Aprendendo a viver com a rivalidade estratégica entre EUA e China
“Além dos riscos financeiros, nos próximos anos os maiores desafios serão reduzir a pobreza e a poluição atmosférica”, falou Arthur R. Kroeber, jornalista americano especializado em economia.
“Em Washington, existe hoje um consenso — que junta republicanos, democratas e independentes — de que o engajamento das últimas décadas com Pequim não trouxe os resultados esperados e de que uma nova estratégia, bem mais dura, se faz necessária.”
“A avaliação é de que os EUA estão em meio a uma corrida com a China pela liderança tecnológica no mundo, e a resposta para isso é uma (nova) guerra fria econômica.”
Arthur R. Kroeber, jornalista especializado em economia, é fundador da consultoria Gavekal Dragonomics e membro do Comitê Nacional de Relações EUA-China
As relações entre EUA e China – que nas últimas décadas sempre foram complicadas, mas em diversos aspectos cooperativas – estão entrando em uma era em que a rivalidade e a competição devem crescer e o nível de colaboração diminuirá bastante. “Em parte, isso é consequência da chegada de Donald Trump à Casa Branca, mas conversas com políticos, policy makers e estudiosos em Washington deixam claro que, mesmo que Hillary ou outra pessoa tivesse sido eleita, haveria uma mudança significativa nas relações com a China”, disse Arthur R. Kroeber, que atuou como jornalista econômico especializado em Ásia e atualmente dirige uma consultoria baseada na China, em palestra na Fundação FHC.
“O que está acontecendo não é uma mudança pontual ou de curto prazo, que dependa de personalidades específicas, mas uma tendência de longo prazo que afetará todo o planeta, pois estamos falando das duas maiores economias do planeta, que dominarão o comércio e o investimento no mundo nas próximas décadas”, afirmou o autor de “China´s Economy: What Everyone Needs to Know” (2016).
Arthur R. Kroeber, fundador e chefe de pesquisa da Gavekal, com escritórios em Hong Kong, Pequim e Estocolmo, dividiu sua palestra em duas partes.
Na primeira meia hora, fez um panorama das recentes mudanças na política doméstica chinesa, consolidadas durante o 19º Congresso do Partido Comunista da China (em outubro passado) e na economia do país, “que passou por um período tumultuado há uns três anos, mas acertou o passo novamente, em grande parte devido a políticas governamentais bem-sucedidas”. (Veja como foi o seminário China vive ‘contradição entre confiança externa e desconfiança externa’, com David Shambaugh).
Nos 20 minutos restantes, o consultor falou sobre como os EUA estão vendo a China e de que maneira as forças políticas dominantes atualmente no governo norte-americano estão moldando essa nova relação caracterizada mais pela rivalidade do que pela colaboração, ainda que complicada, das últimas décadas.
Impactos no Brasil
Já na fase de perguntas e respostas, Kroeber disse que a “agenda contra todos de Trump” não é boa para o Brasil. Por outro lado, o país pode se beneficiar de investimentos chineses, principalmente em infraestrutura e agribusiness, mas para isso precisa colocar ordem na casa. “No final do dia, o sucesso econômico dos países é determinado por eles próprios. As soluções estão em casa e, se quiser se beneficiar das crescentes oportunidades do comércio global, o Brasil precisa olhar para sua própria governança e fortalecer suas políticas domésticas. Só assim conseguirá negociar com outros países ou regiões em posição de força”, afirmou.
Também alertou para a possibilidade de enfraquecimento das instituições internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (que desde 2013 é dirigida pelo brasileiro Roberto Azevêdo), o que seria negativo para o país e todo o sistema multilateral (leia sobre o seminário Bloqueio Global: como superar a crise das instituições internacionais, com o cientista político britânico David Held).
Veja os principais destaques da palestra de Arthur Kroeber:
1. O presidente Xi Jinping está firmemente no comando:
– Em 2017, durante o 19º Congresso do PC chinês, Xi colocou aliados próximos em posições-chave do Politburo (comitê central do partido) e do governo;
– Em 11 de março último, o Congresso Nacional do Povo aboliu o limite de mandatos presidenciais, e o líder chinês poderá seguir no cargo após 2022;
– Emenda constitucional recém-aprovada submete todos os servidores públicos na China, em todos os níveis de governo, incluindo as empresas estatais, à disciplina partidária, não apenas em relação ao combate à corrupção, mas também a toda e qualquer desobediência a políticas centralizadas.
“Não compro a ideia de que Xi Jinping deseje estender seu mandato indefinidamente por razões pessoais, para proteger a si mesmo e a seus parceiros. Existe uma preocupação de governança por trás. O objetivo é reforçar a agenda institucional para criar um regime forte e resiliente que sobreviva ao próprio Xi Jinping.”
“Quem ignorar determinações do governo e tentar modificá-las ou adaptá-las, poderá ser processado com base na Constituição e estará sujeito a punições severas.”
