A hábil construção do apoio político
Ao juntar importantes forças partidárias, Fernando Henrique Cardoso formou uma base parlamentar ampla para reformar a Constituição.
Na montagem da coligação que lhe daria sustentação na sua primeira campanha à Presidência da República, Fernando Henrique Cardoso precisou demonstrar grande capacidade de negociação. Seu principal adversário, Luiz Inácio Lula da Silva, que despontava como franco favorito nas pesquisas, trazia consigo uma base partidária sólida, tendo o PT à frente de uma chapa que incluía ainda o PSB e o PCdoB.
A preocupação em atrair outros partidos para respaldar a candidatura presidencial do PSDB começou antes da campanha. Em março de 1994, Carlos Augusto Montenegro, então diretor do IBOPE, pediu a Eduardo Jorge, assessor do ainda ministro da Fazenda Fernando Henrique, que marcasse uma reunião entre os três. Na conversa, Montenegro previu, lembra hoje Eduardo Jorge: “Se o Plano Real der certo – e ao que tudo indica dará – Fernando Henrique se elege presidente facilmente, até sem campanha”. Fernando Henrique ouviu, concordou, mas rebateu: “OK, eu ganho, mas depois? Governo como?”.
A resposta a essa pergunta passava pelo PFL. Os pefelistas defendiam uma agenda de reformas econômicas semelhantes à do pré-candidato Fernando Henrique Cardoso e apoiavam o Plano Real, ainda em gestação. A aliança também fazia sentido do ponto de vista eleitoral: o PFL tinha presença destacada na região Nordeste, ao passo que a força do PSDB se concentrava no Sudeste.
Na avaliação de Eduardo Jorge, que acompanhou Fernando Henrique desde o Senado até o Palácio do Planalto, primeiro como assessor e depois como secretário-geral da Presidência, atrair o PFL “se tornou uma tarefa relativamente fácil, depois que o PT se mostrou frontalmente contra o Plano Real”. A aliança com o PFL encontrou resistências no PSDB, uma vez que o primeiro surgira da costela do regime autoritário, e o segundo era formado por políticos que haviam feito oposição à ditadura. Mas a liderança de Fernando Henrique se impôs e a aliança se concretizou. Para a vaga de vice, os pefelistas indicaram o senador e ex-governador pernambucano Marco Maciel. O PTB, um pequeno partido, também se integrou à coligação.
A aliança entre os três partidos foi oficializada em junho de 1994, dias antes do lançamento da nova moeda. A queda abrupta da inflação depois da emissão do real, no primeiro dia de julho, fez Fernando Henrique disparar nas pesquisas e ultrapassar Lula na corrida sucessória.
Conforme previra o diretor do IBOPE, Fernando Henrique venceu a eleição de outubro de 1994 já no primeiro turno. Os partidos que o apoiavam obtiveram juntos 36% e 30% dos assentos na Câmara e no Senado, respectivamente. Esses percentuais, porém, não representavam um apoio amplo o suficiente para um governo comprometido com a aprovação de reformas do Estado e da economia. Por exigir emendas à Constituição Federal de 1988, a aprovação das reformas requeria 3/5 (60%) dos votos nas duas casas do Congresso.
Mãos à Obra, Brasil: Proposta de Governo – de Fernando Henrique Cardoso
Uma grande capacidade de dialogar
Empossado, Fernando Henrique foi à busca do PMDB, o partido com a maior bancada no Congresso. Com a nomeação de dois ministros do partido, a base do governo superou os 50% das cadeiras nas duas casas do Legislativo. Somando votos de outros partidos, de centro-direita, foi possível aprovar todas as reformas do capítulo econômico da Constituição apresentadas no primeiro ano do governo, contra os votos da oposição liderada pelo PT.
Os problemas surgiram no segundo ano, quando entraram em pauta reformas impopulares: a da administração pública, que mexia com os interesses do funcionalismo, e a da previdência, que atingia tanto os servidores públicos como os trabalhadores do setor privado. Fernando Henrique ensaiou um entendimento com as centrais sindicais, mas a tentativa se frustrou quando o PT desautorizou a CUT a negociar com o governo.
Diante das dificuldades, o presidente decidiu trazer um quinto partido para o governo. Com a incorporação do PPB (hoje PP), a base governista passou a contar, em tese, com aproximadamente 65% dos votos em ambas as casas. Além disso, Fernando Henrique reforçou a participação do PMDB no governo.
