Bloqueio global: como superar a crise das instituições internacionais
“Fatos recentes como o Brexit e a eleição de Donald Trump são causas sintomas da crise da política, da economia e das instituições a nível global”, disse David Held, cientista político.
Em 2013, o cientista político britânico David Held, um dos mais respeitados estudiosos da democracia e da globalização na atualidade, lançou o livro “Gridlock: Why Global Cooperation is Failing When We Need It Most” , em parceria com seus colegas Thomas Hale e Kevin Young. No livro, cujo título pode ser traduzido como “Bloqueio: Por que a cooperação global está falhando quando mais precisamos dela?”, os três autores defendem a ideia de que as principais ferramentas de construção de políticas globais, como as instituições e os tratados internacionais estabelecidos depois da Segunda Guerra Mundial, se exauriram e não funcionam mais a contento.
Isso, justamente em um período em que são extremamente necessários devido ao prolongado impacto da crise financeira iniciada em 2008/2009 e diante de grandes desafios do Século 21 como o aquecimento climático e novas ameaças à segurança global, entre outros.
“Ao deprimir tantos estudantes e leitores ao redor do mundo, aquele livro acabou tendo impacto oposto ao pretendido. Decidi então escrever um segundo livro, no qual revisarei alguns dos nossos argumentos, com otimismo cauteloso, e buscarei identificar caminhos para a superação desse impasse”, disse Held durante a mesa-redonda “Direitos Humanos e Democracia: O Mundo está em Marcha Ré?”, na Fundação Fernando Henrique Cardoso.
O novo livro, que será publicado em breve com o nome de “Beyond Gridlock: Pathways to Impact”, que poderia ser traduzido livremente como “Para Além do Bloqueio: caminhos para mudar o mundo”, avaliará estratégias para que o mundo progrida em diversas áreas essenciais. O que se pode esperar dos movimentos sociais e das negociações multilaterais? Que áreas da governança global devem ser priorizadas? Que reformas políticas precisam ser feitas nos principais países para restabelecer a crença nas instituições democráticas? Estas são algumas das questões em estudo pelo professor Held no Global Policy Institute da Universidade de Durham, em colaboração com Tom Hale, da Universidade de Oxford, ambas no Reino Unido.
“Vivemos um período em que a política global se encontra à deriva e assistimos ao advento de um populismo autoritário no mundo, o que é muito perigoso. Em nosso projeto de pesquisa temos a intenção de ser moderadamente otimista, mas este otimismo cauteloso dependerá da formação de coalizões de forças sociais e políticas e da colaboração delas com governos mais abertos a mudanças”, afirmou o cientista político na abertura de sua palestra.
Origens de uma nova ordem global
Para explicar sua teoria sobre como chegamos ao atual impasse nos mecanismos de cooperação global, o palestrante retornou ao período imediatamente após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), quando 51 países se reuniram em San Francisco (EUA) e, em 24 de outubro de 1945, fundaram a Organização das Nações Unidas (ONU), em substituição à Liga das Nações. Seu principal órgão é o Conselho de Segurança, cujos cinco membros permanentes foram escolhidos justamente entre os países que saíram vitoriosos da Segunda Guerra: Estados Unidos, Reino Unido, União Soviética (substituída pela Rússia após o fim da URSS em 1991), França e República da China (que passou a se chamar República Popular da China a partir de 1949, com a vitória da revolução comunista liderada por Mao Tse-tung).
“A criação das Nações Unidas foi um clássico exemplo de um projeto de paz por meio do qual se buscou estabelecer uma nova ordem global em que as cinco principais potências vitoriosas permanecessem na mesa de negociações. (Isso funcionou) durante mais de sete décadas, engajando-as na construção de uma nova estrutura institucional para o pós-guerra, com base na lei internacional”, explicou Held.
Em 1944, os EUA e seus aliados já haviam se reunido em New Hampshire (EUA) para lançar as bases de um novo sistema de gerenciamento econômico internacional, os chamados Acordos de Bretton Woods, que deram origem a diversas instituições como Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e BIRD (Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento).
“Esse processo de construção institucional foi suficiente para criar um grande arco de desenvolvimento no período pós-guerra, que estabilizou o sistema internacional. (As instituições multilaterais, somadas a um) capitalismo em expansão e o surgimento de novas tecnologias, produziram uma crescente interdependência ao redor do mundo nos últimos 70 anos, consolidando uma ordem econômica global relativamente aberta, liberal e pacífica que desembocou no processo de globalização”, disse o cientista político.