“Alguns sustentam que Xi estaria dando um passo atrás ao fazer da China, um país imenso e diverso, algo próximo do sistema soviético. Mas a cúpula parece ter chegado à conclusão de que as autoridades regionais e locais se tornaram muito fortes e há muitos interesses envolvidos, o que poderia levar ao esfacelamento do sistema chinês.”
“Uma das razões pela qual Xi optou por um sistema mais centralizado é que agora ele tem outro instrumento para garantir o fluxo de informações: a internet. Com os smartphones, as redes sociais e o acesso a uma imensa quantidade de dados digitais, o governo monitora constantemente a situação mesmo em regiões mais distantes. Daí, o investimento pesado em inteligência artificial, entre outras tecnologias inovadoras.”
2. As boas perspectivas econômicas em 2018 e nos próximos anos:
– A recuperação econômica sobreviveu a um forte aperto financeiro e de crédito, realizado em 2017 com o objetivo de reduzir riscos de uma crise financeira;
– As empresas (inclusive as estatais) estão menos endividadas, com controle dos investimentos e da especulação financeira, e o financiamento da economia real está acelerando;
“Em 2015, diversas regiões e setores da economia estavam em recessão, bolsas caíam e a fuga de capitais preocupava. Alguns analistas, inclusive eu, achavam que as lideranças haviam perdido a capacidade de gerenciar a economia. Três anos depois, houve uma bem-sucedida recuperação, em parte devido à recuperação global, mas também por causa de acertos domésticos.”
“Além dos riscos financeiros, em parte controlados, nos próximos anos os maiores desafios serão reduzir a pobreza e a poluição atmosférica.”
“Com a economia e a política sob controle, a alta liderança chinesa não precisa se preocupar tanto com questões do dia a dia e pode se concentrar em definir os objetivos estratégicos para os próximos 10, 20 anos ou 30 anos.”
3. ‘Made in China 2025’, uma política industrial com vários objetivos simultâneos:
– Incrementar a produtividade industrial com melhor uso de TI;
– Desenvolver a liderança mundial em setores tecnológicos como inteligência artificial, robótica, semicondutores, biomedicina e veículos movidos a novas energias;
– Tornar o país auto-suficiente na produção de 70% de materiais e componentes essenciais até 2025;
– Garantir uma melhor integração entre as tecnologias civil e militar. Criou-se uma comissão com esse objetivo, em linha com o fortalecimento do controle do Estado sobre a economia, dentro da visão de que os mercados são uma ferramenta do Estado e não uma força independente.
“Apenas em 2016, houve investimentos de US$ 232 bilhões em pesquisa e desenvolvimento, 80% desse total realizado por empresas (a maior parte delas estatais). Fundos de capital governamentais têm mais de US$ 300 bilhões à disposição, um terço disso para fábricas de semicondutores. Projetos de inovação e startups também são prioridade.”
“EUA, UE e outros países que exportam para a China obviamente não estão muito felizes com a política de substituição de importações financiada com capital disponibilizado pelo Estado.”
“Para quem vê de fora, uma política industrial associada a projetos para melhorar a capacidade militar do país é motivo de preocupação adicional.”
4. O que é a iniciativa ‘Belt & Road’, a ‘rota da seda do século 21’:
– Não se trata de uma longa lista de projetos de infraestrutura (estradas, ferrovias, portos, aeroportos, oleodutos, gasodutos etc.), mas de uma grande estratégia para promover a integração econômica e física da China e suas regiões com vizinhos e outros países da Ásia, Oceania, Oriente Médio e Europa por terra e mar (saiba como foi o seminário Cenário global do investimento em infraestrutura: principais tendências);
– A intenção é estender gradualmente a influência econômica e política chinesa mundo afora, começando por seu entorno;
– O B&R é uma alternativa ao modelo de integração via comércio e investimentos implementado pelos norte-americanos e seus aliados após a Segunda Guerra Mundial, com resultados muito positivos, em especial para os EUA, que se consolidaram como maior potência mundial;
“Após vencer a Segunda Guerra, os EUA não pouparam esforços em criar uma ordem econômica liberal, costurada por meio de acordos multilaterais e tratados comerciais, que não apenas conteve a expansão do comunismo mundo afora como evitou novos conflitos de grandes proporções. Tornaram-se o centro de um sistema que resultou em sete décadas de crescimento econômico e relativa estabilidade. A China quer fazer a mesma coisa, mas por meio de conexões físicas com outros países.”
“Ao criar seu próprio sistema de engajamento internacional, a China deixa claro que não quer ser um parceiro júnior no sistema americano. E tem recursos para financiar isso.”
“Com a decisão de Trump de retirar os EUA da Parceria Transpacífica (TPP), a iniciativa Belt & Road se transformou no ´only game in town´.”
“A principal questão de longo termo é se as visões chinesa e norte-americana de integração econômica e política coexistirão ou entrarão em conflito. Temerosos em dividir o poder, os EUA tentarão atrapalhar os planos chineses?”
