Democracia e Forças Armadas: temos um problema a resolver?
Este webinar discutiu se os anos recentes apontam para uma mudança duradoura das relações entre civis e militares ou se essa mudança representa uma anomalia.
A tentativa de politizar as Forças Armadas representou um retrocesso de mais de 30 anos nas relações civis-militares, exacerbando um problema histórico que nos acompanha desde o nascimento da República e que parecia bem encaminhado a partir dos anos 1990. Se não for revertido pelo próximo presidente (na hipótese de um candidato ou candidata de oposição ser eleito em outubro próximo), este processo poderá comprometer não somente a democracia, como a imagem das Forças Armadas e, em última instância, a própria segurança nacional. Estas foram as principais conclusões deste webinar que contou com as participações de dois militares na reserva e um dos principais estudiosos do tema no país.
“A questão que se coloca é se a recente turbulência nas relações civis-militares é apenas um espasmo conjuntural ou pode significar algo mais duradouro? Creio tratar-se de algo conjuntural. A boa relação civil-militar implica que haja controle civil das Forças Armadas e que elas se dediquem, em primeiro lugar e acima de tudo, à proteção da pátria, evitando a politização”, disse o almirante Antônio Ruy de Almeida, ex-diretor da Escola de Guerra Naval e atual membro do Grupo de Avaliação da Conjuntura Internacional da Universidade de São Paulo (GACINT/USP).
“A partir de 1990, com a posse do presidente Fernando Collor de Mello, eleito democraticamente, iniciou-se um período virtuoso em termos de fortalecimento do controle civil sobre os militares e retirada dos militares da política. Em 2018, com a nomeação pelo ex-presidente Michel Temer do general Joaquim Silva e Luna para o cargo de ministro da Defesa, houve um claro retrocesso, aprofundado durante o atual governo. Caso um candidato ou uma candidata da oposição seja eleito em outubro próximo, ele ou ela terá muito trabalho para novamente remover os militares da arena política”, disse o cientista político Octavio Amorim Neto, professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (EBAPE), da Fundação Getulio Vargas (FGV), no Rio de Janeiro.
“É fato que temos hoje um protagonismo dos militares no governo federal, mas trata-se de uma anomalia passageira, vinculada a um personagem, que é o atual presidente da República. Com uma ação responsável, os futuros governantes colocarão as coisas no seu devido lugar”, disse o general Francisco Mamede de Brito Filho, que foi chefe do Centro de Estudos Estratégicos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME) e comandou o 16° Contingente Brasileiro na Missão de Paz para Estabilização do Haiti (Minustah).
Segundo o almirante Ruy de Almeida, houve importantes avanços nas relações entre as autoridades civis e militares desde a redemocratização, mas ainda há muito a ser feito para consolidar um projeto de defesa nacional sólido e consistente sob comando do poder político: “É fundamental que não se crie um clima contra as Forças Armadas e que elas não sejam enfraquecidas, pois então a segurança do próprio Estado brasileiro estaria comprometida.”
A Constituição Federal, cujo guardião é o Supremo Tribunal Federal, e as instituições que exercem controle sobre a máquina governamental, como o Congresso Nacional e o Tribunal de Contas da União, são os instrumentos à disposição do poder civil democraticamente eleito para reforçar seu controle sobre as Forças Armadas, afirmou Brito Filho.
“São eles que têm condições de avaliar se a participação dos militares na administração pública está dentro da legalidade ou é excessiva. Na minha visão, a presença de militares da ativa em cargos de natureza civil não é adequada. Já os militares da reserva são cidadãos comuns e podem participar de governos ou do parlamento, pois já não têm nenhum poder sobre o aparato de defesa do Estado”, disse o general.
Para Amorim, a presença de militares em cargos de diversos escalões do governo federal não é somente uma questão legal e constitucional, mas um problema eminentemente político: “A consequência desta excessiva participação dos militares no dia a dia da política não é apenas ruim para a democracia, mas também para as Forças Armadas, pois a legitimidade delas junto à população pode se ver ameaçada.”
O cargo de ministro da Defesa foi criado em 1999, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, e durante seu governo e os de seus sucessores, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, sempre foi ocupado por um civil, incumbido de exercer a direção superior das Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, articulando as ações que envolvam estas instituições. “A presença de um civil à frente do Ministério da Defesa é um símbolo importante do controle civil sobre as Forças Armadas”, explicou o cientista político.
