Debates
24 de maio de 2017

Defesa Nacional, Vigilância de Fronteiras e Segurança Pública: o papel das Forças Armadas

“Em um país desigual e com tantos problemas como o Brasil, as Forças Armadas têm que estar preparadas, e serem flexíveis, para atender a necessidades prementes da população”, afirmou o General Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro.


“Existem as fronteiras físicas, mas há outros tipos de fronteiras que são sociais ou mentais.”

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo e ex-presidente da República

“Em um país desigual e com tantos problemas como o Brasil, as Forças Armadas (FA) têm que estar preparadas, e serem flexíveis, para atender a necessidades prementes da população.”

General Eduardo Villas Bôas, comandante do Exército Brasileiro

“O conceito de segurança nacional está diretamente ligado à defesa da soberania, mas também à percepção (pela população) de que o Estado cumpre sua atribuição de garantir a todos o exercício pleno de seus direitos e deveres constitucionais.”

General Alberto Mendes Cardoso, foi ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República (Governo FHC)

“Quando as FA atuam em uma fronteira que não é nossa (como em comunidades controladas pelo crime), e após algum tempo há um retorno à condição anterior, a consequência é um desgaste do próprio Estado, tanto em termos de energia como de recursos humanos e materiais.”

General Tomás Paiva, que comandou as forças de pacificação nos Complexos da Penha e do Alemão 

“Não há como o Exército se desembaraçar dessas funções (de auxílio em ações de segurança pública), pois a sociedade exigirá sua participação. No Rio, houve um grande sucesso (inicial), mas depois a Polícia Militar não teve condições de manter as conquistas. Por que não pensar no papel dos militares na formação de quadros para o policiamento ostensivo?”

Leandro Piquet, professor da USP e membro do Conselho de Segurança Pública da Cidade de São Paulo

“Com frequência a competição ou as rivalidades históricas (entre as instituições) são mais fortes do que a disposição política de resolver o problema. É preciso superar as culturas corporativas, acreditar em modelos interagências e desenvolver as competências de lideranças para trabalhar em um ambiente horizontal, em que ninguém manda em ninguém.”

Fábio Bechara, promotor de Justiça de São Paulo


As seis frases acima, ditas durante seminário realizado na Fundação Fernando Henrique Cardoso sobre o papel das Forças Armadas no Brasil democrático, expressam claramente o quão complexa é a discussão sobre os deveres das forças militares (e os limites e as dificuldades enfrentadas por elas) em ações de segurança pública em locais ou momentos críticos e no combate ao crime organizado e ao narcotráfico.

Participaram da conversa três generais do Exército com ampla experiência em funções de comando e dois especialistas em segurança pública e combate ao crime, além do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que abriu e encerrou o evento.

Defesa nacional e segurança nacional

Logo no início do evento, os generais falaram sobre os conceitos de defesa nacional e segurança nacional. “O conceito mais tradicional de defesa nacional não diz tudo sobre a missão das Forças Armadas. Por isso, prefiro dar ênfase ao conceito de segurança nacional”, disse o general Alberto Mendes Cardoso, ex-ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

“Defendo que o conceito de segurança nacional seja utilizado não só em relação à defesa de nossas fronteiras e do território contra eventuais inimigos externos, como também nas consequências múltiplas do problema da segurança interna, algumas decorrentes das vulnerabilidades que existem nas faixas de fronteiras”, continuou.

“A segurança nacional não é vista por nós (militares) como um conceito ideológico (como no passado) ou como um fim em si mesmo, mas sim como um instrumento essencial de governança à disposição do chefe de Estado, tão importante como a política educacional ou de saúde, a política econômica ou as relações externas. É um dos diversos instrumentos que o Presidente do Brasil, que é o comandante-supremo das Forças Armadas, têm à sua disposição para afirmar a relevância do Estado e trazer a população para mais perto do Estado (ou vice-versa)”, disse.

“Somos um país onde não há percepção de ameaça à integridade nacional, pois não temos inimigos. Então o tema da defesa nacional tem pouco apelo, principalmente diante de tantas carências e desigualdades. Somos a garantia do cumprimento da Constituição e da preservação das instituições democráticas, a quem cabe encontrar os caminhos para superarmos os problemas do país, inclusive a atual crise em que estamos metidos”, afirmou o comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas.

