Da crise, nascerá uma nova esquerda no país?
Conversamos com Pablo Ortellado e Tatiana Roque, intelectuais públicos com intensa participação no debate político brasileiro.
“A esquerda pode reorientar suas preocupações progressistas com os problemas do país e não com os problemas da comunidade progressista, elitista e segregada.”
Pablo Ortellado, doutor em filosofia, professor de Gestão de Políticas Públicas (USP)
“Sem discussão dentro da política partidária, os movimentos sociais acabam caindo no lugar da moral, do comportamento, das reivindicações individuais e contribuem para o enfraquecimento da política.”
Tatiana Roque, professora do Instituto de Matemática e da pós-graduação em Filosofia (UFRJ)
A crise da esquerda faz parte de uma crise geral da democracia representativa que ocorre não apenas no Brasil, mas no mundo como um todo. Como a democracia é um sistema relacional, os partidos são definidos pelo que defendem e também por sua oposição. Recentemente, os costumes se tornaram peça-chave no tabuleiro político, criando um impasse difícil para a esquerda. Para continuar no jogo, uma mudança de rota estratégica do campo progressista é necessária. Essas foram as principais conclusões deste webinar em parceria com o Quebrando o Tabu que reuniu dois acadêmicos com diferentes perspectivas sobre o futuro da esquerda no país.
Um caminho que chegou ao limite
Para o filósofo Pablo Ortellado, esquerda e direita são campos políticos que se definem através de sua oposição. Suas identidades foram estabelecidas ao longo da história e a esquerda se diferenciou pela defesa dos direitos sociais. “Durante todo o século 20, entre idas e vindas, a esquerda foi mordendo um pedaço da riqueza nacional por meio do orçamento público e distribuindo através de programas sociais, introduzindo mais justiça social”, disse o colunista da Folha de São Paulo. Com a crise fiscal e o consequente esgotamento do sistema de seguridade social, a particularidade da esquerda de conseguir oferecer políticas públicas redistributivas chegou ao seu limite. As diferenças entre esquerda e direita ficaram marginais e, com a ausência de identidade, tiveram um papel importante na crise de representatividade dos partidos políticos.
Segundo o professor de Gestão de Políticas Públicas da USP, ao passo que essa crise se instalava na política institucional, a sociedade civil se organizava desde os anos 1960 por mudanças nas relações interpessoais, criando movimentos de defesa de direitos – negro, LGBT, feminista. No momento de crise dos partidos, “essas mudanças que estavam em disputa na sociedade são abraçadas pelo sistema político como um elemento de diferenciação. Só que o sistema que estava indiferenciado passa a ficar super diferenciado no campo dos costumes e, sobretudo, das identidades”, disse Ortellado.
O novo elemento identitário foi melhor aproveitado pelos conservadores, continuou Pablo. “Eles estão sabendo jogar melhor esse jogo porque criaram uma espécie de antagonismo das guerras culturais nas quais se apresentaram como defensores do conservadorismo popular e a esquerda como uma elite que está querendo impor à sociedade valores que não são dela”, disse.
“O fortalecimento dos movimentos sociais e a entrada de novos personagens na política foi o legado positivo de junho de 2013”, disse Tatiana Roque, deputada federal suplente pelo PSOL (RJ). Para a professora do Instituto de Matemática da UFRJ, o problema não está nas pautas identitárias, mas no enfraquecimento do sistema político e dos partidos.
“Essas lutas não encontram espaços onde se organizar e interagirem entre si e com outras pautas políticas e econômicas, e se tornam muito fragmentadas”, disse. Em vez de incorporarem as discussões dos movimentos, os partidos políticos ficaram mais fechados e engessados em reação às manifestações de 2013. “Sem discussão dentro da política partidária, os movimentos sociais acabam caindo no lugar da moral, do comportamento, das reivindicações individuais e contribuem para o enfraquecimento da política”, disse.
‘Falta comunicação com a base’
Uma crítica comum à esquerda tem sido seu elitismo. Segundo ambos participantes, isso tem fundamentação na realidade. “Faltam projetos e comunicação que conquistem as classes populares, que são a razão de ser dos partidos de esquerda. É uma contradição”, disse Tatiana. Historicamente, a relação dos partidos de esquerda com a base se deu através do mundo do trabalho, mas suas mudanças – fortalecimento do setor de serviços, precarização, trabalho de plataforma, uberização, tecnologia, robotização – não foram acompanhadas pelo campo político. “As pautas da esquerda se apoiam muito em princípios, mas não se desdobram em propostas concretas para essas pessoas. Assim, a esquerda acaba se refugiando nos meios intelectuais”, disse a deputada suplente.
