FHC: Ação Política
10 de julho de 2024

A parte negativa de nossa herança cultural

Fernando Henrique sabia dos efeitos nocivos do racismo e fez de seu governo uma trincheira de combate ao preconceito.

A questão racial no Brasil passou a ganhar uma nova dimensão a partir dos meados dos anos 1980. Como política de governo era um tema novo; para o então senador e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, não. Era um assunto com o qual ele tinha intimidade há cerca de três décadas, pelo menos desde meados dos anos 1950, quando integrou um grupo de estudos que participou de um seminário internacional no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, sobre raça e preconceito.

Fernando Henrique fazia parte, ao lado de Octavio Ianni, de uma equipe que se dedicara à pesquisa sobre relações raciais e que era liderada pelos sociólogos Florestan Fernandes e o francês Roger Bastide. A pesquisa apresentada pelo grupo estava incluída em um projeto da Unesco – setor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – que, após o término da Segunda Guerra Mundial, se propôs a elaborar uma agenda antirracista de alcance mundial. No Brasil, a proposta era investigar as origens dessa questão, pois até então, no país, havia a compreensão de que as relações raciais se davam de forma harmônica. 

Anos mais tarde, Fernando Henrique avaliaria sua participação: “Apresentei alguns dados da pesquisa que fizéramos no Rio Grande do Sul, na sequência dos estudos sobre os negros em São Paulo comandados por Bastide e Florestan. Os dados eram eloquentes: não se precisava de muito número ou de retórica para comprovar a fragilidade da noção de que o Brasil era um país sem preconceitos raciais”. Em 1961, Fernando Henrique defendeu e publicou sua tese de doutorado, sob o título Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional – O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul.

Na sequência, Fernando Henrique detalhava ainda mais o que havia estudado: “Nos estados da região Sul, pode predominar a ancestralidade europeia por parte de pai e mãe; já nos estados em que houve exploração canavieira ou mineradora, a participação africana é maior, sobretudo na linhagem materna. Nos amazônicos, o mesmo ocorre com a participação indígena”. E concluía: “A miscigenação é a regra. Logo, melhor afirmá-la como um valor e tratar de combater a discriminação e o preconceito, reconhecendo-os como parte negativa de nossa herança cultural”.

Aniversário (300 anos) da morte de Zumbi dos Palmares; 1995

“Melhor ou pior do que nos países considerados racistas? Apenas diferente” 

Em texto publicado há menos de uma década, em novembro de 2017, com o título “Negros, preconceitos e ideologia”, Fernando Henrique fazia um balanço de seus estudos pregressos e se aprofundava ainda mais, traçando comparações: “Estamos longe do apartheid sul-africano ou de quando havia nos Estados Unidos, legalmente, o lugar para os negros nos ônibus, nas escolas ou onde mais a discriminação fosse posta em prática. A dualidade entre a existência do preconceito e sua negação oficial e mesmo cultural caracteriza o estilo de nossas relações raciais”. 

E mais, respondia Fernando Henrique: “Melhor ou pior do que nos países considerados racistas? Apenas diferente. O convívio se torna mais ameno. Uma pessoa ‘educada’ nem sequer se refere a ‘negros’, ou mesmo ‘mulatos’, sobretudo na presença deles. Ao mesmo tempo, se torna mais difícil o reconhecimento da categorização racial, a menor ascensão social dos não-brancos fica obscurecida e se torna mais difícil tomar medidas corretivas”.

A questão racial havia crescido em relevância e exigia novas posições

“A atuação de Fernando Henrique como sociólogo que entendeu a importância dos estudos das questões raciais foi muito importante”, reconhece a também socióloga Andréa Lopes, pós-doutora em Sociologia (USP), professora associada na UNIRIO e coordenadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Políticas Públicas e Desigualdades Sociais e do Grupo PET-Ação Afirmativa. “Com o grupo que ele integrou na década de 1950, Fernando Henrique compreendeu, ampliou e aperfeiçoou o que havia sido estudado antes pelo antropólogo Gilberto Freyre”. E, Andréa, acrescenta: “Dentre as revelações é preciso destacar que ainda no século 20, o Brasil mantinha resquícios de uma prática escravocrata inserido numa lógica moderna e capitalista”.

O período que separa as quase três décadas entre a pesquisa comandada por Florestan e Bastide e o Brasil do final dos anos 1980 – um século depois da Lei Áurea – mostrava com clareza que o tema racial havia crescido em relevância e exigia novas posições. Era preciso mudar.

Livro “Negros em Florianópolis: relações sociais e econômicas”— escrito por Fernando Henrique Cardoso

O local apropriado para o início dos debates seria a Assembleia Nacional Constituinte, que resultou na Constituição de 1988 e que trouxe diversos avanços no campo da cidadania e no combate ao preconceito. O racismo, que até então era enquadrado como contravenção penal, passou a ser considerado crime imprescritível e inafiançável.

Essas conquistas, lembra Andréa, já vinham num crescendo pelo menos desde o final da década anterior. Com o surgimento do pluripartidarismo, partidos como PMDB, PT e PDT acolheram em seus quadros integrantes dos movimentos negros, possibilitando a eleição de parlamentares como Carlos Alberto Oliveira, o Caó, e Abdias Nascimento.

