China e o Novo Coronavírus: desafios em um mundo interconectado
“Para ter uma ideia do que vai acontecer no mundo nos próximos meses, tanto no combate à pandemia como em relação à economia, devemos olhar para a China”, falou Arthur Kroeber, sócio-fundador e chefe de pesquisa da consultoria Gavekal.
A crise do COVID-19 está aprofundando o fosso já existente nas relações entre Estados Unidos e China e tanto Washington como Pequim não têm poupado esforços no sentido de “assumir o controle da narrativa sobre a pandemia globalmente”. O resultado é um aumento da tensão entre as duas superpotências, com prováveis consequências não apenas para suas respectivas economias como para a economia global.
Esta foi a principal mensagem do webinar realizado pela Fundação FHC em 2 de abril último, com as participações de um consultor norte-americano e um diplomata brasileiro, ambos com amplo conhecimento da China, adquirido em anos de vida naquele país.
“Uma facção importante do establishment em Washington está cada vez mais vocal em rotular a China como um ‘player perigoso e não confiável’ por ter escondido informações assim que a epidemia eclodiu na Província de Wuhan em janeiro. Já Pequim busca emplacar a narrativa de que soube conduzir a população na vitória contra o vírus e, agora, pode ajudar o mundo a fazer o mesmo.”
Arthur Kroeber, sócio-fundador e chefe de pesquisa da consultoria Gavekal, com sede em Hong Kong
“O presidente Xi Jinping e outras altas autoridades do PC estão entrando em contato com líderes de diversos países para oferecer ajuda no combate ao COVID-19, seja através do compartilhamento de informações e experiência ou pelo envio de médicos, equipamentos e outros insumos essenciais. O objetivo é fortalecer a imagem da China como nova liderança global.”
Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil na República Popular da China
Kroeber: ‘Guerra fria Washington-Pequim prejudicaria economia global’
De acordo com o especialista americano, o presidente Donald Trump adota uma estratégia dúbia: “Ao mesmo tempo que com frequência se refere ao COVID-19 como ‘o vírus chinês’, em outros elogia o presidente Xi Jinping (por ter conseguido controlar a epidemia). Como homem de negócios, ele age de acordo com o que acredita que lhe trará mais benefícios no momento.”
Kroeber destacou que governadores e prefeitos americanos, preocupados com o avanço do Coronavírus nos estados ou cidades sob sua responsabilidade, têm feito esforços significativos para importar máscaras, respiradores e outros produtos e insumos essenciais fabricados por empresas chinesas, inclusive com a mediação de autoridades daquele país. “Existe bastante cooperação com a China nos níveis estadual ou municipal, mas, se a crescente animosidade em Washington evoluir para uma espécie de ‘guerra fria’ contra Pequim, isso será ruim para os EUA, para a China e para a economia global”, afirmou.
Caramuru: China busca ‘reforçar relações bilaterais’
Segundo o diplomata brasileiro, que vive na China e serviu como embaixador na Malásia e naquele país, Pequim está aproveitando a oportunidade de ter know how e amplos recursos humanos (médicos e enfermeiros) para o combate ao COVID-19, assim como ser líder mundial na fabricação de equipamentos médicos, máscaras de proteção e outros insumos fundamentais, para reforçar seus laços com nações de todos os continentes.
“Antes do início da pandemia, já existia em Washington, mesmo entre os líderes democratas, um consenso de que seria necessário agir para conter a crescente influência da China no mundo. Mas, diante da ameaça que o Coronavírus representa para toda a humanidade, eu realmente não vejo disposição por parte da maioria dos países de se juntar à postura beligerante de Washington contra Pequim”, disse Caramuru.
De acordo com o palestrante, mesmo países que foram importantes aliados dos EUA no pós-guerra, como França, Alemanha e Itália, veem atualmente a China como fornecedora crucial de suprimentos, equipamentos ou mesmo recursos humanos essenciais para o combate à pandemia: “As portas estão abertas para uma maior cooperação entre a China e o mundo, e Pequim não pretende deixar passar essa oportunidade.”
