Argentina, 40 anos de Democracia: é possível reconstruir o futuro?
Nossos convidados foram dois grandes intelectuais públicos do país vizinho: o jornalista Carlos Pagni e o economista Pablo Gerchunoff.
Em novembro deste ano, a Argentina pode eleger o primeiro presidente libertário de extrema direita da história, mas não é por que a sociedade argentina seja, neste momento, majoritariamente favorável ao ideário ultraliberal e, sim, porque existe no país um sentimento de esgotamento em relação às forças políticas tradicionais.
O candidato antissistema Javier Milei, que terminou as prévias de agosto em primeiro lugar, está conseguindo galvanizar esse sentimento em prol de sua tentativa de chegar à Casa Rosada. “Se isso acontecer, a eleição do primeiro presidente libertário do mundo, será uma exuberância argentina, típica da nossa soberba. E é possível que ocorra, pois a situação chegou aonde chegou como resultado de um longo período de penúrias e repetidas frustrações. O voto em Milei é um voto de protesto”, disse o historiador econômico Pablo Gerchunoff neste debate presencial na sede da Fundação FHC.
“O que está acontecendo neste momento é resultado de uma longa história de desencontros entre a sociedade argentina e o bem-estar econômico. Vivemos uma crise sem fim e sem solução que já dura décadas, e que vai envolvendo ao longo do tempo os distintos atores políticos até chegar ao ponto de induzir as pessoas à conclusão de que ‘se tudo está mal, já mudamos de governo 20 vezes e nenhum resolveu o problema, então vamos radicalizar’”, explicou o historiador e jornalista Carlos Pagni, colunista dos jornais La Nacion (Buenos Aires) e El País (Madri).
Nas prévias eleitorais realizadas em 13 de agosto, Javier Milei, do movimento La Libertad Avanza, ficou em primeiro lugar, com 30,04% dos votos. A candidata Patricia Bullrich, da coligação Juntos por El Cambio (centro-direita), obteve 28,27% dos votos, e o atual ministro da Economia, o peronista Sergio Massa (centro-esquerda), ficou em terceiro lugar, com 27,27% dos votos.
Segundo Pagni – escolhido pela consultoria Poliarquía como o jornalista mais respeitado da Argentina pela sexta vez –, apesar do desempenho surpreendente de Milei nas prévias, quando são definidos os candidatos de cada coligação, não é possível prever quem será o vitorioso (ou a vitoriosa) na eleição presidencial, cujo primeiro turno acontece em 22 de outubro e o segundo turno, em 19 de novembro.
“Existe uma incerteza total, pois 11 milhões de eleitores argentinos não foram às urnas nas primárias, mas podem comparecer na hora do vamos ver. Não sabemos o que de fato estão pensando ou sentindo e, como a diferença de votos entre os três principais candidatos não foi tão grande assim, os três têm direito de achar que podem vencer. Por isso, ninguém vai fazer acordo com ninguém”, disse o colunista.
Fenômeno Milei começou a ganhar força em 2020, no auge da pandemia
Para Pablo Gerchunoff – que em sua fala inicial fez uma análise histórica da política e da economia argentina nos últimos 50 anos, incluindo os últimos 40 anos de regime democrático –, a ideia de uma liberdade irrestrita conquistou parte da juventude durante o auge da quarentena em 2020, primeiro ano da pandemia do novo coronavírus.
“Houve a pandemia, veio a quarentena, que foi muito longa e rígida, e os jovens só queriam sair para dançar. É falsa, portanto, a ideia de que a origem do fenômeno Milei seja uma conceitualização liberal por parte da sociedade argentina. Ele soube aproveitar a revolta dos jovens com a quarentena para avançar a ideia de ‘liberdade, liberdade, liberdade’ e atrair a juventude para a sua campanha radical”, explicou o professor emérito da Universidad Torcuato Di Tella.
