Debates
30 de março de 2021

A crise de emprego entre os jovens e as transformações da economia e educação

Segundo dados da FGV Social, jovens que nem estudam nem trabalham correspondem hoje a 35% da população entre 20 e 24 anos.

A pandemia de Covid-19 no Brasil — com impactos profundos não somente na saúde, mas também na educação e na economia — reduz ainda mais as oportunidades de estudo e trabalho para os jovens, agravando o fenômeno dos “nem-nem”: adolescentes e jovens adultos que não estudam, estão fora do mercado de trabalho e não se capacitam. Para atenuar os efeitos dessa crise de múltiplas dimensões e evitar que a atual geração de jovens tenha cicatrizes permanentes, são necessárias políticas públicas eficazes e que considerem a heterogeneidade desse grupo.

“Após a pandemia, será preciso reconstruir o Brasil em todos os sentidos, de forma a impedir que haja uma reversão permanente dos ganhos sociais obtidos durante cerca de duas décadas. Será fundamental pensar com todo cuidado como ajudar a recuperar o tempo que foi perdido”, afirmou o economista Naercio Menezes, professor titular da Cátedra Ruth Cardoso no Insper, em webinar realizado pela Fundação FHC.

Para discutir o problema da crise de estudo e emprego entre os jovens no país, a Fundação FHC também convidou a economista Enid Rocha Andrade da Silva, pesquisadora sênior do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e a educadora social Bel Santos Mayer, coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (IBEAC).

Em 2015, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou um plano de ações para a promoção do desenvolvimento econômico, social e ambiental em escala global, com metas definidas até 2030. A Agenda 2030 definiu a questão dos jovens “nem-nem” como uma prioridade a nível mundial.

“Não é correto dizer que um jovem é nem-nem, mas sim que ele está nem-nem”, disse Enid Rocha. Segundo a pesquisadora, que avalia políticas públicas voltadas para crianças, adolescentes e jovens adultos, também não é adequado associar os nem-nem a características como preguiça, ociosidade ou improdutividade. “Os dados mostram que muitos desses jovens estão extremamente ocupados com atividades não-remuneradas dentro de seus domicílios, que propiciam às outras pessoas da casa sair para trabalhar. Outros têm importantes dificuldades de acesso”, explicou.

Além disso, a transição escola-trabalho está longe de ser linear. É feita de diversos momentos que se alternam. Não é incomum o jovem ora só trabalhar, ora só estudar e, em outros períodos, não fazer nem uma coisa nem a outra. O problema é quando o tempo sem estudo e sem trabalho se prolonga, o que pode condená-lo a exercer ocupações informais mal remuneradas pelo resto da vida.

Dados mostram a diversidade dos jovens nem-nem no Brasil

No Brasil, a faixa etária de jovens, definida pelo Estatuto da Juventude, é de 15 a 29 anos. Em 2019, eram 47 milhões de pessoas. No entanto, é crucial compreender que essa população é muito diversa, e que essas diferenças devem ser levadas em consideração no planejamento das políticas públicas.

Enid trouxe dados de 2019: “45% dos jovens que estavam nem-nem eram pobres, 57% tinham entre 18 a 24 anos, 65% eram mulheres, 70% eram negros, 73% viviam no Sudeste e Nordeste do país, 50% ocupavam a posição de filhos e enteados dentro do domícilio e 28% ocupavam a posição de responsável ou cônjuge”. A economista acrescentou que, no Ipea, os estudos sobre nem-nem são feitos com base na seguinte tipologia: desempregados de curto prazo e de longo prazo (que procuram emprego e ainda não estão alijados do mercado de trabalho); aqueles que estão nem-nem por questões de saúde; os que estão nem-nem por cuidar de responsabilidades domiciliares ou por desencorajamento e, por fim, os nem-nem voluntários.

Com a pandemia, está aumentando a proporção de jovens que estão desempregados por longo tempo ou que desistiram de buscar emprego.

Desigualdade desde o nascimento

Para Naercio Menezes a situação dos nem-nem é construída desde o nascimento. Ou melhor, desde a gestação, com a qualidade dos cuidados pré-natais. O economista destacou a importância dos seis primeiros anos de vida, quando se formam as habilidades cognitivas e socioemocionais. “Se o jovem não teve uma infância adequada, com interações saudáveis com os pais e na escola, ele terá dificuldades de aprendizado e socioemocionais, o que pode resultar em dificuldades de permanência em empregos e aumentar a probabilidade dele se tornar um nem-nem. E isso pode ser agravado se, por exemplo, ao sair da escola ele encontrar uma economia em recessão, como agora”, disse o economista. Para agravar ainda mais a situação, a pandemia, além de provocar recessão econômica, prejudica o processo de aprendizado, em especial dos mais pobres, que têm menor acesso ao ensino on-line.

Para mostrar o impacto das condições sociais iniciais na trajetória dos jovens, Menezes mostrou dados de uma pesquisa na cidade de Pelotas (RS), que acompanha a evolução das crianças e adolescentes desde 1993. Por exemplo, 80% dos filhos de mães analfabetas, ao chegar aos 15 anos, repetiram de ano letivo pelo menos uma vez, percentual que não passa de 18% entre os filhos de mães com ensino superior. Aos 18 anos, quase 50% dos filhos de mães com ensino superior já estavam na faculdade, ao passo que apenas 2% dos que nasceram de mães analfabetas se encontravam na mesma situação. (Veja a apresentação completa na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página.)

