existam leis nacionais claras, “a fiscalização dos crimes eleitorais é muito complicada em um país continental como o Brasil e, quando a Justiça eleitoral decide punir um candidato ou partido, às vezes já é tarde demais”.

“O voto popular direto para eleger os governantes é um bom caminho, mas não garante a democracia plena de um país. É preciso fortalecer as instituições que garantem e supervisionam a democracia e investir na politização da sociedade, para que os eleitores tenham maior clareza sobre o papel dos governantes e de seus representantes e consciência de seus direitos cidadãos”, concluiu.

Colégio Eleitoral distorce resultados, mas mudar regras é muito difícil

Durante sua fala, o professor Joshua Douglas deu uma detalhada explicação sobre as origens do sistema de eleição do presidente dos Estados Unidos por um Colégio Eleitoral — onde cada estado tem um número de votos (ou delegados) e são esses delegados que elegem o presidente. De acordo com esse sistema, chega à Casa Branca não o candidato que tiver mais votos nacionalmente, mas aquele que garantir 270 dos 538 delegados no Colégio Eleitoral.

“Quando o país foi fundado no final do século 18, e os representantes dos treze estados originais se reuniram para escrever a Constituição, alguns defendiam o voto direto para a escolha do presidente, outros achavam que deixar essa função nas mãos das pessoas era muito perigoso. Pensou-se em delegar a escolha do presidente ao Congresso, mas venceu o argumento de que o Executivo deveria ter independência em relação ao Legislativo. Surgiu então a ideia do Colégio Eleitoral”, explicou.

No Colégio Eleitoral, cada estado tem uma quantidade de votos equivalente ao número de deputados que possui na Câmara dos Representantes, mais dois votos que equivalem aos dois senadores por estado. “Esse sistema faz com que estados rurais e menos populosos tenham um peso maior no Colégio Eleitoral. É o caso, por exemplo, de Wyoming, que tem menos de 600 mil habitantes e um deputado na Câmara dos Representantes, mas soma três votos no Colégio Eleitoral. Já a Califórnia, o estado mais populoso com 39 milhões de habitantes, tem 54 votos no Colégio Eleitoral”, explicou.

Na quase totalidade dos estados norte-americanos, vale a regra do “ganhador leva todos os delegados”. Ou seja, o candidato que vencer a eleição em um determinado estado conquista todos os delegados daquele estado no Colégio Eleitoral. Nebraska e Maine, dois estados pouco populosos, são as exceções: nesses dois estados, os delegados podem ser divididos entre os dois partidos, Republicano e Democrata, de acordo com o resultado eleitoral no estado como um todo e nos distritos eleitorais.

“Os defensores do Colégio Eleitoral dizem que ele garante que as áreas rurais de estados menos populosos tenham maior influência na eleição do presidente, evitando que as principais cidades e os estados mais populosos determinem o resultado. Na prática, há uma distorção dos resultados, o que faz com que a vitória de Trump, que obteve 312 votos contra 226 de Kamala Harris no Colégio Eleitoral, pareça maior do que a de fato ocorrida. Trump alega ter recebido um mandato massivo nas eleições de 6 de novembro, mas a diferença entre ele e Kamala foi de cerca de 3 milhões de votos, equivalente a menos de 2% dos 155 milhões de norte-americanos aptos a votar”, disse.

Palestra de Joshua A. Douglas na Fundação FHC — Foto: Vinicius Doti

Em 2000 e 2016, aconteceu algo ainda mais surpreendente: o candidato que obteve os votos necessários para se eleger presidente no Congresso Eleitoral perdeu no voto popular. Em 2000, o republicano George W. Bush teve menos votos do que o democrata Al Gore, mas obteve maioria no Colégio Eleitoral e conquistou a Casa Branca. Em 2016, Trump teve menos votos nacionalmente do que Hillary Clinton, mas superou a democrata no Colégio Eleitoral.

“É difícil mudar as regras atuais porque os republicanos têm se beneficiado delas nas últimas eleições. Para que admita uma mudança, o Partido Republicano teria que vencer no voto popular, mas perder no Colégio Eleitoral. Isso quase aconteceu em 2004, quando Bush, candidato à reeleição, teve mais votos nacionalmente, mas se John Kerry tivesse vencido em Ohio, onde perdeu por apenas 60 mil votos, o democrata teria obtido 270 votos no Colégio Eleitoral e teria sido eleito”, explicou.

“Por enquanto os republicanos não querem nem ouvir falar de qualquer mudança no Colégio Eleitoral, mas, mesmo que houvesse algum acordo entre os partidos, a mudança teria de ser feita por emenda constitucional, o que exige dois terços dos votos nas duas casas do Congresso e a ratificação por três quartos dos estados. Isso simplesmente não vai acontecer”, afirmou.

“Não podemos confiar no Congresso para aprovar mudanças no sistema eleitoral. E não podemos confiar na Suprema Corte para garantir o direito universal ao voto. As regras locais são a chave para aprimorar o sistema, mas para que elas sejam justas é necessário que os dois lados, republicanos e democratas, cooperem na busca de soluções, por meio de reformas bipartidárias”, concluiu.

Financiamento de campanha nos Estados Unidos e Brasil

Convidado a comentar a fala do especialista norte-americano, o juiz José Wellington Bezerra da Costa Neto, que foi assessor da Presidência do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP), optou por fazer perguntas, entre elas sobre o financiamento público e privado de campanha.

“Em 2015, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucionais as doações eleitorais feitas por empresas e um dos argumentos para aquela decisão foi a de que as corporações não são cidadãos e não devem ter o poder de interferir no processo eleitoral. Mas também há críticas à alternativa do financiamento público das campanhas, que seria imoral por retirar recursos escassos que deveriam ser aplicados em saúde, educação, por exemplo. Como essa questão é vista nos Estados Unidos?”, perguntou.

O juiz José Wellington Bezerra da Costa Neto em uma palestra na Fundação FHC — Foto: Vinicius Doti

“Nos Estados Unidos, as doações eleitorais feitas por empresas fazem parte do direito de expressão garantido pela Constituição. Assim como as pessoas físicas, as corporações têm garantido o direito de expressão e doar dinheiro para este ou aquele candidato é uma forma delas se expressarem”, respondeu Douglas.

Segundo o especialista, o financiamento público eleitoral não está previsto nacionalmente, mas em alguns estados ou cidades há iniciativas que vão nessa direção. “Em Seattle, por exemplo, foi criado o programa Democracy Vouchers, em que eleitores registrados podem destinar quatro vouchers no valor de US$ 25 a candidatos de sua preferência. Pouco a pouco, vão surgindo algumas inovações.”

Para Joshua Douglas — que esteve no Brasil por cerca de uma semana na segunda quinzena de novembro, com o objetivo de conhecer o sistema eleitoral brasileiro como parte de suas pesquisas sobre o assunto —,  tanto aqui como lá é fundamental investir na educação cívica dos jovens. 

“Precisamos rever como ensinamos as crianças, os jovens e até mesmo os adultos sobre o valor da democracia. Para engajar os cidadãos no processo político de maneira mais saudável, é fundamental ter diálogo sobre coisas que de fato interessam às pessoas e mostrar como as ações de governo impactam suas vidas. É preciso restaurar a credibilidade da política”, concluiu.

Baixe gratuitamente o livro digital “Desafios do Sistema Político Brasileiro”, publicado pela Plataforma Democrática, uma iniciativa da Fundação FHC.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.

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