Desafios à memória histórico-cultural em sociedades contemporâneas
“Estamos desaprendendo a viver com o nosso passado. Mas o que pode nos capacitar para entender os processos em andamento?”, disse o arqueólogo e historiador de arte italiano Salvatore Settis.
“Para conservar e alimentar uma memória que sirva de algo, a arma que temos é chamada de cultura, no sentido de conhecimento histórico, disposição crítica, comunicação intercultural, impulso criativo, cultivo da memória cultural por meio da pesquisa, das instituições educativas e dos museus. Finalmente, a ligação muito forte e essencialmente política entre o horizonte dos direitos civis e as práticas de pesquisa, educação e conservação.”
“Temos a certeza de compreender plenamente os grandes e contínuos desafios à memória histórico-cultural nas sociedades contemporâneas? Por exemplo, a destruição intencional de obras de arte, a negligência que aflige monumentos e paisagens, o declínio de cidades históricas e a disseminação de guetos urbanos? Esses e outros sintomas de uma crise que não é apenas econômica e política, mas cultural, exigem um olhar analítico, apoiado por pesquisas específicas. Estamos desaprendendo a viver com o nosso passado, que não podemos mais olhar, se não com nostalgia ou desconforto. Mas o que, se não o exercício criativo da memória histórico-cultural, pode nos capacitar para entender os processos em andamento?”
Salvatore Settis, arqueólogo e historiador de arte italiano, professor catedrático de arqueologia grega e romana, presidiu o Conselho Superior do Patrimônio Cultural da Itália
A memória histórico-cultural não tem sido tratada com a centralidade que deveria, sendo alocada em segundo plano em relação aos interesses e valores do mercado. Mas é justamente no resgate da memória histórico-cultural que podem estar as chaves para lidar com as crises atuais, como o caso da imigração na Europa e todos os conflitos por ela gerados. Essa foi a conclusão principal da palestra de Salvatore Settis na Fundação FHC.
A transcrição completa, traduzida para o português por iniciativa do Instituto Italiano de Cultura de São Paulo, está disponível abaixo.
Desafios à memória histórico-cultural em sociedades contemporâneas
Salvatore Settis
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer à Fundação Fernando Henrique Cardoso e ao Instituto Italiano de Cultura de São Paulo por este convite e pela oportunidade que me foi oferecida de dialogar com vocês. Um agradecimento especial ao prof. Michele Gialdroni, Diretor do ICC, e ao prof. Luciano Migliaccio da FAU-USP, que organizou minha viagem ao Brasil. É muito importante para mim.
A partir da perspectiva europeia que é minha, nesta conferência gostaria de focar no momento presente, mas partindo de duas datas colocadas nos extremos, uma no passado, outra no futuro.
Primeira data, 29 de abril de 1770. Naquele dia, o navio britânico Endeavour, capitaneado por James Cook, avistou as costas da terra que hoje chamamos de Austrália e parou em Botany Bay (não longe de Sydney). Quando o navio chegou, havia um grande grupo de aborígenes na praia. Ao ver a embarcação, muito diferente de tudo o que conheciam, eles não ficaram perturbados: esse objeto vindo do nada estava tão além de sua compreensão, que poderia ser ignorado como um distúrbio passageiro de seus horizontes de percepção, que seria cancelado assim como surgira. Mas tudo mudou quando um barco foi baixado do navio, e os marinheiros começaram a remar em direção ao litoral. Um bote pequeno (semelhante às canoas usadas por eles) era mais fácil de “classificar” porque se assemelhava a experiências já vividas. Então quase todos fugiram com medo, deixando na praia algumas crianças e alguns guerreiros, que tentaram acertar os invasores com as lanças.
A moral da história é simples: quando somos subjugados por um evento ou um perigo desconhecido – ao qual não podemos dar uma forma ou um nome -, costumamos reagir ignorando-o. “O que é radicalmente e imensamente estranho para nós pode escapar à nossa atenção”, comenta a historiadora americana Julia Thomas. Toda cultura humana – incluindo a nossa – decifra o mundo com base em sua própria experiência. Esse mecanismo, na maioria dos casos inconsciente, nos guia e nos limita; nos dá segurança, confirmando-nos naquilo que já sabemos, mas avalia e seleciona o que não sabemos (ainda) tornando-o instintivamente semelhante a algo que já conhecemos. Em resumo, tendemos a reconhecer mais do que analisar. Assim como os aborígines de Botany Bay, vemos “o que queremos ver”, não o que realmente está acontecendo.