Para Pablo Ortellado, os dados sinalizam o caráter elitista do campo progressista: “são pessoas mais brancas, mais escolarizadas, mais ricas e muito menos cristãs que a média da população”. Ressaltou, contudo, que o antagonismo é maior no simbolismo do que em pontos específicos das pautas. “Quando perguntamos a pessoas que se dizem cristãs e conservadoras se elas acham que as mulheres devem receber o mesmo que os homens, sair nas ruas e não serem cantadas, ter quantos parceiros sexuais elas quiserem e não serem julgadas, por exemplo, elas praticamente coincidem com as pessoas progressistas”, afirmou o coordenador do Monitor do debate político no meio digital.
“Cerca de 15% da sociedade brasileira é bolsonarista e conservadora. O resto da população está sem alternativas democráticas consistentes e realistas”, ressaltou Roque.
Nesse imbróglio de termos e seus significados reside o desentendimento entre progressistas e conservadores. “Os termos não têm o significado que normalmente atribuímos a eles. Quando a direita fala de comunista não está se referindo ao regime político que ocorreu na União Soviética ou outro baseado na propriedade estatal dos meios da produção e divisão igual de riquezas. Refere-se à tese do marxismo cultural em que supostamente a esquerda, não vencendo batalhas políticas, trava suas batalhas no campo da cultura, se infiltrando nas instituições de reprodução de valor – meios de comunicação, universidades, escolas, artes”, disse Ortellado. Tratando-se ou não de teoria conspiratória, a narrativa ganhou peso nos meios conservadores e tornou possível a generalização da esquerda como elite corrupta cuja ação coincide com o uso de certas bandeiras como feminismo e antirracismo.
Corrupção
A corrupção é outro elemento da crise da esquerda. Para Tatiana, coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, trata-se de um sintoma da crise de representação. “A corrupção acontece quando os representantes se distanciam dos representados e não há mecanismos de controle, de vigilância, de transparência e de acompanhamento da ação dos governantes e dos fundos e verbas. O papel da política diante dessa insatisfação legítima seria propor instituições para aprofundar a democracia e reduzir a corrupção e não instrumentalizar a questão como se fosse moral, o que é bastante tendencioso”, afirmou.
Segundo Pablo Ortellado, “a campanha do Bolsonaro amplificou o sentimento anticorrupção para além do Partido dos Trabalhadores (PT)”. O tema foi usado para exacerbar o sentimento de rejeição do sistema político como um todo. “Bolsonaro ainda se beneficia disso, ele diz que não tem poder mesmo estando no Executivo. Ele é antissistema fazendo parte do sistema”, concluiu.
Saídas possíveis
A polarização é alimentada pelas guerras culturais, nas quais os conservadores estão levando vantagem, segundo Pablo Ortellado. Para o doutor em filosofia, se a esquerda continuar insistindo nas pautas identitárias e de costumes como elemento diferencial, não vai conseguir sair da crise. “Temos que fugir das armadilhas das identidades políticas que aprisionam sem abrir mão dos valores: não precisamos levantar a bandeira feminista para defender os direitos das mulheres quando isso alimenta um inimigo que nos caricatura. Podemos reorientar nossas preocupações progressistas para os problemas do país e não apenas os problemas da comunidade progressista, elitista e segregada”, afirmou.
Para Tatiana, vice-presidente da Rede Brasileira da Renda Básica, as pautas dos movimentos sociais precisam ser capazes de dialogar com outras pautas políticas e econômicas mais amplas. O Partido Socialismo e Liberdade, do qual é membra, é um exemplo disso: “O PSOL deu espaço para os diferentes movimentos e elegeu novos representantes. Marielle Franco foi o maior símbolo dessa renovação política e foi assassinada porque realmente incomodava. Mas o partido precisa ter pautas capazes de chegar ao Executivo”, disse. Ortellado concordou: “criar militância é diferente de construir maioria e essa escolha gera divisão dentro da esquerda”.
Outra questão interna que precisa ser resolvida pela esquerda é a defesa da democracia. “Existem setores da esquerda que não têm apreço pela democracia e outros que são anti-capitalistas querendo aprofundar a democracia. Mas existe uma caricatura nisso, as correntes anti-democráticas são barulhentas, com muita participação nos movimentos universitários, por exemplo, mas não são majoritárias”, afirmou Tatiana.
O futuro da esquerda depende do entendimento do momento político e de uma escolha estratégica. “A campanha de Bolsonaro centralizou o jogo político nos costumes e parece estar trilhando um caminho que mistura conservadorismo e política social. Essa combinação será ainda mais difícil de derrotar”, disse Ortellado. Se os valores utópicos permanecem importantes, para continuar tendo relevância no jogo a esquerda precisa absorver as demandas práticas da população, saber se comunicar com ela e resolver suas divergências internas para criar uma aliança capaz de vencer o conservadorismo. Essa aliança depende da participação do Partido dos Trabalhadores (PT), mas também de sua renúncia à liderança frente aos demais partidos do campo progressista, concluíram.
Beatriz Kipnis, bacharel e mestre em Administração Pública e Governo (FGV-SP), é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação Fernando Henrique Cardoso.