Saiba mais sobre a guinada dos EUA em relação à China:
1. Um ano após Trump chegar à Casa Branca, três forças no governo finalmente neutralizaram grupos mais moderados e formaram uma aliança linha-dura:
– A primeira força é o próprio Trump, que aposta em sua capacidade empresarial de negociação para forçar outros países a fazerem concessões e, assim, cumprir sua promessa de campanha de colocar a América em primeiro lugar (‘America First’);
– Ao defenderem um endurecimento comercial, os guerreiros do comércio (‘trade warriors’) querem que a China desmantele sua política industrial de substituição de importação (Made in China 2025);
– Com a recente indicação do ex-chefe da CIA Michael Pompeo para o Departamento de Estado, os falcões da segurança nacional (‘national security hawks’) agora controlam não somente a diplomacia do país como o Departamento de Defesa;
– ‘Trade warriors’ e ‘security hawks’ não concordam em tudo, mas convergem na estratégia de iniciar uma ‘guerra fria’ com a China para conter sua ascensão como nova potência mundial e dificultar o acesso chinês a tecnologias de ponta.
2. Objetivo dos Estados Unidos é frear a ascensão da China:
– Mencionada 23 vezes no primeiro documento ‘Estratégia de Segurança Nacional’ (National Security Strategy, NSS) do governo Trump, a China é descrita como concorrente estratégico dos EUA, ao “competir efetivamente nos domínios político, econômico, militar e de comunicação de formas provavelmente não equivalentes à de outros competidores”, segundo reportagem do Washington Post;
– O governo Trump exige que a China adote medidas para reduzir seu superávit comercial com os EUA em US$ 100 bilhões (um quarto do total);
– Em agosto de 2017, os EUA iniciaram investigações contra a China baseadas na seção 301 do Ato de Comércio de 1974, que autoriza o governo a impor restrições a países estrangeiros responsáveis por práticas comerciais consideradas injustas;
– As investigações devem resultar em aumento de tarifas e estabelecimento de cotas de importação de produtos chineses, incluindo paineis solares, máquinas de lavar etc;
– Legislação em trâmite no Congresso pode proibir que chineses comprem ou invistam em empresas de tecnologia norte-americanas;
– Recentemente o diretor do FBI, Christopher Wray, disse que todo estudante chinês em universidades americanas (cerca de 300 mil) representa um risco potencial à segurança nacional;
– Empresas de tecnologia também podem ser impedidas de contratar funcionários de origem chinesa.
“Trata-se de uma guerra fria tecnológica e econômica, uma ampla agenda cujo objetivo é impedir que a China se torne um robusto competidor (e tire) a liderança econômica e política dos EUA a nível global.”
“O objetivo principal desse conjunto de medidas é conter a ascensão chinesa como nova potência mundial, mas pode prejudicar outros países também.”
O que pode acontecer com essa nova rivalidade sino-americana:
1. Chineses tendem a respostas iniciais comedidas, mas conflito econômica pode escalar:
– A reação inicial da China deve ser comedida, com reações pontuais às medidas americanas e abertura de processos na OMC;
– O impacto da imposição de tarifas para reduzir o superávit chinês com os EUA poderá resultar em uma pequena redução do PIB chinês, o que pode ser compensado com outras medidas de estímulo econômico;
– Impedida de investir em setores da economia norte-americana, a China deverá dirigir esse investimento a outros países fortes em tecnologia;
– No pior cenário, uma ampla guerra comercial norte-americana, envolvendo a China e outros países, poderá causar uma desaceleração da economia a nível global.
“O que estamos começando a ver é o impacto do movimento das forças tectônicas da ascensão chinesa versus a ansiedade americana diante desse fenômeno. Felizmente há gente nos EUA, na China e no resto do mundo que tem consciência de que, se essa rivalidade for longe demais, todo o sistema internacional de comércio estará ameaçado.”
“Ao não responder imediatamente e com força a ameaças e intimidações, o governo chinês quer posar de bom moço e se posicionar como um ator responsável e garantidor do sistema internacional.”
“O cenário político nos EUA pode se alterar com uma derrota dos republicanos nas eleições para o Congresso no segundo semestre de 2018 ou um pouco provável, mas possível, impeachment de Trump. Mas é bom lembrar que mesmo democratas concordam que é necessário impor um certo grau de contenção à China.”
“Os EUA buscam aliados para sua guerra econômica contra a China, mas não está claro se terão sucesso. Um exemplo dessa dificuldade foi o recente comunicado conjunto da chanceler alemã, Angela Merkel, e do presidente chinês, Xi Jinping, no qual ambos se comprometem a lutar pelo livre comércio (depois que Trump elevou as tarifas de importação aço e alumínio).”
“A China viu o que aconteceu com o Japão e a Alemanha na Segunda Guerra e sabe que não é uma boa ideia desafiar o poderio militar norte-americano. Por isso, não tem interesse em uma escalada que resulte em confronto militar.”
Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.