Assim, a partir de 1985, o movimento negro já havia ganho espaço nos debates pré-constitucionais por meio de encontros, como a Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, realizado em 1985. O governo Sarney também havia tomado iniciativas na área da cultura, como o tombamento da Serra da Barriga (região alagoana em que se localizava o Quilombo dos Palmares), em 1986, e a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), em 1988, no contexto da comemoração do centenário da abolição. Nesse período, também foi incluído o quesito “raça/cor” nas pesquisas do IBGE. 

A questão se aprofundaria ainda mais em 1991, quando foi realizado o 1º Encontro Nacional de Entidades Negras (Enen), que resultou na organização da Coordenação Nacional de Entidades Negras, valorizando a temática negra e suas respectivas pautas por todo o país. 

Linha do Tempo — Questão Racial: as demandas do movimento negro e políticas públicas da história recente

Temas ligados a direitos humanos viram pauta nas campanhas políticas

Pelo crescimento do tema era óbvio que a discussão estivesse presente na campanha eleitoral de 1994. Dessa maneira, o então candidato à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso, apresentou seu programa de governo “Mãos à obra, Brasil”, com diversas propostas para a população negra. 

Dentre as principais políticas de governo sugeridas, destacavam-se a promoção de igualdade de oportunidades entre brancos e negros na educação, a importância do estudo da história e da cultura afro-brasileiras, a inclusão do quesito “cor” em pesquisas oficiais e a fiscalização para assegurar aplicação das leis contra o racismo em acordos e convenções internacionais firmados pelo país.

Eleito, Fernando Henrique precisava pôr em prática o que havia defendido durante a campanha. Sua intenção ganhou maior grandeza quando, em junho de 1995, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) enviou uma comitiva ao Brasil para uma parceria com o Ministério do Trabalho, em resposta às denúncias de discriminação racial no mercado de trabalho. Essa parceria possibilitou a criação do Programa Brasil, Gênero e Raça, que, em outubro, produziu um documento para combater o racismo nas relações trabalhistas no país. 

Ainda com maior valor simbólico ocorreria no mês seguinte a Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida. Seria ainda a confirmação da data de 20 de novembro, indicada pelo movimento negro desde 1971, como o dia a ser lembrado no combate ao preconceito racial. A manifestação resultou, por fim, na entrega de um documento ao presidente com um diagnóstico das discriminações sofridas pela população negra e a proposta do Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, com um conjunto de ações e políticas para diversas áreas.

Também em novembro de 1995, o presidente instituiu um Grupo de Trabalho Interministerial que teria como finalidade desenvolver políticas para a valorização da população negra. Coordenado pelo professor Hélio Santos, a equipe tinha entre seus objetivos propor ações integradas de combate à discriminação racial e elaborar e promover políticas governamentais antidiscriminatórias e de consolidação da cidadania. Pela primeira estiveram presentes na agenda do governo federal as políticas de ação afirmativa (políticas de cotas) para a população negra.

A importância da diversidade na universidade

Em novembro de 1996, Zumbi dos Palmares seria reconhecido como Herói da Pátria. Sancionada pelo presidente Fernando Henrique, a Lei 9.315/1996, de autoria da senadora Benedita da Silva (PT-RJ) inscreveu o nome de Zumbi dos Palmares no livro de Heróis e Heroínas da Pátria. Trata-se de uma publicação com páginas de aço que homenageia pessoas conhecidas por sua atuação em favor do avanço do país. 

Seis meses antes, no dia 13 de maio de 1996, foi lançado um programa pioneiro na defesa de propostas em prol da população negra. O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) foi inovador na América Latina por defender ações voltadas à população negra e apresentar propostas de valorização, de combate à discriminação, assim como de implementação de ações afirmativas. Dentro da proposta do plano foi criada, no ano seguinte, a Secretaria Nacional de Direitos Humanos para coordenar as ações do PNDH.

Dia Internacional para Eliminação da Discriminação Racial – Brasília, 21 de março de 2002; Foto: Domingos Tadeu

Discurso de Fernando Henrique Cardoso na cerimônia de entrega do Prêmio Nacional de Direitos Humanos; dezembro de 2002

“O primeiro ponto importante que coube ao PNDH responder foi o aumento da violência naquele período dos anos 1990, quando tivemos o massacre do Carandiru e as chacinas da Candelária e de Vigário Geral”, destaca Andréa. “Na sequência, o governo teve um papel importantíssimo ao colocar em pauta o tema das ações afirmativas, fazendo com que houvesse um comprometimento por parte de todos os ministérios e de todos os setores da administração pública”, admite Andréa. 

Um exemplo concreto que marcaria o segundo mandato de Fernando Henrique seria o lançamento do Programa Diversidade na Universidade, a partir de uma parceria com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). 

O plano surgia com a previsão de implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros. Anunciado no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso, o Programa Diversidade na Universidade, uma iniciativa do Ministério da Educação, foi implementado pelo governo Lula através da Lei 10.558/2002. “Em muitos sentidos no debate sobre as ações afirmativas, a gestão FHC se destacou pelo seu pioneirismo, dando início a programas que se consolidaram depois”, avalia Andréa. 

Pesquise no Portal do Acervo

Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.

Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).