Vamos, portanto, nos perguntar: temos a certeza de compreender plenamente os grandes e contínuos desafios à memória histórico-cultural nas sociedades contemporâneas? Por exemplo, a destruição intencional de obras de arte, a negligência que aflige monumentos e paisagens, o declínio de cidades históricas e a disseminação de guetos urbanos? Esses e outros sintomas de uma crise que não é apenas econômica e política, mas cultural, exigem um olhar analítico, apoiado por pesquisas específicas. Estamos desaprendendo a viver com o nosso passado, que não podemos mais olhar, se não com nostalgia ou desconforto. Mas o que, se não o exercício criativo da memória histórico-cultural, pode nos capacitar para entender os processos em andamento?
A segunda data que queria mencionar é o ano de 2061, o cenário, uma Nova York pós-apocalíptica. Na praça há uma longa fila que avança disciplinada. Dois, três de cada vez, param em frente à Mona Lisa apoiada na parede, cospem na pintura e vão embora.
“Por que fazemos isso?”, pergunta Tom, um menino. Grigsby responde: “Tem a ver com o ódio. Ódio por qualquer coisa que pertença ao passado. Como chegamos a essas cidades em ruínas, essas estradas despedaçadas pelas bombas, esses campos de trigo radioativos, as casas destruídas, os homens morando em cavernas? Nós devemos odiar o mundo que nos trouxe aqui. Não resta mais nada a não ser celebrar destruindo”. Esse trecho é extraído de um conto escrito em 1952 por Ray Bradbury, o mesmo que pouco depois publicaria a novela Fahrenheit 451, sobre uma sociedade em que a leitura de um livro é considerada um crime. Desta cena imaginária, sublinho um ponto: a força sem precedentes que as obras de arte possuem; a capacidade que elas demonstram de condensar toda uma civilização, oferecendo-a à veneração ou ao insulto. Se uma pintura de Leonardo pode ser considerada “culpada” de uma guerra nuclear, é porque a cultura que ela representa não evitou o desastre, por isso deve ser ritualmente repudiada, “condenada à morte”. Com efeito, a história de Bradbury termina com a multidão despedaçando a pintura: a sua destruição revela que a arte (a beleza) merece simbolizar a civilização que a criou, mas também seus fracassos.
A iconoclastia, por sua natureza radical, é um bom ponto de observação para falar sobre os desafios à memória histórico-cultural nas sociedades contemporâneas. Costumamos considerá-la um corpo estranho à cultura “ocidental”, atribuindo-a exclusivamente ao islamismo, ou, no máximo, a uma fase passageira da história religiosa bizantina. Não é assim. Para compreender isso é suficiente se mudar de Bizâncio para Turim, onde, durante doze anos (desde 816 a 828) o bispo Claudio foi campeão irredutível de iconoclastia militante, ao ponto de que, de acordo com o seu contemporâneo Jonas de Orleans, ele “animado por zelo sem limites e sem freios, destruiu e abateu em todas as igrejas da diocese não só as pinturas de história sagrada, mas até mesmo todas as cruzes”.
Mas vamos passar a palavra ao próprio Cláudio de Turim:
“Aqui todas as igrejas estão cheias de imagens sórdidas, amaldiçoadas e mentirosas, mas todos as veneram. Então, vou destruindo-as uma a uma, com minhas próprias mãos, para combater a superstição e a heresia”. “(…) Cristo esteve na cruz por seis horas e devemos adorar todas as cruzes? Devemos, então, também venerar as manjedouras, uma vez que nasceu numa manjedoura, os barcos porque andou de barco frequentemente, os burros por causa do jumento que o carregou entrando em Jerusalém, as sarças porque de sarça foram os espinhos da coroa de espinhos, as lanças porque uma lança lhe foi enfiada no peito?”
