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Acervo FHC e Ruth » FHC: Ação Política

O permanente conflito envolvendo a questão agrária

Protestos dos sem-terra se acirraram nos anos 90 e refletiram questões irresolvidas de três décadas antes


No dia 17 de abril de 1996, uma ação da Polícia Militar do Estado do Pará terminou em tragédia. O conflito já se desenhava uma semana antes, quando cerca de 2,5 mil sem-terra e manifestantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra), totalizando mais de 4.000 pessoas, começaram uma marcha de quase 900 quilômetros até a capital, Belém, em protesto contra a demora da desapropriação de terras, em especial dos 40 mil hectares da Fazenda Macaxeira, onde a maioria estava acampada. A Polícia Militar do Pará foi encarregada de tirá-los do local com a justificativa de que eles obstruíam a BR-155. O governador era Almir Gabriel, do PSDB, e a ordem para a ação policial partiu do secretário de Segurança, Paulo Sette Câmara, que declarou, depois do ocorrido, que autorizara “usar a força necessária, inclusive atirar”. O confronto resultou na morte de 19 sem-terra.

As mortes e as imagens da violência desnecessária e desproporcional da PM paraense provocaram uma crise no governo Fernando Henrique Cardoso, também do PSDB. O ministro da Agricultura, Andrade Vieira, na época responsável pela questão agrária, pediu demissão na mesma noite e foi substituído interinamente pelo senador mineiro Arlindo Porto. O caso teve imediata repercussão internacional e colocou a reforma agrária, um tema antigo não resolvido, no primeiro plano do debate político e social. Mais tarde, as imagens do conflito correram o mundo nas fotos de Sebastião Salgado, autor da exposição e do livro Terra, obra que teve os direitos autorais revertidos para o MST.

O governo agiu rápido e de forma enérgica. De imediato, o presidente Fernando Henrique determinou que tropas do Exército fossem deslocadas para a região com o objetivo de conter a escalada de violência. José Gregori, à época chefe de gabinete do Ministério da Justiça, declarou, ao avaliar o vídeo do confronto, que “o réu desse crime é a polícia, que teve um comandante que agiu de forma inadequada, de uma maneira que jamais poderia ter agido”. 

Mas a decisão mais abrangente ocorreu uma semana depois do massacre, quando o governo confirmou a criação de uma nova pasta batizada de Gabinete Extraordinário do Ministro da Política Fundiária. O indicado para o cargo foi Raul Jungmann, hoje diretor-presidente do IBRAM (Instituto Brasileiro de Mineração) e à época presidente do Ibama. “Foi um momento trágico”, lembra Jungmann 27 anos depois. “A crise envolvendo as questões agrárias vinham se agravando e culminaram nesse massacre. Foi o momento que o governo viveu o seu pior período e que mais foi criticado”, completa. “Ontem foi o pior dia desde que cheguei ao governo. Por quê? Porque de manhã cedo vejo no jornal que houve um massacre no Pará”, anotou um desolado Fernando Henrique em seu diário no dia 19 de abril de 1996.


Audiência concedida por Fernando Henrique Cardoso às lideranças do MST -
julho de 1995 - foto: Acervo Fundação FHC 


Um ministério marcado por idas e vindas, avanços e retrocessos 

O pernambucano Raul Jungmann chegava ao governo num momento crucial – dele e do ministério que passava a comandar. Ao tomar posse no cargo, Jungmann assumia uma pasta que há uma década e meia era marcada por idas e vindas, avanços e retrocessos. Criada ainda pelo governo militar, em 1982, o Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários teve o general Danilo Venturini como seu primeiro titular. Em 1985, seguindo um compromisso de Tancredo Neves durante a campanha, a pasta se transformou no Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, tendo entre seus ocupantes, já no governo Sarney, nomes respeitáveis como o prefeito de Cuiabá, Dante de Oliveira (PMDB) – que durou menos de cinco meses no cargo e saiu em meio a uma crise política – e o ex-senador pernambucano, Marcos Freire, que morreu em um acidente aéreo nunca bem esclarecido, no sul do Pará, durante viagem a serviço. 

No governo Collor, a pasta foi extinta, sendo incorporada ao Ministério da Agricultura e assim permanecendo pelos próximos governos – o de Itamar Franco e o dos primeiros anos de Fernando Henrique – até a posse de Jungmann. Num primeiro momento, Jungmann assumia como ministro Extraordinário de Política Fundiária. Em novembro de 1999, foi criado o Ministério do Desenvolvimento Agrário, conduzido por Jungmann até 2002, último ano do governo FHC.

