Debates
30 de junho de 2022

Como as democracias morrem: os desafios do presente

Neste webinar, promovido pela Fundação FHC e RAPS, conversamos com Steven Levitsky – cientista político norte-americano e professor na Harvard University.

O cientista político norte-americano Steven Levitsky — coautor de “Como as democracias morrem”, livro já clássico lançado em janeiro de 2018, em parceria com Daniel Ziblatt — optou por dar início com um toque de otimismo a este encontro realizado pela Fundação FHC e pela RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade: “Embora exista hoje um consenso de que vivemos um período de declínio democrático global, creio que a democracia tem sido surpreendentemente resiliente no século 21”, disse.

“De acordo com a ONG Freedom House, o mundo vive 16 anos consecutivos de recessão democrática e ressurgência autoritária. Mas vamos olhar os números. O instituto europeu V-DEM acaba de publicar um relatório chamado Democracy at Dusk?, segundo o qual em meados dos anos 2000 havia 93 democracias no mundo, enquanto hoje há 89 democracias, apenas quatro a menos. Já a Freedom House vê um declínio de 7 democracias nesse período”, disse.

“É significativo, mas há mais democracias hoje no mundo do que no final dos anos 1980, quando, segundo o V-DEM, havia apenas 40 democracias no planeta. Depois da Queda do Muro de Berlim (1989), esse número subiu para 60. Em 2000, havia 87 democracias. Hoje existem 89. Portanto, ainda vivemos o período mais democrático da história da humanidade”, afirmou o professor da Harvard University.

Segundo Levitsky, três fatores explicam esta “notável resiliência democrática”:

  • O Ocidente democrático passa por um período de baixa estima, mas não está fora do jogo – “Os EUA e a Europa ainda são parceiros mais atraentes do que a Rússia e a China para muitos países”;
  • Ainda não surgiu uma alternativa legítima à democracia, diferentemente dos anos 20 quando o comunismo e o fascismo pareciam ser uma alternativa – “Não há um modelo russo que líderes e movimentos ao redor do mundo estejam tentando copiar e muitos autocratas amariam replicar o modelo de desenvolvimento chinês, mas isso não é nada fácil”;
  • As novas autocracias sofrem das mesmas fragilidades que as democracias mais recentes, como corrupção, criminalidade e desemprego – “Quando não resolvem esses problemas, enfrentam descontentamento popular e caem”.

“Para os latino-americanos, por exemplo, a democracia ainda é a alternativa menos ruim, ou o mal menor, como se diz na região. Eles não gostam de seus líderes políticos, desconfiam das instituições democráticas, mas gostam de eleições competitivas em que podem não somente escolher seu futuro presidente como expulsar do poder os maus governantes. Nenhum outro regime existente lhes garante essa possibilidade”, disse o cientista político.

“Mas o meu otimismo termina aqui, pois autocratas, ou candidatos a autocratas, têm conseguido chegar ao poder por meio de eleições democráticas com mais frequência nas últimas décadas, inclusive na América Latina. Esses líderes são, em geral, outsiders e/ou populistas que buscam mobilizar parcelas da população contra o sistema político como um todo”, lamentou o palestrante.

“O populismo não é a única forma como as democracias morrem, mas está se tornando a principal causa, especialmente na América Latina. Este não é um fenômeno novo na região, mas está se tornando prevalente”, continuou Levitsky, que chamou a atenção para o fato de que, em praticamente todas as eleições latino-americanas ocorridas nos últimos quatro anos, pelo menos um dos finalistas, quando não os dois, foram candidatos que se apresentaram como antissistema e/ou populistas.

“Nem todos os governantes latino-americanos eleitos recentemente são populistas, assim como nem todos atacarão a democracia, mas o padrão é claro: outsiders estão derrotando insiders em toda a região e a maioria deles está vencendo com um discurso de ataque ao establishment. A história nos mostra que teremos mais crises institucionais no futuro”, alertou.

O populismo é uma ameaça à democracia?

Levitsky definiu populismo como um movimento antielitista, em que o líder, em geral uma personalidade carismática que se comunica de maneira simples e direta, acusa os políticos e os partidos tradicionais de serem corruptos, oligárquicos e pouco representativos dos desejos do povo, prometendo varrê-los do cenário em nome de uma democracia autêntica.

Segundo o palestrante, governantes populistas quase sempre representam uma ameaça à democracia por um conjunto de motivos:

  • Em geral são outsiders, e os outsiders não têm compromisso com as instituições da democracia liberal;
  • Diferentemente dos políticos profissionais, acostumados a participar de negociações e a formar coalizões, os populistas não têm paciência para conviver com as premissas da democracia, como respeitar os Poderes Legislativo e Judiciário, lidar com a oposição, a sociedade civil e mídia;
  • Durante suas campanhas, eles prometem acabar com um sistema que afirmam ser corrupto e pouco representativo, por serem controlados por uma elite política e econômica insensível às necessidades do povo;
  • No poder, eles percebem que terão de conviver com as instituições que tanto criticaram, em geral controladas por uma elite política, administrativa e jurídica formada durante décadas de exercício nos moldes da política tradicional.

“Ao receberem das urnas um mandato bastante radical, os líderes populistas têm um forte incentivo para atacar frontalmente as instituições democráticas, seja tentando enfraquecer o Congresso, alterar a formação dos tribunais ou até mesmo reescrever a Constituição”, disse.

Com apoio da população, os populistas com frequência vencem essa confrontação e acabam concentrando muito poder por um longo período: “Vimos isso com Perón, na Argentina (sobretudo nos anos 1940 e 1950); no Peru, com Fujimori (de 1990 a 2000); e com Chávez, na Venezuela (de 1999 a 2013).” Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, segue no poder até hoje.