A nova onda de iconoclastia começa em 2001 com a demolição dos dois gigantescos Budas de Bamiyan (século VI d. C.). Para legitimar o gesto destrutivo, então foi citado um antecedente histórico: o rei Mahmud de Ghazni (998-1030), inimigo irredutível de ídolos “pagãos”. No entanto, entre aqueles que condenaram os Budas de Bamyan, aprovando as primeiras tentativas de destruí-los, há alguém que não esperaríamos: o poeta alemão Goethe. Em 1819 ele se indignava contra os Budas de Bamiyan, chamando-os de “ídolos loucos e venerados numa escala gigantesca”, e elogiando Mahmud de Ghazni (o mesmo que dois séculos depois, voltaria a inspirar o mulá Omar), afirmava: “tem de ser louvado o zelo deste destruidor de ídolos, e nele deve ser admirado profundamente o fundador da poesia persa e da mais elevada cultura”. Estes e outros fatos históricos nos obrigam a olhar também para o iconoclasta que existe em nós.
No entanto, do ponto de vista da Europa, a iconoclastia parece trazer uma única marca, a do Islã, e os mesmos autores dessas devastações fazem tudo para creditar a raiz religiosa de sua fúria destrutiva, apresentando-a como um obséquio aos preceitos do Alcorão. O único antídoto para esse veneno é reconhecer e denunciar a natureza estritamente política da iconoclastia do nosso tempo. Mas também destacar e declarar a raiz, igualmente política, da proteção da memória histórico-cultural.
Programaticamente bárbara, essa fúria iconoclasta também é profundamente contraditória. Vale lembrar: a destruição dos Budas de Bamiyan (12 Março de 2001) antecipou em exatos seis meses a destruição das Torres Gêmeas em Nova York (11 de Setembro), como se o segundo desastre, com as suas vítimas humanas e seu impacto espetacular incomparável, estivesse já em gestação no primeiro. Talvez ninguém tenha compreendido a ligação entre estes dois eventos melhor do que J. Otto Seibold, na sua arguta charge (publicada no periódico The New Yorker), segundo a qual os Budas seriam reconstruídos em escala 1:1 em vez das torres gêmeas, e os nichos vazios em Bamiyan seriam preenchidos por duas cópias reduzidas das Torres, destinadas a abrigar os refugiados.
Em Bamiyan, como em Manhattan, o centro gerador da ação devastadora não era uma estátua ou um arranha-céu, mas o próprio espetáculo da destruição. As Torres Gêmeas foram derrubadas com a certeza de que o evento seria transmitido instantaneamente pela televisão e que o mundo inteiro pararia para assistir. Em Bamiyan, Mosul e Palmira, foram os mesmos destruidores a documentarem o desastre, numa orgia de selfies fotográficas e cinematográficas, a serem espalhadas logo pelo mundo todo. A nova iconoclastia do nosso tempo tem um caráter nitidamente performativo: o gesto daqueles que destroem é mais importante do que a obra que é destruída. Adeptos mais ou menos conscientes da “sociedade do espetáculo” profetizada por Guy Debord (1967), esses inimigos das imagens as destroem sim, mas em um cenário, e ao fim de produzir novas imagens, aquelas da destruição causada por eles, a serem difundidas instantaneamente para mostrar seus músculos e chantagear o mundo.
Mas vamos tentar usar a categoria de iconoclastia, com toda a sua carga de violência, para designar outro tipo de destruição, típica do nosso tempo, aquela que devasta a memória histórico-cultural, cidades, paisagens. Essa nova iconoclastia não tem religião nem fronteiras, abraça muçulmanos e cristãos, inclui o Oriente e o Ocidente, envolve os países mais ricos e mais pobres. Ela não se ostenta, mas também não se esconde, porque conta com uma cumplicidade “global” natural e se disfarça, usando, como figurinos de teatro, valores positivos cada vez diferentes, da religião à economia. É um fenômeno de proporções gigantescas, e, no entanto, assim como os aborígines de Botany Bay diante do navio Endeavour, não podemos vê-lo pelo que é.
A destruição do patrimônio histórico não se detém diante de nada. Observamos o que acontece em Meca, o lugar mais sagrado do Islã, mas sujeito hoje a implacáveis demolições e transformações radicais, como talvez nenhuma outra cidade do mundo. Na Arábia Saudita, o rei tem o título de “Guardião das Mesquitas Sagradas”, mas o interpreta promovendo a demolição sistemática de valiosos edifícios históricos em favor de shopping centers, e a “modernização” da cidade nos moldes de Houston, Texas. O contraste não poderia ser maior: por um lado, o rigor máximo em alguns costumes (como o véu das mulheres); por outro, a destruição de mais de 400 edifícios de relevância histórica e cultural: todo um bairro de casas de época e estilo otomanos foi arrasado, e a casa de Khadijah, a primeira esposa de Maomé, foi derrubada para dar lugar a banheiros públicos. A mesquita de Bilal (da época de Maomé) e a gigantesca fortaleza otomana de Aiyad, construída em 1781, foram demolidas.