Fronteiras externas e internas

Todos concordaram que a principal ameaça à segurança nacional não vem de outros Estados, mas sim da ação do narcotráfico, tanto externa quanto internamente, e de outras vertentes do crime organizado. Também destacaram o fato de que grupos criminosos dominam áreas do território brasileiro onde o Estado tem dificuldade de atuar, como comunidades carentes de algumas cidades brasileiras, assim como parte do sistema prisional.

A região amazônica, em especial, preocupa, pois tem cerca de 11 mil quilômetros de fronteira com outros oito países, alguns deles importantes produtores e exportadores de entorpecentes como cocaína. O Brasil já é o segundo maior consumidor de cocaína do mundo e, segundo informações divulgadas pela ONU, tem um papel estratégico como passagem no tráfico de cocaína para o mundo, justamente em função de suas dimensões e posição geográfica. “É necessário uma resposta multidisciplinar, pois receio que estejamos caminhando na direção de uma situação como a enfrentada pela Colômbia no auge do tempo dos cartéis ou pelo México atualmente. Cerca de 80% da violência no Brasil tem relação direta ou indireta com as drogas”, disse o comandante do Exército, general Eduardo Dias da Costa Villas Bôas.

“Mais da metade do território brasileiro (na Amazônia) é pouco ocupado e não está articulado e integrado à dinâmica do desenvolvimento nacional. É uma vasta área carente de infraestrutura de transportes e comunicações e que abriga os mesmos ilícitos e os mesmos problemas do restante do país”, completou.

“A fronteira (amazônica) é uma linha, mas atrás dessa linha há uma faixa de 150 km de largura, que representa 28% da superfície brasileira, onde vivem apenas 10 milhões de pessoas, uma média de quatro 4 habitantes por quilômetro quadrado, mas tem lugares em que não há nenhum habitante. Como vigiar tudo isso? A tecnologia é fundamental, mas custa caro e precisa ser constantemente atualizada”, disse o general Cardoso.

“A gestão dessa enorme faixa fronteira deve ser compartilhada pelos três níveis de administração pública – União, Estados e municípios -, por meio de câmaras setoriais dos quais participem não apenas os diversos órgãos do Estado como também a comunidade acadêmica e científica, a iniciativa privada e o terceiro setor”, continuou. “A estrutura de defesa nacional será tão mais eficiente quanto mais robusta for a participação das áreas social, acadêmica e de pesquisa e dos diversos setores da economia”, concordou o general Villas Bôas.

Mas, segundo os participantes, o conceito de fronteira deve ser expandido para áreas do território onde o Estado não consegue atuar de forma satisfatória e que, portanto, estão sob forte influência ou mesmo domínio de grupos criminosos. “As vulnerabilidades de nossas fronteiras externas impactam na segurança interna, no crescimento da criminalidade, da violência e no surgimento de verdadeiras fronteiras internas”, disse o general Cardoso.

Como exemplo, citou o Polígono da Maconha (que abrange 13 cidades do sertão baiano e pernambucano): “Já na época de seu governo, presidente, o sr. não se conformava com o fato de existir uma vasta área no Nordeste onde havia uma outra soberania e o Estado não conseguia garantir os direitos dos moradores. Por isso, determinou que fosse realizada uma operação para recuperar o controle sobre a região.”

‘A segurança não era nossa, mas deles’

Fernando Henrique descreveu uma visita que fez ao bairro de Vigário Geral, no Rio: “Desde quando era um jovem pesquisador, sempre visitei comunidades carentes, mas há algum tempo, já como ex-presidente, fui a Vigário Geral à noite para participar de um evento a convite do Afroreggae. Entramos sem segurança policial e me impressionou os sinais de alerta que os grupos que controlavam o bairro emitiam. Era uma luz que acendia aqui, um apito que tocava mais adiante, um rojão logo acima. Era de fato uma zona ocupada, mas não pelo Estado brasileiro ou o governo do Rio. A segurança não era nossa, mas deles.”

Em sua exposição, o general Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, que comandou a Força de Pacificação Arcanjo nos Complexos da Penha e do Alemão, exibiu vídeos que mostram exatamente as cenas descritas pelo ex-presidente FHC. “Eles são estruturalmente bem organizados e muito criativos. Quando alguns de nossos homens passavam por um barzinho, a música aumentava. Em seguida, as luzes das casas se acendiam e apagavam, outros soltavam foguetes. O que fazer então para confundi-los? Começamos a soltar rojões e acender luzes também. Eles ficavam muito bravos”, comentou.

