A Extrema Direita nos EUA e no Brasil: diferenças e similaridades
Neste webinar, conversamos com a socióloga americana Cynthia Miller-Idriss e com o cientista político Guilherme Casarões.
Os Estados Unidos estão algumas décadas à frente do Brasil no que diz respeito ao fortalecimento de uma extrema direita com tendências supremacistas, antidemocráticas e autoritárias, em que grupos e indivíduos se utilizam amplamente de discursos de ódios, ameaças e até mesmo de atos violentos para amedrontar agentes da lei e autoridades, representantes de outros grupos raciais e/ou religiosos, comunidades e minorias, com graves riscos à população civil como um todo.
No Brasil, surgiu na última década uma extrema direita organizada, sob a inspiração do fenômeno norte-americano (e de outros países) e a liderança de Jair Bolsonaro, que teve sucesso em transformar o debate político – desde a redemocratização caracterizado pela busca de um razoável consenso – em uma guerra cultural e política sem precedentes, em que adversários são transformados em inimigos e as instituições basilares da democracia são colocadas em xeque.
“Hoje a violência praticada por movimentos extremistas ou indivíduos fanatizados é a principal ameaça doméstica existente nos Estados Unidos, sendo que o movimento supremacista branco, com predomínio masculino, representa cada vez mais um perigo real para outros grupos sociais e comunidades”, disse a socióloga Cynthia Miller-Idriss, que dirige o Laboratório de Pesquisa e Inovação de Polarização e Extremismo (PERIL), da American University (Washington D.C), neste webinar realizado pela Fundação FHC, que também contou com a participação do cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV-EAESP e um dos coordenadores do Observatório da Extrema Direita.
“Mas não são só negros, mulheres, judeus, muçulmanos, latinos, asiáticos e membros da comunidade LGBTQIA+, entre outros, que estão ameaçados com essa escalada do ódio. A violência está saindo de controle e atingindo a todos”, continuou a professora, que já testemunhou no Congresso americano em diversas oportunidades e colabora com agências de política, segurança, educação e inteligência nos EUA, Nações Unidas e em outros países. Seu livro mais recente é “Hate in the Homeland: The New Global Far Right” (Princeton University Press, 2020).
Segundo a professora – que se absteve de fazer afirmações ou comentários sobre a situação no Brasil –, dados recentes coletados por diversos órgãos governamentais e instituições mostram um aumento de 1900% na confecção de planos para causar vítimas em massa entre os anos 1990 e a atual década. “Temos visto recordes de tiroteios em massa, nem sempre por motivações políticas, mas relacionados ao ódio e à intolerância. Ataques com armas de fogo são atualmente a causa número um da morte de crianças e adolescentes nos Estados Unidos”, disse.
Essas tendências e ideias, que já existiam anteriormente na sociedade norte-americana mas eram marginais, estão se tornando progressivamente dominantes em alguns estados e condados mais conservadores ou reacionários e ganhando espaço nacionalmente, contaminando o Partido Republicano, que foi antiescravagista no século 19 e no século 20 foi um dos pilares da democracia americana. Atualmente, o partido se tornou praticamente refém de um líder irresponsável, personalista, racista e xenófobo como o ex-presidente Donald Trump.
“Nos legislativos e governos estaduais e locais, temos visto grande número de ações legislativas e projetos contra as comunidades trans e gay, privando-as por exemplo da assistência médica e psicológica de que tanto necessitam. Há também banimento de livros em escolas e bibliotecas e ataques a currículos escolares em tudo que tem a ver com raça, gênero ou a acontecimentos históricos controversos”, explicou.
Miller-Idriss alertou que a situação vai piorar nos próximos 18 meses, até as próximas eleições gerais nos Estados Unidos, em 5 de novembro de 2024: “Estamos entrando em um período muito volátil e perigoso, em que a polarização será levada às últimas consequências e os discursos de ódio e os ataques misóginos, racistas e xenófobos serão amplamente utilizados por candidatos inescrupulosos e oportunistas.”
Participação de militares na política é a principal diferença entre a extrema direita brasileira e a norte-americana
O professor Guilherme Casarões, doutor e mestre em Ciência Política pela USP, começou sua fala explicitando a principal diferença entre os fenômenos da extrema direita nos EUA e no Brasil: “Em vários momentos da história republicana, os militares tiveram papel central na política brasileira. E, apesar de termos superado a fase de ditadura militar (1964-1985), muitos brasileiros ainda admiram as Forças Armadas e, por mais distorcido e contraditório que pareça, atribuem a elas o papel de garantidora da democracia. Por fim, muitos militares da reserva ou mesmo da ativa se uniram ao movimento de extrema direita e integraram o governo Bolsonaro desde o início, dando seu apoio ou sendo complacentes com os recorrentes ataques à democracia, inclusive os atos golpistas de 8 de janeiro, em Brasília”, explicou.