Também fez parte desse processo a criação em 1951 da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, precursora da atual União Europeia (UE), que teve como um de seus principais objetivos evitar o início de uma nova guerra na Europa. “É importante nos lembrarmos sempre do porquê da fundação das Nações Unidas porque as pessoas se esquecem dessas coisas, como parte dos britânicos, ao apoiar o Brexit, parece ter esquecido das razões que levaram à criação da UE”, disse.
Paradoxo da Guerra Fria
Mesmo a Guerra Fria, as longas décadas em que a URSS e seus satélites, de um lado, e os Estados Unidos e aliados, de outro, se enfrentaram por meio de disputas estratégicas e conflitos indiretos, representou um paradoxo que não invalida ou enfraquece o raciocínio anterior.
“A Guerra Fria foi moldada com base na convicção secular, e isto é uma premissa, de que a boa vida acontece aqui na Terra. Esse pequeno grupo de líderes seculares armados de arsenais nucleares capazes de destruir o mundo várias vezes percebeu que (os países que eles representavam) eram mutuamente vulneráveis e, por este motivo, estabeleceram um conjunto de arranjos formais e informais que manteve esses países conversando por quase 50 anos”, disse o britânico.
“É claro que tal premissa não pararia em pé se um dia armas de destruição em massa caíssem nas mãos de líderes religiosos que crêem que a vida boa se encontra em algum outro lugar do universo. Mas foi justamente a ameaça de destruição nuclear mútua em grande escala que acabou impedindo uma Terceira Guerra Mundial, embora durante a Guerra Fria tenham ocorrido diversas ‘proxy wars’ (guerras por procuração) pelo mundo”, continuou.
Redução da desigualdade global
A globalização se intensificou a partir dos anos 1980 e 1990, com a consolidação do Japão como uma das três maiores economias do mundo, o surgimento dos Tigres Asiáticos (Hong Kong, Cingapura, Coreia do Sul e Taiwan), a impressionante ascensão econômica da China e, a partir dos anos 2000, com os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, alguns deles atualmente em crise), além da extraordinária riqueza dos países exportadores de petróleo na Península Arábica. Esse processo resultou em um progressivo deslocamento do eixo de gravidade da economia mundial da zona do Atlântico Norte em direção ao Leste, principalmente, e ao Sul.
“A migração de manufaturas para a Ásia, com a consequente mudança de empregos nas áreas industrial e de serviços, criou as condições para um grande dinamismo e riqueza em diversos países em desenvolvimento, mas, ao mesmo tempo, os primeiros sinais de um crescente rancor em partes do Ocidente como na Europa e nos EUA”, disse Held.
“A China, hoje o principal mercado para 85% dos produtos de luxo, é o local onde esta transformação tem ocorrido de forma mais extraordinária. Nas noites mais movimentadas da semana, é quase impossível atravessar uma rua em Beijing ou Xangai de tantos Mercedes, BMWs e outros carros de luxo circulando. Nos últimos 30 anos, mais de 400 milhões de chineses saíram da pobreza, algo nunca visto no mundo nesta escala”, afirmou o especialista, para quem, em 2050, o centro econômico do mundo se situará entre China e Índia.
“Vivemos, portanto, um complexo fenômeno em que, no Ocidente, parece haver um aumento da desigualdade econômica, enquanto a nível global a desigualdade entre os países ricos e os em desenvolvimento está caindo. Nem todos estão se beneficiando, mas a redução da desigualdade global entre países é uma grande tendência do Século 21”, disse.
Ordem global em xeque
Segundo David Held, foi justamente o êxito do arranjo institucional criado após a Segunda Guerra que, nesta segunda década do Século 21, está tornando a governança e a cooperação global cada vez mais difícil e complicada. “Aquele período virtuoso de interdependência conduziu a algumas consequências inesperadas que começaram a minar a própria ordem global”, afirmou.
De acordo com o cientista político britânico, quatro fenômenos recentes levaram ao impasse na política global que vivemos hoje.
1 – A emergência da multipolaridade – Ao definir, nas Conferências de Bretton Woods, as regras que dariam rumo à economia mundial por várias décadas, os EUA não previram que estavam criando as estruturas que possibilitariam a entrada de novos atores, mais tarde transformados em competidores. “O que estamos vendo hoje é o aumento do número de Estados que importam nas mais diversas questões, sem os quais não é possível chegar a um acordo de fato”, explicou.