“Esses conflitos em zonas urbanas populosas não acontecem somente no meio físico, com veículos blindados e armamentos pesados. É preciso investir no domínio da informação, social e cognitivo”, explicou o general Paiva, que também foi subcomandante do Batalhão Brasileiro da Força de Paz no Haiti. “No Haiti, enfrentamos muita violência, mas no Rio a reação nos surpreendeu. A maioria dos habitantes das comunidades é honesta, mas muitos resistiram a obedecer”, afirmou.

Ainda segundo o general Paiva, nesse tipo de operação o Exército opera em um novo ambiente, imprevisível, em terrenos urbanos perigosos e desconhecidos e trava combates de alta intensidade com a presença de civis e da mídia. Segundo ele, “é uma guerra assimétrica, pois um dos lados (os militares) tem compromisso com práticas adequadas de combate, respeitando normas e a ética militar, enquanto os adversários com frequência não se preocupam com esses ‘detalhes’. No Rio, as forças do Exército não foram responsáveis por nenhuma morte (durante o período em que estiveram à frente das operações).”

Insegurança jurídica e falta de sinergia

Paiva alertou para a necessidade de uma maior segurança jurídica em ações como as realizadas no Rio. “Afinal esse tipo de operação é ou não é militar? Se houver uma morte na área de conflito, o soldado será julgado pela Justiça comum? Isso significa que não há confiança na Justiça Militar? Afinal, qual é o amparo legal? O fato é que, em operações de garantia da lei e da ordem, não temos a mesma segurança jurídica garantida pela Constituição e outras leis complementares no caso de uma operação militar tradicional”, disse o general.

Como exemplo, ele citou o respaldo legal que foi dado às Forças Armadas francesas logo após os atentados terroristas de novembro de 2015 em Paris: “Na ocasião, o governo decretou estado de emergência por três meses, com suspensão de algumas garantias individuais. É uma opção que a sociedade brasileira terá de fazer (se quiser que as Forças Armadas atuem também na segurança pública em momentos de crise)”, disse.

Ele criticou ainda a falta de preparo prévio, de integração entre os diversos órgãos envolvidos ou mesmo de uma coordenação política no que ele chamou de “operações interagências integradas”. “Essa integração não acontece na prática, não há sinergia e compartilhamento de conhecimentos e informações, nem entre as forças militares e as policiais, nem com investigadores, promotores e juízes ou mesmo com ONGs ou lideranças da comunidade”, afirmou.

“Seria o caso de haver um comando político da operação? Em operações comandadas pela ONU, há muitas dificuldades práticas, pois envolvem interesses de diversos países, mas existe um comando civil, um braço humanitário, um comandante militar e um policial. Aqui, o Exército com frequência é chamado a atuar em uma unidade da Federação, mas há muita resistência em decretar intervenção federal, por exemplo”, disse.

“No Complexo do Alemão, houve falta de preparo e definição clara de funções. Nós participamos das ações de isolamento (do território), não participamos das ações de imposição da lei e da ordem, que foram feitas pela polícia e resultaram naquela fuga dos traficantes pelo morro diante das câmeras de TV, e depois fizemos o policiamento ostensivo, quando os mais aptos para fazer isso eram os policiais. Essa mistura de funções é ruim para todos os participantes e confunde a população”, explicou.

Segundo o comandante militar, o correto seria o Exército realizar o cerco e a ocupação inicial, a Polícia Militar assumir o policiamento ostensivo e a Polícia Civil se responsabilizar pelas operações de investigação e busca. “A participação militar deve ser rápida e cirúrgica e, depois, passar a bola para a polícia”, disse.

Simbioses históricas

Após a apresentação dos três generais, foi a vez dos especialistas fazerem comentários. O primeiro foi o economista e cientista político Leandro Piquet, coordenador do Núcleo de Segurança do Centro de Liderança Pública (CLP): “Nas áreas de fronteira, principalmente em regiões mais remotas da Amazônia, a economia dos mercados ilícitos vive desde sempre em simbiose com os agentes econômicos locais como madeireiros, mineradores, contrabandistas e posseiros ou grileiros que chegaram a esses locais praticamente junto com o soldado que fincou a bandeira no posto de fronteira e frequentemente antes do juiz, do delegado e do prefeito. À medida que o Estado vai chegando, seus representantes podem até tentar dissolver esses laços que vêm de longe (entre os operadores de atividades ilícitas e as elites locais), mas não é tarefa fácil. Portanto, o próprio controle das fronteiras, uma missão tradicional do Exército, passa pelo  estrangulamento dessas economias ilícitas, o que não é propriamente uma missão do Exército. Por isso é tão complicado”, explicou o professor da USP.

