Crise na Europa: protesto social e mudança política
Neste debate, realizado em parceria com o Fronteiras do Pensamento, recebemos o sociólogo Manuel Castells.
Em sua exposição, o conhecido sociólogo argumentou que a atual situação europeia não é de “simples” crise econômica, nem mesmo de uma “mera” crise institucional. A crise europeia tem certamente essas duas dimensões. Basta examinar os indicadores de crescimento e desemprego, de um lado, e a incapacidade das instituições da União Europeia para encontrar soluções coordenadas para esses problemas, de outro. Mas Castells cavouca mais fundo na história e nas sociedades europeias para apontar o colapso da legitimidade do projeto de construção da Europa idealizado por grandes líderes europeus a partir do final da 2ª Guerra Mundial.
A Europa estaria diante de uma contradição insanável: para salvar o euro, tem de submeter-se à tutela do único de seus membros, a Alemanha, com recursos para pagar o resgate dos bancos e dos governos dos países europeus falidos ou com risco de insolvência, mas essa tutela é política e culturalmente inaceitável para as sociedades da vasta maioria dos países europeus. A contradição se agrava pela obstinação com a qual a Alemanha se agarra a políticas de austeridade.
Em lugar de uma Alemanha europeia, estaríamos assistindo ao esboço de uma Europa alemã. A tutela alemã seria o preço a pagar pela sobrevivência do euro. Esta seria a opção preferida pelo sistema financeiro e pelas elites políticas europeias. Sucede, adverte Castells, que as sociedades da maioria dos membros da União Europeia não parecem dispostas a pagar este preço.
Para recuperar as finanças e estabilizar o euro, apostou-se em políticas radicais de austeridade, como contrapartida a operações de resgate e controle dos bancos e das finanças públicas dos países da Europa Mediterrânea. A Grécia não representava em si mesmo um risco para a sobrevivência da moeda comum. A crise mudou de figura quando atingiu a Espanha e a Itália, estas sim capazes de tragar consigo o euro e o sistema financeiro europeu. Castells comparou a política de austeridade com uma bomba de nêutrons, que matou “somente” as pessoas, par salvar o euro.
O euro, para Castells, ampara-se desde o início em uma ficção. Em sua crítica, ele não se atém apenas à constatação óbvia de que uma moeda única não poderia conviver por muito tempo com a inexistência de um regime fiscal unificado, tampouco se resume à virtual impossibilidade, a seu ver, de unificar o padrão monetário de economias com níveis de competitividade tão distintos. Para o sociólogo, a própria ideia de uma identidade europeia não encontra fundamento na realidade. Ele a vê com uma ideia generosa que animou grandes líderes políticos do pós-guerra, traumatizados com a mais terrível de várias e sucessivas guerras entre países europeus, mas que não conseguiu fincar raízes nas sociedades europeias. Avalia, além disso, que a insistência em salvar o euro, por implicar necessariamente a tutela alemã sobre os demais países aderentes àquela moeda, irá agravar, ao invés de atenuar, os conflitos dentro da Europa. Castells não enxerga um cenário de guerra (isto teria ficado no passado), mas um panorama de crescente esgarçamento da já débil identidade europeia e um fosso cada vez maior entre a Europa do Norte e a Europa do Sul.
Se a austeridade produz tamanhos efeitos negativos e nenhum efeito positivo (o crescimento continua longe do horizonte europeu), por que a Alemanha se aferraria àquela política de uma nota só, indagou Castells. Para responder a essa pergunta, ele recorreu a outro conhecido sociólogo, o alemã Ulrich Beck, que acaba de publicar em inglês o livro “German Europe” (Polity Press, 2013). Na esteira de Beck, Castells identifica elementos na cultura e na experiência histórica alemãs – em especial a do caos econômico da República de Weimer, após a primeira guerra mundial – para explicar o que lhe parece ser uma obsessão pela austeridade. Ela expressaria uma repulsa ao desregramento das contas públicas e do comportamento humano, atribuído às sociedades hedonistas da Europa mediterrânea. Dessa perspectiva, o cálculo de condicionar o acesso a recursos da União Europeia e do Banco Central à adoção de programas concebidos e supervisionados sob tutela alemã não seria meramente de economia política, mas refletiria uma ambição de hegemonia cultural.
A profundidade da crise europeia poderia ser medida pela virtual impossibilidade de realização da única alternativa até aqui posta sobre a mesa: a sobrevivência do euro à custa da rendição de soberania dos países da Europa Mediterrânea em favor Alemanha, tendo como pano de fundo mais amplo uma hegemonia cultural alemã sobre o conjunto da Europa.
A irrupção dos movimentos sociais na cena política europeia – em redes de indignação e esperança, para tomar de empréstimo o título do mais recente livro de Castells – é a forma pela qual as sociedades estão buscando criar novas alternativas para a solução da crise.