A ampliação da base governista foi suficiente para a aprovação das impopulares reformas da previdência e da administração pública, ainda que desidratadas. Apesar das dificuldades, a popularidade do presidente, variável-chave para obter maioria no Congresso, continuava em alta graças ao sucesso do combate à inflação, que seguiu em trajetória de queda até chegar abaixo dos 2% ao término de 1998.
“Nunca vi ninguém com capacidade tão gigantesca de conversar e, mais ainda, de ouvir como o presidente”, diz Eduardo Jorge, ex-secretário-geral da Presidência.
“Diálogo era a palavra-chave”, argumenta Eduardo Jorge. “Nunca vi ninguém com capacidade tão gigantesca de conversar e, mais ainda, de ouvir como o presidente”. Além de saber dialogar, Fernando Henrique conhecia o funcionamento do sistema político. Sabia que o primeiro escalão do governo deveria refletir a composição da sua base de apoio parlamentar, seja em termos partidários, seja em termos regionais, um equilíbrio delicado que, segundo o cientista político Octavio Amorim, Fernando Henrique soube gerir como nenhum outro desde o fim do regime autoritário.
Dessa maneira, ele conseguiu o improvável: reunir na base do governo tanto os maiores partidos surgidos da Arena (PFL e PPB) como os principais partidos originários da oposição ao regime autoritário (PMDB e PSDB), e manter essa base unida quase até o final do seu período na presidência, em 2002.
Em seu livro, “A Arte da Política: a História que vivi”, publicado em 2006, Fernando Henrique refletiu sobre a necessidade de construir alianças amplas para governar: “A arte da política é transformar inimigos em adversários e adversários eventualmente em aliados, pela persuasão e não pela cooptação. Quando se dá o inverso, a política se torna um escambo entre interesses menores. O drama é que são tênues os limites entre a grandeza e a perdição”. No meu caso, completa ele, “desde a campanha havia uma marca de governo de coalizão. Isso partiu de uma visão e de um programa. Os partidos que foram para o governo não poderiam alegar ignorância dos objetivos governamentais. Não quer dizer que tenham seguido sempre unanimemente esses objetivos, mas sabiam que o governo tinha um rumo, e eu procurei mantê-lo.”
Maioria parlamentar produziu reformas estruturais
Essa engenharia política produziu resultados. A “produção legislativa” do governo Fernando Henrique em seu primeiro mandato encontra raros paralelos na história brasileira. Aprovaram-se cinco emendas constitucionais e várias leis complementares que puseram fim a monopólios estatais em setores da infraestrutura, a exemplo das telecomunicações, petróleo e gás, e abriram caminho para o investimento privado nesses setores, além de outros, como portos, ferrovias e rodovias. Aprovaram-se também emendas constitucionais e leis complementares para melhorar a situação fiscal e reduzir privilégios (reforma da previdência) e modernizar a administração pública. Não menos importante, aprovaram-se ainda medidas que permitiram deslanchar a reforma agrária, fortalecer o financiamento à educação fundamental, com outra emenda à Constituição, e da atenção primária à saúde.
A ampla coalizão governista viabilizou também a aprovação de uma controversa emenda constitucional permitindo a reeleição de prefeitos, governadores e presidente da República. Para os críticos, uma mudança da regra feita no meio do jogo em benefício dos então ocupantes dos principais cargos executivos do país, em particular o próprio presidente. Para os defensores, uma medida necessária para incentivar os governantes a adotar políticas menos imediatistas, como as reformas que o governo FHC vinha realizando.
Embora não tenha se empenhado pessoalmente em favor da emenda da reeleição, o presidente teve sua imagem desgastada por uma denúncia de que teria havido compra de votos no Congresso para aprová-la. Fernando Henrique não foge do assunto no livro já mencionado. Depois de classificá-la de infâmia, conclui: “Se houve compra e venda de votos, ela se deu no plano regional (a denúncia dizia respeito a políticos do Acre e do Amazonas), envolvendo personagens e práticas da velha política, que o PSDB, com respaldo do meu governo, ajudou o PT a derrotar” (Fernando Henrique se refere ao apoio dado a Jorge Viana, candidato a governador do Acre pelo PT, eleito em 1998).
A perda de dois importantes aliados
A história é feita de surpresas. Pouco antes do início da campanha da reeleição, o presidente perdeu dois dos seus principais articuladores políticos. Em abril de 1998, o ministro Sérgio Motta e o deputado federal Luís Eduardo Magalhães morreram, com diferença de poucos dias. “Fernando Henrique sofreu tanto no aspecto político, quanto pessoal”, avalia Eduardo Jorge. A dupla faria muita falta no segundo mandato. A verdade é que, apesar de ampla, a base governista nem sempre votava unida em favor das propostas do governo. Havia defecções frequentes no PMDB e no PPB.