“De fato, a quarentena teve um impacto muito depressivo sobre a juventude. A partir de agosto de 2020, começamos a identificar uma grande movimentação nas redes sociais, sobretudo no Twitter, contra o excesso de isolamento e parte significativa desse pessoal termina por se conectar a Milei. Ele se torna então um representante dos muito jovens”, disse Pagni. O jornalista destaca mais um fator que leva parte significativa dos jovens a apoiar o candidato antissistema: “As pessoas que estão hoje na faixa dos 20 anos nunca viram a Argentina bem e, por isso, muitos agora se voltam contra os políticos tradicionais.”
Segundo Pagni, a atual campanha eleitoral é marcada pela onda do “ni ni ni ni”, que começou a aparecer em pesquisas de opinião pública há cerca de três anos, quando uma parcela ainda pequena do eleitorado já afirmava não gostar nem de Cristina Kirchner nem de Maurício Macri (ex-presidentes da República), nem de Horacio Larreta (prefeito de Buenos Aires), nem de Alberto Fernández (atual presidente). “São os ‘ni ni ni ni’, que só aumentaram desde então e agora impulsionam a candidatura Milei”, afirmou.
Crise da representação política é a maior ameaça à democracia argentina
Segundo os palestrantes, não há risco de uma ruptura democrática ou de uma escalada do autoritarismo na Argentina, mas sim de um vazio político resultante da crise do sistema de representação política, que pode dificultar a aprovação de reformas essenciais para tirar o país da hiperinflação e da atual crise econômica e social.
“Vivemos hoje na Argentina uma dinâmica mais ou menos parecida com as vividas recentemente na Espanha, no Chile e no Peru, caracterizada pelo desencanto com a política tradicional, por fissuras nos partidos que formavam o sistema político, que no caso argentino era quase um bipartidarismo, e pela tendência de radicalização do voto. A ameaça à democracia não vem do excesso de poder autoritário, mas da fragmentação da representação política e do vazio de poder que pode resultar disso”, disse Carlos Pagni.
Segundo o colunista, tanto o kirchnerismo (liderado pela ex-presidente Cristina Kirchner) como a centro-direita (Juntos por el Cambio, liderado pelo ex-presidente Mauricio Macri) enfrentam um déficit de representação e encontram dificuldade de apresentar um discurso convincente na atual campanha eleitoral.
“O kirchnerismo é o mais afetado, pois seu candidato Sergio Massa vive uma contradição insolúvel: além de ser o ministro da Economia no meio de um processo hiperinflacionário, ele não pode defender abertamente o governo de Alberto Fernández, do qual é peça central, porque isso seria uma provocação à Cristina,” explicou Pagni. Embora tenha sido a madrinha da candidatura de Alberto Fernández em 2019, e ocupe o cargo de vice-presidente da República, Cristina sempre fez o que pôde para dificultar a vida do atual presidente e impedir que ele se fortalecesse dentro do peronismo.
“O governo de Alberto Fernández foi muito impactado pela pandemia e, depois, pela Guerra da Ucrânia. Ele não podia prever esses acontecimentos, mas uma coisa ele sabia desde o início: ela não tinha votos, que na verdade eram de Cristina, e nunca teve poder, pois é a ex-presidente quem dá as cartas no peronismo. É inviável fazer um bom governo nessas condições”, disse Pablo Gerchunoff.
Já a candidata de centro-direita, Patricia Bullrich, mesmo chegando em segundo lugar nas prévias, foi deslocada pelo êxito de Milei e está tendo dificuldade de encontrar um novo discurso. “Se ela adotar posições próximas às de Milei, poderá perder votos da direita moderada”, disse Pagni.
Enquanto isso, Javier Milei vive uma fase de grande popularidade. “Emocionalmente instável, Milei sofreu bullying a vida toda, e muitos argentinos que se veem como vítimas de uma crise que não acaba nunca estão se identificando com ele. Ele está recebendo uma onda de carinho e de apoio que nunca teve antes e está gostando disso”, disse Pagni.