“O ministro da Defesa deve ser civil ou militar? O fundamental é que seja um bom ministro, mas tendo a concordar que o cargo exige atributos que são mais específicos do setor civil e do universo político, pois é importante que o ministro tenha uma boa articulação com outros órgãos e instâncias de governo e com os Poderes Legislativo e Judiciário. Como exemplo de ministros bem sucedidos, cito o Nelson Jobim e o Raul Jungmann, muito respeitados tanto pelos civis como pelos militares”, disse o general Brito.
Defesa Nacional requer mais participação civil
Os três palestrantes concordaram que representantes da sociedade civil e de outros ministérios e poderes do Estado devem ter uma participação mais ativa na elaboração de documentos básicos relacionados à defesa nacional, como o Livro Branco de Defesa Nacional, a Estratégia Nacional de Defesa e a Política Nacional de Defesa.
“A defesa nacional é um conceito multidisciplinar e a definição de suas prioridades está atualmente muito nas costas somente dos militares e das Forças Armadas. Além dos demais ministérios envolvidos nos assuntos de defesa, deve haver uma participação efetiva de deputados e senadores e também de membros de outros órgãos públicos, do Poder Judiciário e de especialistas ligados a centros de estudos estratégicos de instituições públicas e privadas. Na próxima revisão desses documentos, é importante que todos os segmentos deem sua contribuição”, disse o general Brito Filho.
“Os militares devem informar tecnicamente aos governantes e à sociedade quais são as condições adequadas para garantir a segurança da pátria, mas quem define o nível de segurança desejável ou até mesmo o nível de insegurança aceitável é a sociedade, através de seus representantes eleitos pelo povo. O desafio é equilibrar o máximo de segurança militar sacrificando o mínimo possível de outros valores sociais”, disse o almirante Ruy de Almeida. Para o ex-diretor da Escola de Guerra Naval, o envolvimento de todos os segmentos da sociedade brasileira é fundamental para criar uma sólida cultura de defesa nacional.
“A negligência civil em relação aos assuntos militares é impressionante. O Brasil não é um país irrelevante, temos ambições legítimas como o desejo, expresso até recentemente, de termos uma vaga permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Para isso, precisamos de Forças Armadas profissionais, bem estruturadas e equipadas”, disse Octavio Amorim.
Segundo o cientista político, os presidentes anteriores a Bolsonaro “foram tímidos ao vestir o manto de comandante-em-chefe das Forças Armadas” e os futuros governantes do país devem assumir este importante papel com mais convicção. “É fundamental que sinalizem claramente à sociedade que são eles que estão no comando e que convoquem o Conselho de Defesa Nacional com maior frequência, de maneira a criar oportunidades para militares e civis se conhecerem e interagirem no mais alto nível decisório”, afirmou.
Amorim destacou a importância da criação da carreira de analista civil na estrutura do Ministério da Defesa. “Ter uma burocracia civil de alto nível dentro do Ministério da Defesa, ao lado da burocracia militar, vai nos permitir ir muito mais longe no controle civil das Forças Armadas. As resistências são grandes e, para que isso seja possível, o presidente deve se envolver diretamente e enviar um Projeto de Lei ao Congresso propondo a criação desse cargo e definindo orçamento para isso”, disse o professor da FGV.
STF deve dar interpretação definitiva sobre o artigo 142 da Constituição
Segundo Brito Filho, o plenário do Supremo Tribunal Federal deve julgar o quanto antes a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) ajuizada pelo PDT (Partido Democrático Trabalhista), em que o partido solicita à Corte que esclareça a missão constitucional das Forças Armadas, expressa no artigo 142 da Constituição.
“Vemos um recorrente apelo, a meu ver equivocado, sobre um suposto poder moderador atribuído às Forças Armadas no artigo 142 da Constituição. Como guardião da Carta Magna, o Supremo deve dar uma interpretação definitiva sobre a missão constitucional das Forças Armadas. O ministro Luiz Fux já se manifestou a respeito, rejeitando a interpretação de que caberia às Forças Armadas o poder de árbitro de última instância dos conflitos políticos. Esse poder cabe ao próprio STF. Já a moderação dos conflitos é papel dos mecanismos de freios e contrapesos, baseados na independência entre os Poderes. Agora cabe ao plenário se posicionar sobre o assunto, encerrando a controvérsia”, concluiu o general da reserva.
Assista ao vídeo completo do webinar.
Leia o artigo “De volta ao centro da arena: causas e consequências do papel político dos militares sob Bolsonaro”, escrito por Octavio Amorim Neto para o Journal of Democracy em Português.
Saiba mais:
Política e Estratégia Nacional de Defesa: hora de conversar a respeito
A participação das Forças Armadas no governo: um novo normal?
Como as democracias morrem: os desafios do presente
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.