Isso também é “iconoclastia muçulmana”, e numa escala muito maior do que no Afeganistão ou no Iraque, mas no “Ocidente” muito pouco se fala sobre isso. Talvez porque, uma vez que as memórias históricas são canceladas, o que surge no seu lugar é uma imitação do “nosso” mundo. Sobre as ruínas da fortaleza otomana e a vizinhança foi construído o Makkah Clock Royal Tower, um complexo hoteleiro de luxo, com uma torre central de 601 metros de altura, cópia ampliada do Big Ben, que agora domina os locais mais sagrados do Islã, projetando sua sombra no centro do santuário, a Caaba. Além disso, o hotel Makkah Hilton está localizado onde até poucos anos atrás era a casa venerável de Abū Bakr, o melhor amigo de Maomé e primeiro califa. Como escreve Ziaddur Sardar, nesta “Las Vegas da Arábia (…) os turistas chegam em parte para orar, mas especialmente para fazer compras nos inúmeros centros comerciais de luxo”, e até mesmo os mais pobres encontram mercados ao seu alcance, porque na cidade santa é “possível apenas uma maneira de existir, ir às compras”. O romance entre Trump e a família real saudita não tem nada de surpreendente.
Como é que todos na Europa (ou nas Américas) estamos bem informados sobre a destruição “islâmica” de Bamiyan, ou de Palmira, mas não sabemos nada da destruição, não menos “islâmica”, realizada no coração da Meca? Para entender isso, vamos mudar de cenário: em Moscou alguns anos atrás houve uma dura batalha entre aqueles que queriam preservar o Dom Stroyburo, edifício-símbolo do construtivismo russo, projetado por Arkady Langman (1928), e aqueles que queriam destruí-lo para realizar uma especulação imobiliária. Apesar de ter sido tombado, o prédio foi demolido ilegalmente à noite em março de 2015, aparentemente por membros da máfia local, que durante a demolição gritavam ironicamente “Alá é grande!”. Este uivo blasfemo sugere uma analogia: o que une a destruição de Meca com aquela de Moscou (assim como de Londres ou Milão) é a obediência comum a um modelo de desenvolvimento urbano com base em fantasmas e mitos do “capitalismo tardio” que nós vivemos.
A mesma iconoclastia, em nome do mercado, está em ação em Meca e em Moscou, mas também ao nosso redor. É a degradação que afeta a memória e o património cultural, a poluição ambiental, a negligência dos monumentos históricos, a retórica irresponsável do “desenvolvimento” que pisa na história em nome da economia, o exílio da cultura à margem da sociedade. Estamos indignados com a destruição brutal de bens monumentais na Síria, mas não quando uma devastação de violência igual é cometida por nós mesmos, contra a história, mas também contra a dignidade e a própria vida dos cidadãos.
Por isso, é importante combater a destruição material inspirando-nos em valores imateriais. Reafirmamos que não só a iconoclastia, mas também o seu reverso, a proteção do ambiente, da paisagem e do património cultural, tem uma raiz puramente política. Conecta-se ao horizonte dos nossos direitos. É o sal da democracia, porque corresponde a um horizonte de valores para o qual é preciso devolver brilho e força, considerando-o “sagrado”.
Mas deste mundo que cai em ruínas podemos aprender algo. Na tradição cultural europeia, a metáfora da cidade em ruínas também se presta a refletir sobre como superar a crise: um agudo crítico americano, John B. Jackson, argumentou eloquentemente para a necessidade das ruínas em qualquer sociedade (mesmo que, como os Estados Unidos, tenha uma história relativamente curta), para pensar em si mesmo e construir seu próprio futuro. De fato: “Somente as ruínas podem fornecer um incentivo eficaz para o renascimento, um retorno à energia criativa das origens. Um intervalo de morte ou esquecimento é necessário para que uma civilização se renove verdadeiramente”.