“A principal diferença entre os processos em curso no Brasil e nos Estados Unidos é que aqui parte significativa dos militares apoiou o golpismo de Bolsonaro, o que não aconteceu nos Estado Unidos, quando Trump decidiu questionar a vitória de Biden”, continuou.
Segundo Casarões, o ex-presidente Jair Bolsonaro só conquistou o poder em 2018, de maneira tão surpreendente e excepcional, porque há mais de uma década vinha preparando o terreno, sob a inspiração de Donald Trump e outros políticos de direita norte-americanos e de outros países. “Bolsonaro teve êxito em ‘americanizar’ a política brasileira, ao transformar o debate político em uma guerra cultural inspirada naquela que vem sendo travada nos EUA nas últimas quatro décadas, mais precisamente desde o governo Ronald Reagan (1981-1989). No Brasil, o conceito de marxismo cultural, uma das bandeiras bolsonaristas contra a esquerda, praticamente não existia até dez anos atrás”, disse.
Ele também lembrou que, por ter um grande número de partidos, o sistema político brasileiro exigia uma prática democrática de busca de um consenso mínimo e a formação de coalizões, frequentemente com a participação de forças políticas opostas. “Em 2018, Bolsonaro foi eleito prometendo governar apenas com o apoio da maioria (de eleitores) que o elegeu, sendo que o Congresso Nacional era apenas um detalhe e o Supremo Tribunal Federal algo que nem deveria existir”, disse.
Para Casarões, outra diferença é que o bolsonarismo não se caracteriza tanto como um movimento supremacista branco, embora também estimule preconceitos de raça, mas sim como uma espécie de “nacionalismo autoritário cristão”.
“A principal diferença entre os processos em curso no Brasil e nos Estados Unidos é que aqui parte significativa dos militares apoiou o golpismo de Bolsonaro, o que não aconteceu nos Estado Unidos”, disse Casarões.
“Bolsonaro foi um presidente ‘pan cristão’, pois conseguiu apoio majoritário dos evangélicos (que hoje representam de 30% a 35% da população), mas também teve apoio significativo entre católicos mais conservadores. “Ele sempre defendeu a ideia de que o Brasil é um país que pertence, em primeiro lugar, aos cristãos e definiu como seus inimigos o comunismo, o marxismo cultural e tudo o que pudesse ameaçar os valores cristãos, como as demandas da comunidade LGBTQIA +, entre outras”, disse.
Resposta ao extremismo deve incluir educação, saúde, arte e ações comunitárias
Apesar de sua preocupação com a polarização que deve pautar o processo eleitoral nos Estados Unidos, Cynthia Miller-Idriss fez questão de expressar um tom mais otimista em relação ao processo sociopolítico iniciado nos últimos dois anos pelo governo Biden.
“Não quero concluir minha participação aqui sem um toque de otimismo. Há cerca de dois anos, o presidente Joe Biden lançou a Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo Doméstico. Pela primeira vez, o governo norte-americano admite a importância de medidas de saúde pública e educativas, de fortalecimento das comunidades e da democracia, da cultura e das artes, deixando claro que esse não é um problema que possa ser resolvido apenas com medidas de segurança e repressão ou mesmo monitoramento e vigilância”, disse.
Em setembro de 2022, a Casa Branca promoveu a reunião United We Stand, para discutir medidas de enfrentamento aos crimes de ódio nos três níveis de governo, local, regional e nacional. “Participaram agentes da lei, artistas, educadores, psicólogos, líderes comunitários, com o enfoque da prevenção e da educação. Ninguém quer viver em um mundo onde nossa melhor medida de prevenção é trancar as portas de casa, ou de tentar monitorar e controlar tudo inutilmente. Chegou a hora de construir uma nova abordagem. Estamos vinte anos atrasados, mas não tenho dúvida de que esse é o caminho”, afirmou a diretora do laboratório PERIL, que tem recebido uma impressionante quantidade de pedidos de ajuda por parte de comunidades de todos os Estados Unidos.
“Faço parte de um grupo ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania do governo Lula, que tem como objetivo encontrar soluções para essas graves questões que afligem o Brasil. Queremos saber o que as instituições públicas e privadas norte-americanas têm feito para se contrapor e reagir à ameaça da ascensão da extrema direita. Afinal, vocês têm mais experiência do que nós”, disse Guilherme Casarões.
“Ainda confio nas nossas instituições. A democracia não vai acabar agora, temos tempo, mas precisamos resistir e reagir à altura dos desafios, com comprometimento cívico e a participação de todos”, concluiu Miller-Idriss.
Assista ao vídeo do webinar na íntegra.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.