Segundo o jornalista, uma possível vitória de Milei pode abrir caminho para a constituição de um novo populismo, que se alimenta da frustração contra os representantes da classe política tradicional e simplifica os problemas, ao propor por exemplo a dolarização da economia.
Para Gerchunoff, ao defender a dolarização da economia da Argentina, o objetivo principal de Milei é minar o governo de Alberto Fernández, já bastante impopular, e prejudicar irreversivelmente a candidatura do ministro da Economia, Sergio Massa. “Cada vez que ele ameaça dolarizar o país, o dólar dispara. Mas o que Milei de fato fará na economia, ninguém sabe.”
“Não acho que a sociedade argentina esteja preparada para a discussão se devemos ou não permitir o comércio de órgãos ou até mesmo a venda de crianças para adoção, duas ideias radicais aventadas por Milei. Mas, quando perguntamos aos apoiadores dele o que pensam de suas declarações, a resposta é que ‘os outros candidatos não dizem loucuras, mas as cometem’. Sabemos o que ele quer destruir, mas o que pretende construir é uma incógnita”, afirmou Pagni.
Diante da pergunta-título deste evento – 40 anos de Democracia: é possível reconstruir o futuro? –, os palestrantes foram cautelosos:
“A Argentina tinha um futuro que parecia promissor, mas que se perdeu com as sucessivas crises das últimas cinco décadas. Seremos capazes de reconstruí-lo? Tenho dúvidas se temos hoje o instrumental político necessário para avançar em um programa de reformas razoável, coerente. Até quanto sobrevive o sistema de proteção social em um país com hiperinflação? Temo por um novo período de explosão social, como ocorreu em dezembro de 2001”, perguntou Pagni.
“No momento, vejo as perspectivas da Argentina por trás de um vidro embaçado. Provavelmente a democracia vai sobreviver, mas com uma perda importante de qualidade devido ao desmantelamento do sistema de representação política”, disse Gerchunoff.
Com um pé em cada canoa, Macri quer se vingar por não ter sido reeleito
Gerchunoff chamou atenção para o papel duplo que o ex-presidente Mauricio Macri está jogando na atual campanha, sobretudo depois que Javier Milei surpreendeu nas prévias: “O governo de Macri terminou mal, e ele não conseguiu se reeleger, mas agora tem dois candidatos a presidente, uma candidata de direita clássica (Patricia Bullrich) e um candidato reacionário (Javier Milei). Qualquer um que vença, Macri conquistará seu objetivo maior, que é o de se vingar”, disse o historiador.
A vingança de Macri seria contra o kirchnerismo, mas também contra aliados que, na visão do ex-presidente, contribuíram para o fracasso de seu governo, sobretudo na gestão da economia.
Embora Bullrich seja a candidata oficial de seu movimento político, Juntos por el Cambio, Macri não só tem dado sinais de que poderia apoiar um futuro governo Milei, como estaria ajudando o candidato de extrema direita a obter apoios e recursos junto ao empresariado nesta fase final da campanha. “Se não governarem eles (o peronismo), nem nós (Juntos por el Cambio), governaremos nós através de Javier”, teria dito Macri, segundo empresários próximos ao ex-presidente, de acordo com reportagem de um site argentino.
Segundo o site Página 12, se vencer a eleição, Milei poderá convidar Macri para ser uma espécie de “super embaixador” do país. “Ao apoiar simultaneamente à Patricia e ao Milei, o ex-presidente Macri encontrou a oportunidade de uma vingança contra todos que o impediram de continuar na Casa Rosada”, concluiu Gerchunoff.
Assista ao vídeo do debate na íntegra.
Saiba Mais:
Leia o artigo “Estilos argentinos de fazer política”, do cientista político Vicente Palermo, publicado pela coleção Conexão América Latina
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.