E, para dificultar ainda mais, os tentáculos desses mercados ilícitos que operam em regiões fronteiriças se espalham por todo o Brasil e chegam a locais como a Rua Santa Ifigênia, em São Paulo, aos diversos camelódromos espalhados pelo país, além de toda a estrutura capilar de venda de drogas. “Não há dúvida de que é preciso alargar o conceito de fronteiras”, disse Piquet, que apresentou mapas do Estado de São Paulo que mostram claramente que as ocorrências ligadas ao crime organizado seguem o eixo da circulação de bens e produtos desde as fronteiras com Paraguai e Bolívia, passando pelas cidades do interior com maior poder aquisitivo, até a capital.

Foco no combate à lavagem de dinheiro e corrupção

Já o promotor de Justiça Fábio Bechara, que chefiou o GAECO (Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado) no Ministério Público de São Paulo lembrou que as atividades ilícitas só prosperam se houver um ambiente de hospitalidade. “Qualquer que seja a natureza da atividade ilícita, ela não se sustenta sem lavagem de dinheiro e corrupção, na forma de compra de proteção oficial”, disse.

“Nas décadas de 1990 e 2000, foram plantadas algumas boas sementes como o COAF e os acordos bilaterais de cooperação jurídica em matéria penal, que pela primeira vez jogaram luz, de maneira sistêmica, sobre os dutos que permitem que esses mercados (ilícitos) proliferem”, afirmou. O COAF (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, foi criado em 1998 (Governo FHC) para identificar e punir atividades ilícitas relacionadas à lavagem de dinheiro.

Já acordos bilaterais de cooperação jurídica assinados nas últimas décadas possibilitaram que a Operação Lava Jato emitisse mais de 250 pedidos de cooperação para cerca de 50 países, com 80% de respostas positivas, solicitando o rastreamento de recursos originários de corrupção, o bloqueio de bens depositados no exterior e a recuperação de ativos que já somam centenas de milhões de reais.

O promotor Bechara destacou também a importância do trabalho articulado entre várias agências ou órgãos governamentais para interromper com sucesso o fluxo de recursos decorrentes de atividades ilícitas. “Um dos grandes desafios que temos hoje é desenvolver a governança necessária para que os diversos atores de combate ao crime trabalhem de forma cooperativa e sustentável”, disse.

Ele criticou também a criação e a extinção frequente de ministérios e secretarias, assim como a rotatividade em posições de comando, que muitas vezes resultam na morte precoce de iniciativas importantes. “O tempo político nem sempre ajuda, pois pode ser tanto um acelerador quanto um desestimulador de ações mais complexas”, concluiu.

Legalização das drogas?

Diante da avaliação unânime de que o narcotráfico é uma das principais ameaças à segurança nacional, o debate sobre a descriminalização e eventual regulamentação das drogas não poderia deixar de surgir, inclusive porque o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem sido um dos principais defensores de uma nova abordagem para essa questão tanto no Brasil como no plano internacional.

“Sou a favor (da descriminalização), pois 80% do problema da criminalidade não tem a ver com o uso da droga, mas com o fato de a venda ser ilegal. Mas antes é preciso educar a juventude sobre os malefícios das drogas e isso é algo que leva pelo menos uma geração”, afirmou o general Cardoso.

“Sinceramente não sei se sou a favor da liberação. O que sei é que o que está sendo feito (em relação a essa questão) é absolutamente inadequado, com abordagens muito simplistas. É necessário uma resposta multidisciplinar para o problema”, disse o comandante Villas Bôas.

“O caminho é o que foi feito no Brasil com o cigarro. O consumo não foi proibido, mas desestimulado com medidas restritivas e uma ampla campanha de conscientização. E os resultados foram excelentes. É uma questão de atitude, não de proibição”, disse Fernando Henrique.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.