Para Caramuru, Pequim fará todos os esforços para evitar um confronto diplomático direto com Washington, ao mesmo tempo que investe em relações bilaterais para fortalecer seu lugar como nova superpotência global a médio e longo prazo. “O mundo pós-pandemia será outro e provavelmente dependerá menos das relações sino-americanas (do que no passado). Nenhum país poderá se omitir na construção desse novo mundo”, disse.
Brasil: ‘menos ideologia, mais diálogo’
Embora tenha evitado comentar recentes ataques à China por parte de integrantes do governo brasileiro e de pessoas próximas ao presidente Jair Bolsonaro, o ex-embaixador destacou ser fundamental manter o diálogo aberto entre Brasília e Pequim.
“O Brasil é essencial para a China como fornecedor de alimentos e outras matérias primas. Já os investimentos chineses são fundamentais para o Brasil no grande esforço para recuperar a economia pós-pandemia, principalmente na área de infraestrutura. É hora de deixar ideologias de lado e apostar na cooperação, como outros países desenvolvidos e em desenvolvimento estão fazendo”, concluiu.
Recessão global e recuperação lenta
Arthur Kroeber dividiu sua fala inicial em três partes: dimensões da pandemia, impactos econômicos e implicações a longo prazo. “Para ter uma ideia do que vai acontecer no mundo nas próximas semanas e meses, tanto no que diz respeito ao combate à pandemia como em relação à economia, devemos olhar atentamente para a China”, disse.
O gráfico abaixo, apresentado pelo consultor, mostra um mergulho de quase 9 pontos percentuais do PIB (Produto Interno Bruto) chinês: de 6% positivos no final de 2019 para até 3% negativos no primeiro trimestre de 2020. Se a contração do PIB chinês se confirmar, será a primeira vez que isso acontecerá em 40 anos.
“Nos Estados Unidos, a previsão é de uma redução de até 20% do PIB nos dois primeiros trimestres deste ano”, disse o especialista.
Segundo o fundador da consultoria Gavekal, a China já teria recuperado cerca de 75% da sua capacidade econômica, mas a principal preocupação é com a sobrevivência das pequenas e médias empresas e o consequente aumento do desemprego. “A China não divulga dados consistentes sobre o mercado de trabalho, os que existem são ruins. Mas tudo indica que a recuperação das pequenas e médias empresas, das quais muita gente depende para sobreviver, será lenta e dolorosa. E isso deve se repetir mundo afora”, afirmou.
Segundo Marcos Caramuru, pela primeira vez em décadas o governo chinês pode abrir mão de estabelecer uma meta para o PIB chinês em 2020 (antes da epidemia, essa meta era de 6%). “Xi Jinping já disse que neste momento combater o desemprego é mais importante do que o desempenho do PIB. Se Pequim decidir não ter uma meta anual para o PIB neste ano, isso representará uma grande novidade na China (país conhecido pelo planejamento econômico de longo prazo)”, disse.
Segunda onda de contaminação?
Apesar do sucesso no combate interno à pandemia (7 de abril foi o primeiro dia sem mortos desde janeiro), o risco de um novo surto de infecções no país não pode ser descartado. “Um dos maiores desafios é o retorno massivo de estudantes chineses que vivem no exterior para as cidades e vilas onde estão suas famílias. Muitos desses jovens podem trazer consigo o vírus. Para tentar evitar a ‘importação’ do COVID-19, as autoridades sanitárias e policiais têm aumentado os controles nas fronteiras (principalmente nos aeroportos) nos últimos dias”, disse.
Também os casos assintomáticos (pessoas que tiveram contato com o vírus, mas não apresentaram sintomas e são transmissores em potencial) podem provocar um novo surto epidêmico, à medida que as medidas de isolamento social forem levantadas. “Este é mais um dos motivos pelo qual o retorno à normalidade precisa ser lento e cuidadoso”, explicou Kroeber.
O mesmo vale para todos os demais países que estão alguns passos atrás no ciclo da pandemia.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.