Desafios e oportunidades da inteligência artificial para o Direito e a Justiça
Como a IA afetará a prestação de justiça, o ensino, as profissões jurídicas e a operação do Direito? Que benefícios podemos colher e que armadilhas devemos evitar?
Os dados pessoais que hoje circulam nas redes são “a base da nova economia e o combustível para os algoritmos da Inteligência Artificial, a Internet das Coisas e outras inovações tecnológicas”, disse o advogado Ronaldo Lemos, especializado em tecnologia. Segundo o professor visitante da Columbia SIPA (NY), a nova Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que entrará em vigor em 2020, terá dupla função. Por um lado, protegerá direitos fundamentais do cidadão, entre eles a privacidade de seus dados. Por outro, definirá regras para que essa “nova economia” deslanche no país.
“(Os dados) são a representação de todos nós no mundo virtual, nossos avatares. Cada vez mais decisões fundamentais de empresas e governos são tomadas a partir de sua coleta e análise. Por isso é tão importante regulamentar seu uso e definir como deve ser a tutela coletiva deles”, disse Lemos, um dos autores do Marco Civil da Internet (2014). “Ao estabelecer todo um rol de novos direitos e deveres, a LGPD deve se tornar tão relevante como o Código de Defesa do Consumidor (1990)”, concluiu o fundador e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Paulo Sanseverino: ‘ponto de equilíbrio’
“A nova LGPD representa o ponto de equilíbrio entre o necessário desenvolvimento tecnológico e a proteção da privacidade dos cidadãos brasileiros”, afirmou o ministro do Superior Tribunal de Justiça Paulo de Tarso Sanseverino.
“Ao estabelecer princípios, práticas e limites para a coleta legítima e consensual de dados e seu tratamento, a nova lei cria um novo paradigma no direito brasileiro. Também define as responsabilidades administrativa, civil e de compliance e quais as consequências em caso de violação”, explicou o juiz.
Peter Messite: Congresso dos EUA sofre pressão para criar lei
Os Estados Unidos ainda não possuem uma lei federal de proteção da privacidade digital, mas alguns juízes norte-americanos já reconheceram a validade de ações individuais ou coletivas por invasão de privacidade, negligência ou fraude e estabeleceram responsabilidades por violação de danos, explicou Peter Messite, juiz federal do Distrito de Maryland (Estado na região nordeste dos EUA).
Segundo o magistrado, alguns estados norte-americanos, entre eles a Califórnia, já aprovaram legislação que garante aos cidadãos o direito de saber quando e como seus dados são coletados e impede que eles sejam vendidos para outras empresas sem seu consentimento explícito.
“Preocupadas com a perspectiva de estarem sujeitas às leis de 50 estados, as grandes empresas de tecnologia já pressionam o Congresso para criar um estatuto federal. A dúvida é em relação a qual seu formato. O desafio é equilibrar os benefícios e os prejuízos econômicos e sociais”, disse Messite, que dirige o Programa Brasil-EUA de Estudos Legais na American University Washington College of Law.
Oscar Vilhena: ‘direitos humanos da era tecnológica’
Para o professor de Direito Constitucional e Direitos Humanos Oscar Vilhena, a utilização da quantidade maciça de dados que circulam nas redes, seja com objetivos econômicos, políticos ou outros, produz impactos individualizados e sistêmicos. “Surge uma nova área do direito, os direitos humanos tecnológicos”, disse.
Segundo Vilhena, o mundo do direito resistiu o quanto pôde à aceleração dos processos tecnológicos, entre eles a digitalização de processos, as audiências à distância e, mais recentemente, a Inteligência Artificial, que promete automatizar diversas tarefas antes realizadas por humanos. “Construímos barreiras para que a atividade jurídica fosse menos impactada, mas elas estão sendo desconstruídas rapidamente. As lawtechs estão chegando com força e as tradicionais firmas de advocacia terão de incorporar essas ferramentas e trabalhar em parceria com elas ou serão substituídas”, afirmou.
Vilhena citou estudo da American Bar Association que estima que 40% dos trabalhos feitos por advogados serão automatizados. “Os computadores vão automatizar e agilizar diversos aspectos do dia a dia da profissão, mas não são capazes de fazer uma análise jurídica complexa e profunda, definir estratégias jurídicas ou mesmo escrever uma defesa ou um parecer”, disse.
Diretor da Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), Vilhena disse que as faculdades de direito devem incorporar o contexto da tecnologia em todas as áreas de estudo, dos contratos ao direito constitucional. E desenvolver projetos e clínicas para que os estudantes se tornem profissionais híbridos e possam atuar com desenvoltura no campo jurídico-tecnológico. “As escolas que não se adaptarem se tornarão irrelevantes”, concluiu.
Lemos: ‘Dados vazam e causam graves danos ambientais’
“Os dados são o ‘novo petróleo’: também vazam e produzem ‘danos ambientais’ que podem durar anos para serem reparados”, disse Ronaldo Lemos, metaforicamente.
O advogado lembrou que o Estado é um grande coletor de informações sobre o cidadão e, como exemplo, citou o SUS (Sistema Unificado de Saúde). “Se não souber utilizar esses dados para melhorar a vida das pessoas, o Executivo perderá capacidade de fazer política pública”, afirmou.
Como recentes exemplos positivos, ele citou dois países bastante díspares. A Estônia, com apenas 1,3 milhão de habitantes, reuniu todos os serviços públicos em um único portal. A Índia, com 1,3 bilhão de pessoas, também investe pesado para tornar o Estado acessível remotamente.
“A matéria prima do Judiciário também é a informação. Se não se digitalizar rapidamente, a Justiça brasileira também perderá a capacidade de julgar”, alertou.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.