Debates
20 de agosto de 2018

Acordos de Leniência: teoria e prática no Brasil e nos Estados Unidos

“No Brasil, MPF, AGU, CGU e TCU disputam quem tem o maior porrete. É indispensável que o sistema convirja para uma espécie de guichê único”, afirmou Ricardo Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça.

“A principal característica de acordos negociados entre o Departamento de Justiça norte-americano e empresas envolvidas em fraudes é a flexibilidade.”
William Burck, advogado e ex-procurador federal em Nova York

“No Brasil, MPF, AGU, CGU e TCU disputam quem tem o maior porrete. É indispensável que o sistema convirja para uma espécie de guichê único ou um guarda-chuva institucional.”
Ricardo Villas Bôas Cueva, ministro do Superior Tribunal de Justiça

“A multiplicidade institucional está presente em muitos países. Se tivéssemos um único órgão centralizado responsável pelo combate à corrupção será que a Operação Lava Jato teria existido?”
Caio Farah Rodriguez, advogado e professor da FGV Direito Rio

“Estamos aprendendo a lidar com todo um manancial de novas regras num caso de enorme proporção, a Lava Jato. Às vezes as coisas acontecem no Brasil para testar se Deus é brasileiro. Espero que seja.”
Bruno Dantas Nascimento, ministro do Tribunal de Contas da União

“Uma parte da sociedade rejeita modelos negociais como a delação premiada e os acordos de leniência por considerar que eles acabam beneficiando criminosos. Para consolidar essas ferramentas, é importante vencer esse preconceito.”
Vladimir Aras, procurador regional da República (MPF) em Brasília

“Nos EUA, mais de 90% dos procedimentos de execução na Securities and Exchange Commission (SEC) são resolvidos com acordos entre as partes. O principal motivo é que a agência federal não tem orçamento, staff e outros recursos para investigar todos os casos por conta própria.”
Alan Berkeley, advogado especializado em transações corporativas e questões de execução de valores mobiliários

Enquanto no Brasil os acordos de leniência são novidade e ainda resultam em conflito entre os diversos órgãos do Estado envolvidos no combate à corrupção e a outros crimes e ilegalidades, nos EUA os modos de resolução consensual são o principal instrumento de solução de processos e controvérsias, com ampla liberdade de ação entre as partes envolvidas na negociação.

Esta foi a principal conclusão deste seminário que reuniu, no primeiro painel, autoridades de diversos órgãos do Estado brasileiro, e, no segundo, dois advogados norte-americanos e um brasileiro. “Em dezembro de 2017, realizamos aqui na Fundação FHC um seminário, também numa perspectiva comparada entre Brasil e EUA, sobre os acordos de colaboração premiada, ou ‘plea bargain’. Hoje analisaremos os acordos de leniência, que não são assunto apenas de criminalistas e envolvem uma pluralidade de profissionais. Que lições temos a aprender da experiência norte-americana e quais os rumos que temos adotado nessa área?”, perguntou Flávio Yarshell, advogado atuante nas áreas consultiva e contenciosa (judicial e arbitral) e mediador do evento.

História de sucesso

Ricardo Villas Bôas Cueva (Superior Tribunal de Justiça) lembrou que o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) já vem realizando acordos com empresas desde o início dos anos 2000. “É uma história de sucesso, com cerca de 90 acordos celebrados. Em 2013, a Lei Anticorrupção trouxe para nosso ordenamento jurídico a possibilidade de acordos de leniência inspirados no modelo americano”, disse o ex-conselheiro daquele órgão federal que tem entre suas atribuições a defesa da concorrência.

O ministro do STJ salientou que a importação dessa ferramenta não foi imune a críticas, pois a tradição brasileira é de um direito inquisitivo no qual o Estado tem obrigação de instaurar a ação penal, diferentemente do que ocorre nos EUA (mais detalhes abaixo). “Estamos acostumados a uma relação vertical do Estado com o cidadão (e as empresas), avessa à cooperação, ao passo que esses instrumentos negociais propõem uma relação mais horizontal, aberta à cooperação e a concessões mútuas”, explicou.

Cueva elencou alguns desafios para a consolidação dos acordos de leniência no país:

  • Competência para negociar
    “A Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013) optou por um sistema de concorrência entre as autoridades com competência para punir. Alguns especialistas veem isso como algo positivo na luta contra a corrupção sistêmica que toma conta do país. Outros veem essa sobreposição como um concurso de carrascos.”
  • Parâmetros mais claros para negociar e homologar acordos
    “Com esse objetivo, o MPF baixou em 2017 a Orientação nº 07, que visa colocar um pouco de ordem nas negociações sempre complexas dos acordos de leniência.”
  • Critérios para os benefícios a serem oferecidos
    “É preciso haver parâmetros mais claros para definir a pena e a contribuição pecuniária para que exista uma certa igualdade em situações similares.”
  • Condições e prazo para a manutenção do sigilo
    “É fato que os vazamentos são perniciosos, pois colocam em risco o princípio da confidencialidade, essencial para que futuros colaboradores tenham interesse em cooperar. Mas também não se pode manter sigilo de fatos e documentos indefinidamente, sob pena de não se atender a outro interesse público relevante, que é a persecução cível por danos causados.”
  • Definição das hipóteses de rescisão de acordos já homologados.

