Discriminação contra a Mulher: desafios a superar no mundo e no Brasil
“Ao negar a existência de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, a neutralidade de gênero significa cegueira de gênero”, afirmou Lilian Hofmeister, juíza e membra suplente do Tribunal Constitucional da Áustria.
“Ao negar a existência de relações desiguais de poder entre homens e mulheres, a neutralidade de gênero significa cegueira de gênero.”
Lilian Hofmeister, juíza, é membra suplente do Tribunal Constitucional da Áustria
“No Brasil, a Constituição de 1988 deixou muito claro que a legislação internacional, e muito especificamente no que diz respeito aos direitos humanos, compõe e integra o ordenamento jurídico brasileiro.”
Sílvia Pimentel, professora doutora na Faculdade de Direito da PUC-SP
O direito internacional progrediu nos últimos anos em relação ao tratamento dado à discriminação contra as mulheres, mas esse esforço deve continuar para suprir as lacunas ainda existentes e garantir maior efetividade no cumprimento dos regramentos pelos países signatários dos diversos acordos existentes. As palestrantes Lilian Hofmeister e Sílvia Pimentel, integrantes do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da Organização das Nações Unidas (CEDAW/ONU) em diferentes momentos, apresentaram nesse debate alguns marcos do caminho percorrido a respeito do tema.
O processo de construção internacional dos acordos sobre a violência contra a mulher foi inaugurado em 1948 com a Declaração Universal de Direitos Humanos. “Após a Declaração Universal foram sendo construídos vários tratados e convenções, que compõem o sistema internacional atualmente vigente”, explicou Pimentel.
Segundo Hofmeister, a Declaração Universal representou um avanço importante, mas, ao colocar todos os seres humanos sob o mesmo guarda chuva de proteção aos direitos humanos, independentemente de gênero, ela não deu uma resposta necessária e adequada à desigualdade das relações de poder observada em todo o mundo desde tempos remotos. A Declaração mostrou-se neutra em matéria de gênero. “Neutralidade de gênero significa cegueira de gênero”, afirmou a juíza austríaca.
Em 1967, a Assembleia Geral da ONU proclamou a Declaração sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher. Passo importante, mas os princípios constantes da Declaração continuaram no papel nos anos seguintes, de acordo com Pimentel, fundadora e membra do Comitê Latino Americano e do Caribe. Foi somente em 1979, com a aprovação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (CEDAW), que as Nações Unidas definiram de forma mais clara no que consistiam essas formas de discriminação e assim abriram uma agenda mais efetiva de medidas para combatê-las. “A convenção de 1979 (que entrou em vigor em 1981) surgiu de um compromisso da chamada ‘década da mulher’, em que a própria ONU realizou três grandes conferências internacionais sobre o assunto”, ressaltou a professora da Faculdade de Direito da PUC-SP. Na sua criação, 64 países assinaram a Convenção. Hoje, a Convenção conta com 189 signatários, entre eles o Brasil.
A especialista brasileira, uma das líderes da causa feminista no país desde os anos 80, disse que durante muitos anos “não havia condições políticas (no cenário internacional) para que uma convenção determinasse que a violência contra a mulher é algo absolutamente inaceitável e que cada país deve ser considerado responsável (por coibir e punir a violência contra a mulher em seu território)”.
Para monitorar a implementação da Convenção, criou-se em 1982 um Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da Organização das Nações Unidas (Comitê CEDAW/ONU) formado por 23 especialistas, que Pimentel integrou de 2005 a 2016 e presidiu de 2011 a 2012. Hofmeister integra o órgão desde 2015. Além de verificar o cumprimento das determinações da CEDAW pelos países signatários, o Comitê elabora também recomendações gerais para suprir as lacunas e atualizar o documento.
Entre os avanços recentes, Pimentel citou a Recomendação Geral nº 33 de 2015, que trata do acesso à justiça pelas mulheres: “Sem garantia de acesso à justiça pelas mulheres vítimas de violência, os direitos previstos na constituição e na legislação ordinária dos países signatários praticamente não têm efetividade”, afirmou.