Naqueles tempos, ainda que o MST demonstrasse força, a reação também mostrava poder. O agronegócio estava bem estruturado em várias partes do Brasil há pelo menos uma década. Criada em julho de 1986, a União Democrática Ruralista (UDR) nascia motivada pela defesa dos direitos à propriedade e no combate à reforma agrária. Durante a Assembleia Constituinte (1987-88), dois grupos se enfrentariam: a Frente Ampla da Agropecuária, que reunia entidades como a Confederação Nacional da Agricultura, a Tradição Família e Propriedade, a Sociedade Rural Brasileira e a Organização das Cooperativas Brasileiras, além da UDR, e que defendia que a reforma agrária deveria começar e focar majoritariamente em terras públicas ociosas. Em oposição se formou a Campanha Nacional da Reforma Agrária, que unia a Associação Brasileira da Reforma Agrária, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, o MST e a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que queria que todas as propriedades que ultrapassassem um limite máximo de tamanho fixado em lei estivessem sujeitas à desapropriação. 

Dentro desse jogo de forças e no ambiente acirrado da Constituinte não houve avanços. Os trabalhos foram encerrados sem a definição dos critérios para diferenciar uma propriedade rural produtiva de uma improdutiva e também não foram acertados os procedimentos para a desapropriação, o chamado rito sumário. Num compromisso entre as partes em conflito, os critérios para realização efetiva da reforma agrária foram deixados para definição posterior, em legislação complementar à Constituição Federal.

> Acesse a Linha do Tempo sobre Reforma Agrária: a disputa por propriedade e uso da terra desde a redemocratização

“O momento é de virada. É preciso promover a reforma, sob pena de regredir”

Assim, as tarefas de Jungmann ao assumir eram imensas e urgentes. Um dos primeiros atos do titular do ministério foi a criação de um conselho formado por trabalhadores rurais, empresários do setor agrário, Igreja e outras entidades da sociedade civil com a função de conduzir uma discussão sobre a reforma agrária. Em sua primeira entrevista como ministro, Jungmann defendia que a intenção do governo era promover um amplo diálogo para reduzir as tensões no campo e evitar novos confrontos. Era preciso apagar qualquer incêndio. Jungmann também anunciou que iria promover reformulações no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), que não funcionava com a velocidade adequada e que se reuniria com dirigentes do MST para montar uma agenda de trabalho. Jungmann determinou: “O momento é de virada. É preciso promover a reforma, sob pena de regredir”.

Apesar dos esforços, o clima tenso permaneceu pelos próximos dias, com sedes do Incra sendo ocupadas e muitas invasões promovidas pelos sem-terra. “Naquele período, o MST atingiu o auge de suas ações”, recorda Jungmann. “O MST agia nem tanto pelas posições em defesa da reforma agrária, mas muito mais como um braço do PT, interessado em atacar Fernando Henrique, que eles chamavam de neoliberal e de privatizador, e de fazer o governo sangrar até ficar próximo das eleições”.

Em junho, dois meses após a tragédia, Fernando Henrique parecia mais tranquilo e sua avaliação era de que as soluções avançavam, incluindo a possibilidade de que terras que estavam com o Banco do Brasil passassem para a reforma agrária. Numa conversa em particular com Jungmann, o presidente frisou. “Ele (Jungmann) não imaginava que fosse tudo tão difícil, as dificuldades do próprio movimento dos sem-terra. Mas ele tem feito um trabalho muito forte de defesa de posições claras”.

Jungmann admite as dificuldades enfrentadas e recorda ainda que os protestos dos sem-terra, nos anos 90, refletiam questões irresolvidas de três décadas antes, como a redistribuição de terras. “Nos anos 1960, o aspecto rural da vida brasileira era muito maior. Ao longo do tempo, o tema foi perdendo a dimensão que tinha. O país se transformou”, diz Jungmann, acrescentando que o governo Fernando Henrique teve um papel decisivo nesses avanços.

 


FHC com lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra -

abril de 1997 - foto: Acervo Fundação FHC


Uma abordagem simpática que romantizava os conflitos

Para complicar ainda mais a situação, Jungmann recorda um acontecimento paralelo que acabou tendo grande influência e repercussão: a Rede Globo colocou no ar O Rei do Gado, de Benedito Ruy Barbosa, com Antônio Fagundes e Patrícia Pillar no elenco. A novela não apenas retomava as discussões sobre a reforma agrária como exaltava a vida dos trabalhadores sem-terra. “Com essa abordagem simpática, tratando os personagens de maneira generosa e romantizando os conflitos, a emissora conseguiu despertar muitas camadas de militantes que estavam adormecidos, inclusive os que viviam nos centros urbanos”, constata Jungmann.

Vitaminado por esse acontecimento, o MST, que inicialmente ameaçava invadir terras que considerava improdutivas, mudou a estratégia e passou a promover invasões de prédios e sedes do Incra em São Paulo, Natal e Vitória e o posto em Chapecó (SC). O movimento fez também protestos em frente ao prédio do órgão em Belo Horizonte e em São Paulo, onde cerca de 500 militantes ocuparam o edifício do Incra por cerca de dez horas. Na saída, o órgão foi “lacrado” e considerado “fechado por incompetência”. Os manifestantes picharam vidros e a fachada do prédio com a frase: “Fechado por incompetência. Fora Jungmann e FHC”.