Arquitetura institucional

Bruno Dantas Nascimento (TCU) ressaltou que a multiplicidade de autoridades legitimadas para agir no combate à corrupção foi estabelecida pela Constituição de 1988, que acaba de completar 30 anos. “Na arquitetura institucional brasileira, três das quatro instituições centrais no combate à corrupção — o Ministério Público, o Tribunal de Contas e a Advocacia Geral da União — têm diferentes missões constitucionais, que não podem ser mudadas por lei ordinária. Já a Lei Anticorrupção atribuiu à Controladoria Geral a negociação e celebração dos acordos de leniência. Isso significa que MP, TCU e AGU estão automaticamente afastados? Não, porque uma lei ordinária não pode derrogar uma competência constitucional”, disse o ministro.

Dantas também destacou que um mesmo ato de corrupção pode ser observado nas perspectivas penal, fiscal, concorrencial, cível e administrativa, a depender da autoridade envolvida e do escopo que ela persegue. “Quando falamos de TCU, é preciso relembrar a função de buscar reparação integral dos recursos desviados dos cofres públicos. Para tanto, o tribunal dispõe de mais de 2.000 auditores concursados com autonomia, que não se sujeitam nem mesmo a nós, ministros. A governança do TCU é de tal forma compartimentada e robusta que não há hipótese de que a vontade de apenas um indivíduo prevaleça”, explicou.

O ministro disse também que, na Lava Jato, o TCU apenas analisa a legalidade e a economicidade dos acordos de leniência. “Não negocia, não celebra nem homologa. O que se discute é se a análise do TCU deve ser prévia ou a posteriori. Ambas as alternativas têm vantagens e desvantagens. Se a análise for prévia, e o acordo for fechado, terá maior segurança jurídica. Por outro lado, quanto mais atores à mesa mais difícil a negociação. Em nome do tribunal, afirmo que não há intenção de criar entraves, e sim dar segurança (aos acordos de leniência)”, disse.

Como exemplo, ele citou o maior acordo de leniência já fechado no Brasil, com o Grupo Odebrecht, que prevê multas no valor de R$ 7 bilhões. “O TCU, no entanto, calcula prejuízos de mais de R$ 20 bilhões aos cofres públicos. Portanto, está faltando uma quantia razoável. Por outro lado, há condições de quitar o dano integralmente? Daqui a pouco teremos de fazer um Refis para os acordos de leniência”, brincou. Dantas propôs que o ressarcimento integral, por vezes irrealista, seja parcialmente substituído por penalidades como a alienação compulsória do controle da empresa. “Nos EUA, os responsáveis por fraudes são forçados a abdicar do controle”, disse.

Sinergia

Vladimir Aras (MPF) defendeu que as diferentes missões institucionais, por vezes sobrepostas, dos diversos órgãos de combate à corrupção, sejam resolvidas pelo Poder Legislativo. “É fato que vivemos um cenário complexo de múltiplas competências e as instituições precisam se coordenar. A cooperação entre o Ministério Público, a Polícia Federal, a Controladoria Geral da União, a Receita Federal e o CADE na Lava Jato é um bom exemplo. O Congresso Nacional também deve dar sua contribuição por meio de legislação mais clara”, afirmou.

O procurador também propôs que o MPF busque mais sinergia entre as dimensões cível e penal de um mesmo processo. “A leniência é um instrumento de justiça negociada que tem uma vertente criminal e outra não criminal. O MP atua com igual interesse nas duas perspectivas. As provas penais alavancam as cíveis e vice-versa”, disse.

Aras, que foi secretário de Cooperação Jurídica Internacional da Procuradoria Geral da República de 2013 a 2017, tendo sido responsável pela coordenação das atividades de persecução criminal transnacional do MPF em vários casos de relevo, inclusive na Lava Jato, também sugeriu que o Brasil busque aperfeiçoar os mecanismos de justiça negociada em sintonia com as Convenções de Mérida (Contra a Corrupção) e de Palermo (Contra o Crime Organizado Transnacional), ambas no âmbito das Nações Unidas, e os países mais acostumados a utilizar esses instrumentos.

Flexibilidade

No segundo painel, o advogado norte-americano William ‘Bill’ Burck, sócio-administrador do escritório Quinn Emanuel Urquhart & Sullivan, LLP, em Washington D.C., explicou de forma sucinta como funcionam os acordos de leniência em seu país. “Há grande flexibilidade, não há muitos requisitos legais que restrinjam o que pode e o que não pode ser feito”, disse.