Devemos, portanto, devolver às ruínas reais que nos ameaçam, o horizonte de valores que vem de sua projeção metafórica. Devemos começar a partir de uma tradição fundamentalmente europeia (as ruínas da antiguidade clássica que provocaram um “novo nascimento” da civilização, que foi chamado justamente de Renascimento) não para nos fecharmos nela, mas para nos interrogarmos sobre fenômenos culturais semelhantes também em outras civilizações. Podemos fazer isso explorando duas noções fundamentais, aquela de Renascimento e aquela de Clássico, a partir de uma perspectiva comparativa, tentando identificar fenômenos semelhantes em outras culturas.
E, de fato, a cultura de comparação é hoje mais necessária do que nunca. Utilizando as palavras proféticas de Nietzsche, escritas entre 1878 e 1888:
“Essa é a nossa vantagem: vivemos na era da comparação, somos a verdadeira autoconsciência da história e a comparação é nossa atividade mais instintiva”. “Como todos os estilos artísticos podem coexistir lado a lado, o mesmo acontece com os vários níveis de moralidade, costumes e culturas. (…) Ser capaz de escolher entre as várias formas oferecidas para a comparação corresponde a um crescimento da sensibilidade estética: a nossa é realmente a era da comparação! Este é o seu orgulho, mas inevitavelmente o seu tormento”.
Palavras que nos convidam a não desistir de nossa cultura, mas a olhar para todos as outras com respeito e curiosidade, num vaivém contínuo entre o que somos e o que outros seres humanos quiseram ser, em circunstâncias históricas diferentes das nossas. Mas Nietzsche também nos incita a dar um papel central à arte e à busca da beleza, como um poderoso meio de comunicação intercultural.
A comparação é necessária em nossa época, quando ondas de migrantes obrigam ao confronto de todas as culturas entre elas, e quando uma perda insidiosa da memória cultural afeta nossa relação com o passado. Vamos tentar dizer isso com uma breve citação de A Peste de Albert Camus, uma poderosa alegoria política que “funciona” como uma metáfora única e extensa: “Eles sentiram o profundo sofrimento de todos os prisioneiros e de todos os exilados: o de viver com uma memória que não serve mais para nada”.
Moradores e autoridades da cidade atingida pela epidemia, num primeiro momento, nem querem ver os indícios do flagelo que vai dizimá-los, então hesitam em dar-lhe um nome, e quando eles ousam pronunciar a palavra “peste” já baixaram a cabeça, aprenderam a viver com a doença. Eles a removem duas vezes, primeiro porque se recusam a tomar consciência, depois, porque a consideram inevitável e se resignam.
Se a crise da memória cultural que vivemos é como uma peste que está serpenteando e que não queremos reconhecer, vamos reler o diagnóstico de Camus sob essa ótica. Em nosso tempo, o que ameaça não servir mais é em primeiro lugar a memória dos imigrantes, que das profundezas do seu exílio já não veem em torno de si os pontos de referência que até recentemente eram familiares e reconfortantes. Nos termos de Camus, a deles é a “memória dos exilados”. Mas ao lado dos exilados, e compartilhando seu destino a longo prazo, estamos também “nós”, prisioneiros de uma crise sem fim e sem nome. E a mesma “memória dos prisioneiros” acabará sendo inútil se deixarmos de lado, sem sequer perceber, nossa memória cultural: a forma da cidade e das paisagens, o cuidado da dignidade humana, a prioridade do bem comum, a justiça social, a igualdade, o direito ao trabalho, a democracia. Sob o sombrio guarda-chuva da crise, prisioneiros e exilados se assemelham e se unem sem saber: ambos buscam migalhas de bem-estar e, enquanto isso, perdem seu tesouro mais precioso e mais humano, sua memória.