Oferta de outsiders e populistas está aumentando na América Latina

Segundo Levitsky, a demanda por populismo na América Latina existe há muito tempo, devido à crônica desigualdade social, ao fosso existente entre as elites e os cidadãos comuns e, sobretudo, devido à incapacidade do Estado de prover saúde, educação e desenvolvimento e garantir moradia, transporte e segurança, entre outras tarefas básicas.

Mas, segundo ele, o que há de novo é o que está acontecendo do lado da oferta: “É muito mais fácil ser populista hoje do que era há 40 ou 50 anos atrás. E o motivo é que os establishments políticos, que exerciam um efeito moderador na política, mantendo as ideias mais radicais fora da agenda, estão se enfraquecendo em todo o mundo e também na América Latina.”

Entre as instituições do sistema político que mais têm sofrido nas últimas décadas, ele destacou três:

  • Os partidos políticos – “Por décadas, ele funcionaram como portões de entrada para a política, ao escolher e lançar os candidatos, filtrando assim os outsiders e os mais radicais”;
  • Os grupos de interesse como associações empresariais e uniões sindicais – “Elas sempre foram uma fonte importante de apoio político, logístico e financeiro aos candidatos, fossem eles de direita ou de esquerda”;
  • Os meios de comunicação, como as emissoras de rádio e TV e os grandes jornais – “O acesso à mídia, que no século 20 era restrita a alguns veículos que tinham grande poder, sempre foi fundamental para os candidatos atingirem os eleitores”.

“Eu não sou Noam Chomsky e não acho que essas organizações constituam  um bloco monolítico. Mesmo dentro do establishment há pluralismo e competição. Mas, apesar das diferenças, o establishment impõe alguns parâmetros para o exercício da política, tanto em termos de substância como de estilo. Políticos que violavam essas regras e ultrapassavam as fronteiras eram, em geral, mal vistos pelo establishment e se tornavam párias”, disse.

Como necessitavam do apoio do sistema, ou de ao menos uma parte considerável dele, os políticos do século 20 buscavam um equilíbrio entre um apelo maior aos eleitores, de um lado, e um relacionamento ao menos razoável com o establishment, de outro. “Não era muito democrático, mas é como as democracias do século 20 funcionavam. Só que os dias deste, digamos, monopólio do establishment acabaram.”

Nos Estados Unidos, na Europa e na América Latina, os políticos não precisam mais do establishment e podem levantar recursos online e atingir os eleitores via redes sociais: “Para alguns políticos, isso representa uma liberação, pois eles podem romper as normas da política e se apresentar à população como um rebelde que não depende mais das elites e pode fazer o que for melhor para o povo.”

O paradoxo do século 21: eleições mais democráticas tornam a democracia vulnerável

Segundo o cientista político, atualmente qualquer pessoa pode vencer uma eleição presidencial, ainda que tenha todo o sistema político contra ela: “É simplesmente muito mais fácil contornar o establishment hoje do que era há 50 anos atrás. Isso é sem dúvida democratizante, mas, ao mesmo tempo, torna a democracia vulnerável a forças antissistêmicas que podem se revelar autoritárias.”

Como exemplo, ele lembrou o caso do atual presidente do Peru, Pedro Castillo, eleito em 2021 em uma eleição disputadíssima. “Castillo, que era um candidato fora do sistema, quase desconhecido, tinha todo o establishment contra ele, os empresários, a elite política, a mídia, até os habitantes da capital, Lima, votaram majoritariamente contra ele. Mas ele conquistou os votos dos habitantes mais pobres do interior e, apesar de toda a resistência, tomou posse. Talvez tenham sido as eleições mais democráticas da história do Peru”, disse.

“Os dias da democracia monitorada pela elite política, intelectual e econômica acabaram. Este processo não será revertido. Portanto, veremos mais Trumps, mais Bolsonaros, mais Bukeles (referência à Nayib Bukele, presidente de El Salvador), mais Castillos. Como a democracia vai se sustentar nesta nova era populista e antissistêmica é o que todos nós, cientistas políticos, queremos saber”, concluiu.

Novas gerações de políticos precisam elevar a barra da política

“Que mensagem você gostaria de transmitir às pessoas que pretendem se candidatar a cargos públicos, sobretudo os mais jovens?”, perguntou a cientista política Mônica Sodré, diretora-executiva da RAPS – Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, na conclusão do webinar.

“É preciso um senso de urgência. Nos Estados Unidos, onde vivo, e no Brasil,  se nos comportarmos como se vivêssemos em tempos normais, a consequência será a perda de nossa democracia. Para ser um líder político em um período em que a democracia está ameaçada, é preciso ter coragem e pensar no futuro. Este é o momento de fazer sacrifícios e assumir compromissos políticos que, talvez, não sejam tão bons individualmente ou para o meu grupo a curto prazo, com o objetivo maior de preservar a democracia a médio e a longo prazo”, disse.

Como exemplo de política que tem demonstrado esta coragem, ele citou a deputada Liz Cheney, que corre o risco de não ser reeleita devido a sua firme atuação contrária ao ex-presidente Donald Trump tanto no Congresso dos EUA quanto no Partido Republicano.

“É preciso também ter plena consciência do grau de insatisfação dos cidadãos com as instituições democráticas, da desconfiança em relação aos políticos. Nos EUA e no Brasil, a legitimidade de todo o sistema político está por um fio. Portanto, aqueles que estão entrando na política têm uma carga muito pesada sobre os ombros. Se continuarem a fazer o que os políticos que os precederam costumavam fazer, se mentirem para os eleitores, se aceitarem propina, eu repito: nós vamos perder nossa democracia. Os políticos mais jovens precisam levantar a barra da política”, concluiu.

Assista: Steven Levitsky na Fundação FHC em 2018

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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