Ao final do governo FHC, mais de 540.000 famílias foram assentadas.

Jungmann recorda outro fato que deixou os ânimos mais acirrados. Em 17 de fevereiro de 1997 teve início a Marcha Nacional pela Reforma Agrária, Emprego e Justiça. Partindo de três pontos do país, a manifestação estava programada para chegar em Brasília no dia 17 de abril, exatamente um ano depois do Massacre de Carajás. Contando com o apoio do governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque (PT), a marcha, ao chegar em Brasília, foi celebrada com um grande ato público com mais de 100 mil pessoas. O objetivo da mobilização foi chamar a atenção para a urgência da reforma agrária e pedir punição aos responsáveis pelo massacre.

A questão agrária permaneceu sendo uma das mais constantes e intrincadas questões envolvendo o governo. E isso não se restringia ao presidente Fernando Henrique, mas também aos que o antecederam e o sucederam: a reforma agrária foi, até o fim do mandato, centro de discussões e de polêmicas. “No tempo em que fui ministro, não houve trégua por parte do MST. Havia conflito o tempo todo”, diz Jungmann, acrescentando que, apesar do cenário adverso, o governo conseguiu fazer muito. “Combatemos o latifúndio improdutivo, transformamos o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - destinado ao apoio financeiro às atividades agropecuárias exploradas mediante emprego direto da força de trabalho do produtor e de sua família), dialogamos com a Pastoral da Terra, conseguimos diminuir as invasões e fizemos o maior plano de assentamentos. Tudo isso sem violência, com respeito e negociação”.

A invasão de terras da família do presidente

Em 2000, para desestimular a onda de invasões, o governo editou uma MP estabelecendo que quem participasse não seria beneficiado por desapropriações e assentamentos, ou seja, ficaria excluído do programa de reforma agrária. O PT e o MST criticaram a medida, considerando como uma “criminalização dos movimentos sociais”. O fato, porém, é que as invasões diminuíram. O número de casos caiu de 502, em 1999, para 236, em 2000. No ano seguinte, 2001, passou a 158.

Raul Jungmann permaneceu à frente do ministério quase até o final do segundo mandato de Fernando Henrique. Em março de 2002, um mês antes de se desincompatibilizar do cargo para se candidatar pela primeira vez a deputado federal pelo PMDB de Pernambuco, ele enfrentou a sua última – e talvez maior – crise. Na ocasião, 500 militantes do MST invadiram a fazenda Córrego da Ponte, em Goiás. A situação era ainda mais delicada pois as terras pertenciam à família do presidente. De Recife, onde se encontrava, Jungmann despachou subordinados seus para o local. Horas depois, ele mesmo foi para lá. Depois de quase 24h de trabalho, na madrugada de domingo, Jungmann conseguiu um acordo para que o MST saísse, sem prisões. 

O MST e seus protestos foram cooptados pelo governo do PT

Em novembro de 2002, já com Lula, o novo presidente, eleito, o tema ainda mobilizava debates. Menos de dois meses antes da posse, lideranças do MST sinalizavam com uma trégua nos primeiros dias do novo mandato, o que não garantia que soluções imediatas seriam encontradas.

Ao final do governo Fernando Henrique, 540.704 famílias foram assentadas, sendo 287.994 nos primeiros quatro anos de mandato e 252.710 no segundo mandato. O governo seguinte, o de Lula, também num período de oito anos, assentou um total de 614.088 famílias, segundo dados fornecidos pelo Incra, em 2015.

Para Jungmann, embora a questão agrária permaneça sendo um tema da pauta política, hoje ela tem um aspecto mais periférico, distanciando-se do centro das discussões. “Quando Lula e o PT ganharam, em 2002, o MST ficou numa encruzilhada, pois não poderia mais protestar contra o governo, já que havia apoiado e ajudado a elegê-lo”. O ex-ministro ressalta ainda que o governo do PT fez dois movimentos que deixaram o MST ainda mais domesticado. O primeiro foi trazer o grupo para dentro da estrutura governamental, dando a muitos de seus líderes cargos e benesses. O segundo foi a criação do Bolsa Família, que mudou de forma completa o excesso de protestos. “O Bolsa Família surgiu como um aspirador, sugando todo aquele contingente de insatisfeitos e foi um forte responsável pela redução dos grupos de invasão: a pessoa passou a ver que era possível sobreviver e ter horizonte fora do acampamento, com a possibilidade de receber o benefício todo mês”.  A análise de Jungmann foi reconhecida até por Dom Tomás Balduíno, ex-presidente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), que, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, em novembro de 2007, concordou que a situação havia mudado: “O assistencialismo é uma forma de solução mais fácil, e é fato que o Bolsa Família arrefeceu a luta dos sem-terra”.

 

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Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação - Sig e A História do Pasquim" (Matrix, 2022).


 

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