O navio no horizonte (ameaçador e invisível), as ruínas, a peste: essas metáforas nascem de uma preocupação, mas são alimentadas pela esperança. Uma esperança que se baseia na memória cultural; ou melhor, requer uma memória que sirva para algo, e da qual algo possa ser reconstruído, algo novo possa ser criado. Para conservar e alimentar uma memória que sirva de algo, a arma que temos é chamada de cultura, no sentido de conhecimento histórico, disposição crítica, comunicação intercultural, impulso criativo, cultivo da memória cultural por meio da pesquisa, das instituições educativas e dos museus. Finalmente, a ligação muito forte e essencialmente política entre o horizonte dos direitos civis e as práticas de pesquisa, educação e conservação. Estes são dispositivos essenciais para lançar um olhar penetrante ao redor, que saiba como “ver o navio inimigo” quando se aproxima; “cheirar as pistas da praga” antes que seja tarde demais; “reconhecer as ruínas” quando elas começam a se formar, e reagir à crise (“renascer das ruínas”, “curar a peste”) com a devida energia, planejando o futuro.
De todos esses aspectos da cultura, vou me deter aqui em apenas um: as políticas da beleza. De acordo com Susan Sontag:
“A beleza sempre foi um recurso para aqueles que querem fazer julgamentos sem apelação. (…) Mas, durante quase um século, a beleza acabou ficando entre as noções a serem desacreditadas. Para aqueles que criavam e proclamavam o novo, a beleza só podia parecer um critério atrasado; Gertrude Stein argumentou que uma obra de arte, se a chamamos de ‘linda’, já está morta. (…) O fracasso da noção de beleza reflete a perda de prestígio do juízo (ou do gosto) concebido como algo imparcial, objetivo, não autorreferencial. (…) A beleza era um princípio de discriminação, essa era a sua força e o seu atrativo, mas tal virtude tornou-se um fardo: discriminar, que outrora significava exercer um julgamento sofisticado, de acordo com critérios elevados, tornou-se algo negativo, sinal de preconceito, de parcialidade, de cegueira em relação ao diferente. O desenvolvimento mais forte e mais bem-sucedido nesse sentido foi no campo das artes: a preocupação com a beleza passou a ser considerada ‘elitista’, e pensou-se que nossa apreciação poderia ser mais inclusiva se, ao em vez de dizermos que algo é bonito, falarmos que é ‘interessante’.”
“Beleza” é hoje uma senha usada e abusada, entrada a pleno título no discurso político. As políticas da beleza geralmente fazem dela um negócio ou uma fuga da vida real. Mas, a isso deve ser oposta uma outra política da beleza, que, ao contrário, a torne um instrumento de conhecimento do mundo, da consciência histórica, da ética da cidadania.
Cito Susan Sontag mais uma vez:
“A resposta à beleza na arte e a resposta à beleza na natureza dependem uma da outra (…). O que é belo na arte nos lembra da natureza como tal, ele nos lembra do que está além do humano, além do artefato, e, assim, estimula e aumenta o nosso sentido da difusão e da plenitude da realidade (inanimada ou palpitante) que nos rodeia. Se esta intuição tem algo de verdadeiro, ela tem uma consequência positiva: a beleza recupera a sua solidez e inevitabilidade, torna-se um valor necessário para dar sentido a grande parte de nossas energias e afinidades, aos nossos sentimentos de admiração; e as noções que usurparam o espaço do ‘belo’ (como ‘interessante’) revelam-se risíveis. Tente imaginar alguém dizendo: ‘Aquele pôr do sol é interessante’.”
A beleza artística como um valor, uma ponte entre a natureza e a cultura, chave da memória cultural, estrada para o futuro: essa visão contrasta fortemente com a sujeição da cultura à economia, com a destruição da memória cultural, das paisagens e das cidades históricas. Contra a iconoclastia dos adoradores do mercado, uma religião laica da beleza e da memória cultural deve recuperar o seu potencial como área de uma alteridade dupla, a da história (que nunca é idêntica ao presente) e a de outras culturas (que nunca são idênticas à nossa).
A função essencial da cultura é fomentar a criatividade e o “florescimento” da sociedade. Esta categoria (flourishing) vem da filosofia moral contemporânea, que indicou suas raízes no pensamento de Aristóteles. A eudaimonia mencionada pelo antigo filósofo não é felicidade passageira (o “sucesso”), mas o sentimento de realização da própria vida, do seu próprio potencial: um sentimento que incorpora o indivíduo na comunidade (polis) a que pertence, sendo a base de valores essenciais como a dignidade e a igualdade. O “florescimento” dos indivíduos na comunidade é uma pré-condição indispensável para o desenvolvimento da criatividade em todos os níveis e, portanto, um componente vital da economia e da sociedade, mas também da democracia, da equidade e da justiça. “Taxa de criatividade” e “taxa de felicidade” estão intimamente ligados, então ambos estão caindo, pelo menos na Europa. Mas apenas o “florescimento” dos indivíduos e da comunidade garante a “igual dignidade social” dos cidadãos prescrita pela Constituição Italiana. Intimamente ligado à dignidade social está o direito à cultura, base da mobilidade social e, portanto, do impulso para a igualdade e a democracia. Por conseguinte, o direito à cultura deve ser (e não é) colocado no centro das normas da União Europeia.
