A arte da política democrática e os desafios da globalização
Em discussão neste webinar: o desafio de trabalhar pela consolidação da democracia na América Latina e as grandes transformações na economia e geopolítica regional e global.
Mesmo diante de ameaças da magnitude da atual pandemia e da urgência de agir para reverter o aquecimento global, os países da América Latina estão imersos em seus próprios problemas (que não são poucos) e têm se mostrado incapazes de atuar de forma minimamente coordenada para ter mais voz em um mundo cada vez mais competitivo, digitalizado e em que a democracia e o multilateralismo estão em xeque.
O alerta foi feito por três ex-presidentes latino-americanos que tiveram papel central na consolidação da democracia em seus respectivos países no final do século 20 e início do século 21: Fernando Henrique Cardoso (que governou o Brasil entre 1995 e 2003), Ricardo Lagos (que governou o Chile entre 2000 e 2006) e Julio Maria Sanguinetti (que governou o Uruguai entre 1985 e 1990 e entre 1995 e 2000). Os três ex-chefes de Estado participaram deste webinar que integra o ciclo “FHC 90 anos – Um Intelectual na Política”, parte dos eventos comemorativos dos 90 anos do ex-presidente FHC, completados em 18 de junho de 2021. O encontro teve a participação de Enrique Iglesias, que presidiu o BID de 1985 a 2005.
“Vocês foram testemunhas e atores da transição para a democracia em seus países nos anos 1980, 90 e 2000. Após as enormes expectativas geradas junto à cidadania naquele processo, nos últimos anos vemos crescer a desilusão em diversos países. Como veem os desafios que a democracia enfrenta na América Latina atualmente?”, perguntou María Elena Agüero, secretária geral do Club de Madrid, que organizou o evento com a Fundação FHC.
“A democracia tem imperfeições, mas, apesar das dificuldades, creio que persiste na região o sentimento majoritário de que a democracia conquistada com muita dificuldade tem sido um período bom da história recente de nossos países. Isso, no entanto, pode mudar, como presenciei no Brasil durante o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) e a última ditadura militar (1964-1985). Quem viveu sob regimes autoritários sabe a importância de viver em liberdade, sem medo. Por isso, é fundamental nos unirmos para manter viva a chama da democracia”, disse FHC.
“Os últimos anos têm sido problemáticos para a democracia na Europa, nos Estados Unidos e também na América Latina. Fenômenos como a globalização e a digitalização geram oportunidades mas também insegurança e desigualdade, como no trabalho, onde não há mais empregos para toda a vida. Também temos visto as redes sociais substituírem os canais tradicionais de representação política e impulsionarem a polarização e o populismo. Irrompe a pandemia e acelera estas e outras tendências. O Estado volta a ter um papel inesperado e poderoso. Quando o cidadão se sente fragilizado e com medo, cresce a tentação de os governantes usarem o poder não apenas para combater a crise sanitária, mas para interferir e controlar outras áreas, colocando em dúvida a própria democracia”, disse o uruguaio Julio Maria Sanguinetti.
Ao cumprimentar o aniversariante, Ricardo Lagos lembrou que conheceu FHC nos anos 1960, quando o então jovem sociólogo se exilou no Chile após o golpe de 1964. “Fernando Henrique fazia parte de um grupo de jovens intelectuais que foi morar no Chile e contribuiu muito para o debate sobre os rumos socioeconômicos de nossos países e da América Latina naquele período. Ele se encontrou com Enzo Faletto (sociólogo chileno, 1935-2003) e juntos escreveram Dependência e Desenvolvimento na América Latina. O impacto da obra foi tão grande que Cardoso e Faletto se tornaram, para muitos de nós, um só autor, como Ortega y Gasset”, brincou.
“Democracia significa aprender a escutar o que as pessoas estão dizendo e se adiantar às demandas sociais”, disse o ex-presidente chileno Ricardo Lagos.