Ao negociar um acordo com o Departamento de Justiça (DOJ), equivalente ao Ministério Público Federal no Brasil, a prioridade das empresas é evitar um reconhecimento de culpa (“guilty plea”). “Quando uma empresa admite uma conduta criminosa, as consequências jurídicas e financeiras são muito sérias. Em alguns casos, acaba levando a uma derrocada da companhia no mercado em que atua”, disse. Foi o que aconteceu com a Arthur Andersen, que era uma das cinco maiores firmas de contabilidade dos EUA antes de  ser condenada por obstrução de justiça no caso Enron (início dos anos 2000). Anos depois, a condenação foi revertida na Suprema Corte, mas a companhia nunca mais foi a mesma.

O melhor cenário é quando o DOJ declina de iniciar um processo de imediato e determina que a companhia pode evitar ser processada sob a condição de colaborar com a Justiça, rever suas práticas e se comportar bem durante um período de tempo estabelecido no acordo. É o que se chama de “deferred prosecution agreement”.

“Em todos os casos, existe a possibilidade de uma penalidade financeira”, explicou Bill. Os acordos de leniência em geral ocorrem quando alguma ilegalidade chega ao conhecimento do Departamento de Justiça ou a própria empresa comunica alguma má conduta ao governo federal. “Em geral, o DOJ concede à empresa a oportunidade de investigar a si própria”, disse.

A investigação, conduzida por advogados especialmente contratados e sem vínculo anterior com a companhia, pode levar meses ou anos. Durante o processo, a empresa entrega documentos (como e-mails), apresenta relatórios parciais e, ao final, um relatório conclusivo. “Quando a investigação termina, os advogados e os agentes federais negociam um acordo. O mais importante é compreender qual a motivação principal dos agentes, que podem estar interessados em obter informações sobre outros envolvidos, fixar uma multa alta ou garantir uma cobertura de mídia favorável. Como advogado nos EUA, é importante compreender bem o que o Estado realmente deseja em cada processo e, com base nesse entendimento, propor a solução mais adequada a seu cliente. Vale até ser criativo”, brincou Bill Burck.

Economia de recursos

Em seguida, seu colega Alan Berkeley, considerado um dos melhores advogados dos Estados Unidos em direito societário, relatou sua longa experiência na Securities and Exchange Commission (SEC, equivalente à Comissão de Valores Mobiliários, CVM, no Brasil). “A SEC levou a possibilidade de ‘self reporting’ a um patamar muito elevado. E mais de 90% dos casos de má conduta no mercado de ações, títulos e outros instrumentos financeiros são resolvidos com acordo”, disse.

O maior incentivo à cooperação, por parte das empresas, é evitar uma investigação longa e desgastante, que pode levar à expulsão da companhia do mercado, e obter uma multa menor. “Do ponto de vista do governo, evitar comprometer recursos financeiros e humanos limitados e, ao mesmo tempo, melhorar suas estatísticas de solução de problemas”, concluiu.

‘Questão de poder’

O advogado brasileiro Caio Farah Rodriguez, sócio do Escritório Barros Pimentel Advogados, que recentemente atuou na negociação do acordo de leniência global da Odebrecht, iniciou sua fala com uma declaração polêmica. “Falando em português claro, as principais questões que afetam os acordos de leniência no Brasil são falsos problemas, é mais uma questão de poder”, disse.

Para Caio Farah, a multiplicidade institucional — “nome bonito para esta zona que está aí” — tem sido benigna para as investigações de corrupção, em especial a Lava Jato. “Houve abusos no meio do caminho por parte desta ou daquela instituição ou autoridade, mas pouco a pouco já vemos um benigno processo de harmonização sem que seja necessário mudar lei ou a Constituição. Um exemplo disso é o surgimento de uma burocracia racional e independente na AGU e no TCU, com a criação de escudos de proteção contra influências políticas”, afirmou.

Segundo o advogado, os acordos de leniência negociados na esteira da Lava Jato “tiveram o mérito de impor um choque de capitalismo a capitalistas”. Após a revelação de práticas de cartel por algumas das maiores construtoras do país, em conluio com políticos de todos os partidos, “algumas dessas empresas firmaram acordos de leniência em termos que as colocam em situação desfavorável em seu mercado”, explicou.

“Antes, as políticas de compliance dessas empresas oligopolizadas eram pra inglês ver. Com os acordos de leniência, estão se transformando em vetores de transformação para elas conseguirem sobreviver. Se não podemos celebrar isso, não sei o que vale a pena celebrar”, concluiu.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em política e assuntos internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do site estadao.com.br e editor-chefe do Huffington Post no Brasil.