Mas essas políticas de cultura e beleza são praticáveis na Europa hoje? A ideia de Europa a que me refiro baseia-se na sua cultura e nas suas diferenças internas, mas também na capacidade perpétua de refletir sobre as ruínas (sobre a crise) para gerar uma nova fase histórica de renascimento. Mas é possível um renascimento das ruínas que estão se acumulando ao nosso redor? Há do que duvidar: a memória cultural da Europa deveria saber melhor se confrontar com outros reservatórios de memória cultural, aprendendo com a grande metáfora da Peste de Camus que citei antes: “Eles sentiram a dor profunda de todos os prisioneiros e de todos os exilados: a de viver com uma memória que não serve mais para nada”. De fato, a memória cultural dos europeus, como a dos migrantes, realmente corre o risco de não servir mais para nada. A Europa deveria, portanto, poder exercer ao nível institucional o que Sócrates chamava de “vida examinada”, a análise de si mesmo em busca da verdade.
Mas a Europa de hoje retém o impulso de buscar a verdade das coisas, uma memória de si que leve ao confronto, ao questionamento incessante do porquê de nossas ações? Há razões para duvidar disso. Nada hoje representa a Europa tanto quanto as instituições da União Europeia. Mas a cultura não reina nas instituições europeias, a dúvida não reina, nem a dignidade humana nem a justiça social reinam. O mercado reina e reina a certeza de que apenas este tem o poder de regular a sociedade em todos os seus aspectos. Que a “mão invisível” dos mercados, criando e redistribuindo riqueza, acabará dando a todos trabalho, liberdade, cultura, justiça e democracia. E quem não se submeter a tais leis irrevogáveis deve ser domado, punido, reduzido à razão, obrigado à austeridade.
Aparentemente, o notável impulso ideal que desencadeou o processo que levou ao nascimento da União Europeia entre as ruínas da Segunda Guerra Mundial está esgotado. A Europa em que hoje se pensa principalmente não é a da sua história e cultura, mas a dos Tratados, onde o papel da memória histórica é marginal, tal como a equidade social; é uma Europa propensa à lógica globalizante que envolve a metamorfose do cidadão em consumidor.
A cultura nos torna iguais (poderia nos tornar iguais), e é a plataforma privilegiada em que podemos vir ao encontro das comunidades migrantes que povoam cada vez mais nosso continente. Uma memória cultural autenticamente “plural” pode ser o terreno de crescimento de uma criatividade que visa a plena realização do potencial da pessoa. Desde a eudaimonia de Aristóteles até o florescimento da filosofia moral de hoje, a cultura é um componente vital da economia e da sociedade, mas também da democracia, da igualdade e da justiça. De uma cultura entendida nesse sentido, pode vir a esperança de um futuro melhor.
Contudo, em comparação com a dominante Europa dos mercados, hoje a Europa da cultura é (para citar uma metáfora cara a Benjamin) como o mendigo que bate à porta. Talvez carregue uma mensagem, ou talvez até mesmo o remédio capaz de curar a peste? Nunca saberemos, se essa porta não será aberta. Mas, para que seja, temos que bater mais forte, temos que levantar a voz.
Arqueólogo e historiador de arte italiano, Salvatore Settis é professor catedrático de arqueologia grega e romana. Entre 2008 e 2009, presidiu o Conselho Superior do Patrimônio Cultural da Itália. Dirigiu o Getty Center for the History of Art and the Humanities, em Los Angeles, e a Scuola Normale di Pisa. É autor de diversos livros, entre os mais recentes Se Venezia muore (Se Veneza morre, Einaudi Editore, 2014) e Cieli d’Europa. Cultura, creatività, uguaglianza (Ceús da Europa. Cultura, criatividade, igualdade, UTET, 2017).