“Nos últimos meses, temos visto a economia de alguns países se recuperar com relativa força, mas não vamos recuperar tão rapidamente os milhares de empregos perdidos desde o início da pandemia. Provavelmente teremos de prorrogar os auxílios temporários concedidos aos mais fragilizados. Democracia significa aprender a escutar o que as pessoas estão dizendo e se adiantar às demandas sociais. Com as redes sociais, esse processo está cada vez mais descentralizado e horizontal. Que instituições políticas vão surgir como resultado da revolução digital e que sejam capazes de ouvir e responder aos cidadãos nesse novo contexto?”, perguntou o ex-presidente chileno.
“Temos hoje aqui presentes três grandes personagens da política latino-americana, que com sua experiência podem nos ajudar a entender não tanto o que fazer, mas como fazer. Como administrar a imensa complexidade dos problemas do mundo e da nossa região? Tudo depende de condução política. O que mais me preocupa na América Latina é como agir em um cenário em que os partidos políticos se suicidaram”, disse o ex-chanceler uruguaio Enrique Iglesias.
Lagos salientou que a Convenção Constitucional do Chile (eleita em maio, iniciou neste mês de julho seus trabalhos) é uma “experiência a ser compartilhada” com os demais países latino-americanos: “Na eleição dos constituintes, houve muitas novidades, entre elas a regra da paridade de gênero (78 homens e 77 mulheres) e a destinação de 17 cadeiras para os povos originários. Mas o que mais chamou a atenção foi a articulação de cidadãos feita sobretudo pelo WhatsApp e que resultou na eleição de um grande número de membros independentes (mais de 30% do total). Portanto, estamos vendo no Chile a emergência de uma forma distinta de expressão e organização da cidadania, que vai além dos partidos políticos tradicionais. Será muito interessante acompanhar o que vai acontecer na convenção, como ela moldará a política chilena no futuro e se terá impacto na região.”
“Com a convocação de uma assembleia para redigir uma nova Constituição, o Chile busca dar uma resposta inteligente aos grandes protestos do final de 2018, que revelaram existir um mal-estar social, apesar do impressionante desenvolvimento econômico do país nas últimas décadas. Temos visto manifestações em outros países, como na Colômbia. O Peru acaba de sair de uma eleição profundamente dividida, em que o eleito não terá apoio no Parlamento. No Brasil, houve nos últimos anos uma judicialização da política, com consequências preocupantes, e o cenário para a eleição presidencial do próximo ano muda muito rapidamente. A Argentina está imersa em profunda crise econômica. Para avançar social e economicamente, a América Latina tem diante de si uma agenda extremamente complexa. Trata-se de um desafio quase refundacional para nossas democracias”, afirmou Sanguinetti.
O uruguaio destacou a importância de uma maior cooperação entre as nações da região diante de um mundo em rápida transformação: “Quando éramos presidentes de nossos países, sonhávamos com uma integração maior e mais profunda. O Mercosul avançou, mas de uns tempos para cá anda meio paralisado. O mundo vive uma nova bipolaridade, com a disputa entre EUA e China, e a pandemia revelou a fragilidade do multilateralismo. Cada país se preocupa com si próprio, inclusive em relação à compra e/ou produção de vacinas. É uma situação complexa que exige estratégia e diplomacia. A América Latina deve se posicionar como região.”
Lagos lembrou que o mundo será cada vez mais influenciado pela Ásia, “acostumada a medir a história em milênios”, e defendeu mais coordenação entre os países da região para enfrentar desafios regionais, como a desigualdade social, o desemprego e a informalidade, e globais, como a ameaça climática e as epidemias. O chileno propôs um grande acordo internacional para evitar futuras pandemias: “Assim como a ONU criou a Conferência das Partes (COP) nos anos 90 para conduzir as negociações relacionadas ao clima do planeta, precisamos de um fórum permanente para evitarmos nova pandemias e estarmos preparados para enfrentá-las de maneira mais solidária.”
“Vivemos uma época nova impulsionada por profundas mudanças tecnológicas e um grande ruído de informação e comunicação. Como organizar e dar sentido a tudo isso? Os meios de comunicação têm um papel fundamental, assim como as instituições democráticas, inclusive os partidos, que não vão desaparecer. Aos líderes políticos cabe o papel de personalizar as novas ideias e definir os caminhos. A democracia depende tanto de organizações como de atores”, disse FHC.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.