Segundo o economista, que desenvolve pesquisas nas áreas de educação, mercado de trabalho, distribuição de renda, produtividade, a maioria dos jovens nasce em famílias com dificuldades, sem condições básicas de moradia, de transferência de renda ou de saneamento básico. “Essas carências vão se acumulando, criam barreiras de aprendizado e problemas de saúde, frequentemente reproduzindo as desigualdades já vividas pelos pais dessas crianças. Para interromper esse ciclo, não há alternativa que não seja melhorar a educação, a saúde pública, os programas de transferência de renda e o saneamento básico”, concluiu.

Biblioteca comunitária de Parelheiros: exemplo de mudança

Bel Santos Mayer trouxe ao webinar um exemplo de uma resposta possível ao problema, por parte da sociedade civil. Como coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac), Bel atua diretamente em Parelheiros, distrito localizado na Zona Sul, que, em 2008, foi considerado como o pior lugar para se viver na cidade de São Paulo, em levantamento do Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM). Pinheiros, bairro próximo à sede do Ibeac, aparecia como o melhor lugar para se viver. “O melhor lugar tem uma dívida com o pior lugar”, disse Bel, explicando que, naquele ano, o Ibeac passou a atuar também em Parelheiros.

A educadora social contou sobre sua experiência de 13 anos na região — que resultou em sua dissertação de mestrado. Dado que a biblioteca da escola estadual em que estudavam estava fechada havia um ano, jovens adolescentes de Parelheiros criaram, com o apoio do Ibeac, uma biblioteca aberta para a comunidade. O anseio não veio, inicialmente, do desejo pela leitura. Moradores de domicílios pequenos e com muitos moradores, os jovens buscavam um espaço de silêncio em meio ao ruidoso dia a dia em casa e na escola.

Em 2010, quando questionados sobre seus sonhos, esses jovens de Parelheiros buscavam um futuro com emprego, casa, casamento e filhos. Em 2020, dez anos depois, os mesmos sonham com universidade e até mesmo mestrado, transformações na escola e o crescimento da comunidade como leitora. “O sonho muda quando mudamos as oportunidades. Os jovens que frequentam as bibliotecas abrem caminhos e começam a querer mudar esse ciclo de morte”, afirmou Bel.

Influenciados pelos dados que indicam que quanto mais a mãe estuda, mais chances a criança tem de viver, o Instituto também organizou um grupo de mães mobilizadoras, que atuaram em sete bairros de Parelheiros, acompanhando futuras mães desde a gestação. “Entendemos que só reduzimos as desigualdades tratando de forma desigual pessoas com oportunidades diferentes. Quem sempre recebeu menos precisa receber mais”, disse. Bel contou que o Ibeac foi influenciado por um grupo de médicos italianos — “Nati per leggere” (nascido para ler) — que estudou a relação entre a literatura e o desenvolvimento da criança. “Esse grupo produziu vídeos que mostram o cérebro de uma criança em descanso, e o que acontece cada vez que ela ouve a voz da mãe, depois a voz da mãe lendo ou cantando. Sempre que essa criança escuta uma palavra diferente do seu repertório habitual, as conexões e as sinapses neuronais lembram um baile de carnaval. Aí pensamos: queremos fazer isso”, contou. O livro, disse a educadora, não pode ser um luxo ou um privilégio, deve estar disponível para todas as pessoas.

Que políticas públicas podem mudar o ciclo de vida dos nem-nem? 

No caso dos nem-nem, é imprescindível adotar estratégias que considerem e deem respostas adequadas à heterogeneidade desse grupo: “Os jovens que têm baixa escolaridade, uma característica clássica dos nem-nem, precisam de programas que deem a oportunidade de maior acesso à educação”, disse Enid Rocha. No caso das jovens mulheres que estão na situação de nem-nem em decorrência de responsabilidades familiares, a economista mencionou a importância de aumentar a oferta de serviços de apoio, como as creches.

Naercio Menezes elogiou programas já existentes como a Estratégia Saúde da Família (ESF), os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e os Centros de Referência da Assistência Social (Cras), integrados ao SUS (Sistema Único de Saúde). “Já existe uma estrutura. O desafio é como usar essa estrutura para chegar na ponta com mais efetividade”, disse. Para o economista, a União e os Estados são fundamentais no repasse dos recursos, mas a capacidade de agir levando em conta as heterogeneidades locais está nos municípios.

“Há trinta anos havia muita pobreza e mortalidade infantil, migração em massa para o Sudeste, desemprego e carência de hospitais. Houve significativo avanço nas últimas décadas, mas ainda insuficiente para resolver de modo satisfatório a situação das crianças e dos jovens mais vulneráveis.”

“Não é só transferir dinheiro, os municípios, principalmente os pequenos e em áreas mais remotas, precisam de ajuda e devem formar consórcios intermunicipais, para que possam replicar iniciativas como essa que a Bel mostrou em Parelheiros”.

Bel Santos Mayer reiterou a importância do SUS, devido à sua capilaridade, e a necessidade de colocar em prática ações transformadoras nos territórios, onde o Estado é mais tradicionalmente mais ausente.

Para Saber Mais:

Leia o estudo Millennials na América Latina e no Caribe: trabalhar ou estudar? (2018), que pesquisou mais de 15.000 jovens entre 15 e 24 anos em nove países.

Conheça o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável número 8 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas.

Isabel Penz, historiadora formada pela USP, é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação FHC.