Lilian Hofmeister destacou também a importância da Recomendação Geral nº 35 de 2017, em que a violência contra as mulheres e meninas passou a ser definida como aquela “imposta às mulheres pelo fato de serem mulheres ou que as atinge desproporcionalmente”.
Feminicídio
Segundo a juíza suplente do Tribunal Constitucional da Áustria, “as mulheres conhecem muitas formas de violência, estrutural e individual, na esfera pública ou privada, física, mental, psicológica e econômica”. Para combater a forma mais grave do problema, isto é, a morte de mulheres pelo fato de serem mulheres, alguns países, especialmente na América Latina, adotaram a expressão “feminicídio”. O Brasil, por exemplo, criou em 2015 a Lei do Feminicídio, lembrou Pimentel.
Hofmeister defendeu a importância de se distinguir os assassinatos de mulheres e de homens. “As estatísticas sobre homicídios mostram que mais homens do que mulheres são vítimas de assassinato. Significa que o feminicídio seja menos prevalente? Isso é um equívoco. O fato é que as circunstâncias em que as mulheres são mortas são diferentes. Os homens são mortos no espaço público e a violência dos agressores ocorre por diferentes motivações (não pelo fato de serem homens). A violência contra as mulheres e meninas acontece sobretudo na esfera privada, perpetrada por pais e maridos”. Para a juíza, a violência contra as mulheres geralmente está relacionada ao controle da sexualidade feminina. Na maior parte dos casos, é o último ato de uma sequência de atos violência que visam a mulher pelo fato de ela ser mulher. O peculiar contexto social do assassinato de mulheres justifica, na sua visão, a criação de um tipo penal específico para punir quem o pratica. E com pena maior: “o feminicídio é um crime de ódio e crimes de ódio têm penalidades maiores”.
Pimentel acrescentou à tese de Hofmeister o argumento de que qualquer violência é mais grave se ocorre na esfera privada, familiar, da intimidade. Ela lembrou, no entanto, que a punição, apesar de necessária, não é um objetivo em si mesma. “Nós (feministas) queremos educação, queremos fundamentalmente prevenção”, concluiu a professora.
Papéis Sociais e violência contra a mulher
No Brasil, a Lei Maria da Penha conceitua as diferentes manifestações de violência contra a mulher e suas punições desde 2006 e, como afirmou a pesquisadora brasileira, é uma das leis mais conhecidas do país, o que já representa um grande avanço.
“Mas por que violência contra a mulher? É porque ela nasceu mulher biologicamente?”, questionou Pimentel. Para ela “gênero é um conceito dinâmico e nós devemos tomar a sério as elaborações filosóficas e científicas que têm surgido mais recentemente”. “As mulheres se tornam alvo de violência (porque e quando) não cumprem à risca o papel (que a sociedade delas espera)”, disse.
Hofmeister reforçou o argumento da assimetria de poder entre homens e mulheres: “a hierarquia baseada em gênero atua para manter uma distribuição de poder prejudicial para mulheres e meninas”. Como Pimentel, ela vê na violência contra a mulher uma represália pelo não cumprimento de papéis subordinados que lhes são tradicionalmente atribuídos em sociedades patriarcais.
Onda conservadora
As duas palestrantes demonstraram preocupação com a onda conservadora que ameaça diferentes regiões e países. Para a professora da PUC-SP, o direito internacional deve servir de bússola para frear retrocessos na prevenção, combate e punição às discriminações e na redução das desigualdades entre homens e mulheres. “A Constituição de 1988 deixou muito claro que a legislação internacional, e muito especificamente no que diz respeito aos direitos humanos, compõe e integra o ordenamento jurídico brasileiro”, disse Pimentel.
“O direito internacional é uma ferramenta fundamental para ajudar não só (a suprir) lacunas, mas também em certos momentos (para limitar) interpretações desfavoráveis em termos de garantias de direitos”, concluiu a jurista brasileira.
Beatriz Kipnis, mestre e bacharel em Administração Pública e Governo (FGV-SP), é assistente de coordenação de Estudos e Debates na Fundação FHC.