Um exemplo disso é a substituição do G7 (grupo das sete maiores economias do mundo) pelo G20 (grupo das vinte maiores economias) como principal fórum de discussão dos problemas econômicos do planeta a partir da crise financeira iniciada em 2008/2009. “Isso não aconteceu porque os EUA e seus aliados ricos se tornaram mais inclusivos, mas porque eles não conseguem mais resolver os problemas sozinhos. Há mais nações em torno da mesa”, disse.
Outro exemplo são as negociações multilaterais de comércio. De acordo com uma tabela apresentada pelo palestrante (veja em Conteúdos Relacionados nesta página à direita), em 1946 23 países levaram sete meses para concluir um acordo comercial sobre tarifas. Já a Rodada Doha, cujas negociações no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) começaram em 2001 com a participação de 141 países, já consumiu 132 meses sem conclusão à vista.
2 – O surgimento de grandes problemas transnacionais – Outro produto direto do enorme crescimento da economia e da interdependência global das últimas décadas é o surgimento de problemas transnacionais cada vez mais complexos e que afetam cada vez mais países e pessoas.
O principal exemplo é o aquecimento global, resultado do aumento exponencial das emissões de gases causadores do “efeito estufa” durante o Século 20, e a dificuldade em convencer governos de todo o mundo da responsabilidade conjunta para reverter esse processo. “O aquecimento global é um fenômeno gerado historicamente pelas emissões de poluentes realizadas pelos países desenvolvidos do Ocidente a partir da Revolução Industrial, mas o mundo em desenvolvimento, em especial países como China, Índia, Brasil, Indonésia e África do Sul, também precisa se responsabilizar pelo controle de suas emissões atuais e futuras”, disse o palestrante.
3 – Inércia institucional – As instituições criadas no pós-Guerra não refletem as mudanças ocorridas na ordem global nas últimas décadas. O Conselho de Segurança da ONU, no qual apenas cinco potências têm assento permanente e poder de veto (outros dez países participam em sistema de rodízio), é o maior exemplo disso. “A última vez em que estive na sede da ONU em Nova York tive a clara sensação de que a ação não estava acontecendo lá. Em diversos aspectos, este período que estamos vivendo nos remete ao início da década de 1930 (marcada pela Grande Depressão e a ascensão do nazismo), quando as instituições internacionais também estavam muito enfraquecidas”, afirmou.
4 – Fragmentação institucional – Com a paralisia das entidades multilaterais, seu espaço de atuação passa a ser ocupado por um grande número de organizações que, com frequência, competem e entram em conflito umas com as outras, sem que consigam estabelecer uma coordenação e uma agenda comum. Para ilustrar esse processo de pulverização, Held se lembrou do grande tsunami no Oceano Índico em 2004. “Governos de todo o mundo ofereceram cooperação, milhares de ONGs enviaram funcionários e voluntários para as zonas mais atingidas, mas cerca de 80% da ajuda não atingiu seus objetivos devido à falta de coordenação, à duplicação e ao desperdício”, disse.
Nacionalismo e xenofobia
Todo este enfraquecimento institucional descrito pelo palestrante se acelerou nos últimos anos devido ao impacto da crise financeira global de 2008/2009, cujo custo, afirmou, não foi pago pelo sistema financeiro, mas principalmente pelos contribuintes e pelos cidadãos. “O prolongamento das medidas de austeridade e o aumento do desemprego reforçaram a percepção de que partes significativas da população estão sendo deixadas para trás, criando um terreno fértil para protestos contra a globalização, a emergência de movimentos nacionalistas e o crescimento da xenofobia”, disse.
“Este fenômeno é especialmente agudo nos Estados Unidos e no Reino Unido, o que explica a vitória de Trump e do Brexit, mas também pode ter reflexos nas próximas eleições na França, na Alemanha, em outros países da Europa Ocidental e do Leste Europeu, assim como no fortalecimento do nacionalismo hindu e no ressurgimento do conservadorismo no Japão”, alertou.
“O problema é que, enquanto os mecanismos de solução de problemas a nível global estão inibidos, o advento do nacionalismo em diversas regiões do globo não resolverá nenhum desses problemas, só os agravará, pois aumenta o risco do uso da força e da violência”, disse Held.
Também a guerra contra o terrorismo, iniciada após os atentados de 11 de Setembro de 2001, resultou em intervenções militares altamente questionáveis do ponto de vista da estabilidade política e da segurança regional e global em países como Afeganistão, Iraque e Líbia. Já a Síria se tornou palco de uma “miniguerra mundial”, como descrito pela BBC, que já dura seis anos, envolvendo diversos países do Oriente Médio, EUA e Rússia, entre outros.
“A completa desestabilização desses países abriu os portões para a migração em massa de refugiados para o continente europeu, estimulando o tráfico humano no Mar Mediterrâneo e no norte da África, provocando milhares de mortes pelo caminho e complicando ainda mais a situação política na Europa”, disse o professor.
Como mudar o mundo?
Já na parte final de sua palestra, David Held deu algumas pistas do conteúdo de seu próximo livro, a ser publicado em breve. Segundo ele, “Beyond Gridlock” jogará luz sobre 15 diferentes áreas nas quais pode haver progresso no desenvolvimento de políticas globais, entre elas cooperação monetária, regulação de investimentos, direitos humanos, mudança climática, controle de armas de destruição em massa e outras. “Ao analisar essas 15 áreas, colocaremos sempre a seguinte pergunta: quais caminhos de mudanças podem trazer resultados efetivos?”, adiantou.
Um exemplo positivo recente aconteceu durante a Conferência do Clima de Paris, no final de 2015, quando países de todo o mundo aceitaram reduzir suas emissões de gases causadores do “efeito estufa” e se comprometeram em rever suas metas a cada cinco anos, fechando cada vez mais a torneira das emissões. “Após 20 anos de negociações fracassadas em que se tentou impor um acordo de cima para baixo, em Paris houve uma mudança de estratégia. Foi introduzido um novo mecanismo, conhecido como ‘pledge-and-review’ (algo como ‘mecanismo de revisão de promessa’), em que cada país, de acordo com suas condições e limites, se comprometeu a trilhar o caminho da redução das emissões. Esse mecanismo dará maior poder a grupos ambientalistas locais para exigir o cumprimento do que foi prometido”, afirmou.
Held adiantou três caminhos principais para a mudança:
1 – Pressões de baixo para cima – Segundo o cientista político, movimentos e coalizões formadas na sociedade civil devem buscar elos de cooperação com governos reformistas para avançar na solução de questões importantes do Século 21. “Para produzirem mudanças de baixo para cima, movimentos sociais precisam estabelecer algum tipo de colaboração com o poder do Estado. Do contrário, eles surgem, chamam atenção, mas depois desaparecem”, disse, citando o movimento Occupy Wall Street como exemplo negativo.
Como exemplo de ativismo social que levou a mudanças significativas de política no passado, ele citou o Tratado de Erradicação das Minas Terrestres, a criação do Tribunal Penal Internacional e a Convenção para o Controle do Tabaco.
2 – Pressões laterais ou horizontais – De acordo com o palestrante, quando instituições ganham autonomia e conseguem se adaptar para agir por conta própria, surge um importante fator de mudança. Como exemplo, ele citou os mecanismos de solução de conflitos comerciais da OMC, que têm conseguido, apesar da resistência dos países-membros, fazer valer suas decisões.
3 – Ações de cima para baixo – Para Held, há momentos em que os Estados, principalmente aqueles com mais recursos, conseguem ser eficientes no combate a problemas graves. Foi o que aconteceu durante a epidemia de Ebola na África Ocidental em 2014, quando, após alguns meses de inércia, os EUA contribuíram de forma efetiva para controlar a disseminação do vírus.
“Em março de 2014, a ONG Médicos Sem Fronteiras anunciou que a epidemia estava fora de controle e que, se nada fosse feito, mais de 1 milhão de pessoas morreria em pouco tempo. Nada aconteceu em março, em abril e em maio, mas em junho dois norte-americanos que trabalhavam em áreas afetadas na África Ocidental contraíram Ebola. Então, Obama liberou recursos para pesquisas sobre o vírus e, mais importante, enviou marines (fuzileiros navais) para ajudar na logística de enfrentamento da epidemia na Libéria, colocando-os sob comando direto do presidente do país africano, algo improvável até então. Ou seja, uma ameaça real e concreta à saúde dos norte-americanos possibilitou uma cooperação internacional que deu resultados relativamente rápidos”, contou.
“O que funcionou antes, durante toda a segunda metade do Século 20, não está mais funcionando agora, nesta segunda década do Século 21. Os esforços para romper esse impasse dependem fundamentalmente de nossa capacidade de identificar novos caminhos de cooperação internacional tanto no nível da sociedade como dos governos”, concluiu o estudioso britânico.
Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.