Eduardo Jorge, que também participava das negociações com o Congresso, se recorda das conversas complexas e das reuniões infindáveis. “A cada votação importante era necessário construir uma nova maioria. Você entrava no plenário e já apareciam os deputados com um papelzinho na mão perguntando: ‘Já resolveu isso?’. Eu negociava em alto nível com os parlamentares e a única diretriz do presidente era não permitir que a crise se instalasse (na base do governo)”.
Além da infidelidade de alguns parlamentares de partidos da base não raro pelo não atendimento de uma ou outra demanda pontual, o governo se ressentia da falta de lideranças parlamentares, exceções à parte, como a de Luís Eduardo Magalhães, que se engajassem na batalha política a favor das reformas. Sobre essa ausência, Fernando Henrique escreve no livro “Arte da Política”: “Frequentemente, o governo ganhava as votações, mas apanhava o tempo todo nos discursos e faltava ânimo para o combate verbal” (no Congresso e na opinião pública).
A questão dos partidos – artigo de FHC publicado na revista Contexto em 1978
A crise da base governista no segundo mandato
O governo sofreu um teste de estresse com a desvalorização do real em janeiro de 1999, logo ao início do segundo mandato. Ao final do mês de fevereiro, o dólar valia quase o dobro do que na primeira quinzena de janeiro. Embora o governo tenha conseguido manter o controle sobre a inflação, a alta momentânea dos preços feriu a imagem do presidente, que havia sido eleito e reeleito com a bandeira da estabilidade.
A popularidade de Fernando Henrique caiu abruptamente – depois se recuperou em parte, mas jamais voltou aos patamares do primeiro mandato – e os conflitos na base governista eclodiram. PMDB e PFL passaram a se digladiar no Congresso, em particular no Senado, onde Jáder Barbalho e Antônio Carlos Magalhães protagonizaram duelos verbais, com trocas de acusações recíprocas, que ficaram na história.
Nesse contexto, com o desemprego em alta, a oposição se revitalizou. Quis colocar em marcha uma campanha pelo impeachment de Fernando Henrique. Frustrou-se nessa aventura, mas obteve vitórias importantes nas eleições municipais de 2000, quando o PT venceu em seis capitais (São Paulo, Recife, Porto Alegre, Belém, Goiânia e Aracaju) e outras cidades importantes.
A situação se agravaria no final de 2000 com um novo conflito na base governista. O PSDB, que até então não havia reivindicado a presidência de nenhuma das casas do Legislativo, mudou de posição e lançou a candidatura do tucano Aécio Neves à presidência da Câmara dos Deputados, contra a candidatura do deputado pernambucano Inocêncio de Oliveira, do PFL. Em paralelo, no Senado, o presidente Antônio Carlos Magalhães queria fazer o seu sucessor e desejava vetar o nome de Jader Barbalho, do PMDB.
Assim, descumpria-se um acordo não escrito que vinha balizando as negociações entre os três principais partidos da base governista. O PSDB, por ter o Palácio do Planalto, sempre se afastava das disputas pelas presidências da Câmara e do Senado, que eram ocupadas em rodízio por PFL e PMDB. Aécio Neves conseguiu formar uma aliança forte e se elegeu presidente da Câmara dos Deputados e Jáder Barbalho venceu a eleição para a presidência do Senado, com apoio do PSDB. Em retaliação, ACM rompeu com o governo e os ministros indicados por ele pediram demissão.
Fernando Henrique registrou, no quarto volume dos “Diários da Presidência”, a sua irritação com as consequências políticas da sucessão nas presidências da Câmara e do Senado: “Tudo começou com a infantilidade de três ou quatro do PSDB, inclusive o Aécio, que resolveram mostrar que o partido era independente do Palácio do Planalto”.
Apesar do acirramento dos conflitos dentro da base aliada, o governo ainda conseguiu aprovar medidas importantes, em 2000 e 2001, a exemplo da Lei de Responsabilidade Fiscal (uma lei complementar, portanto, dependente da aprovação pela maioria absoluta nas duas casas do Congresso), que consolidou uma disciplina geral sobre as finanças públicas, válida para os três níveis de governo, inclusive Estados e municípios, um feito na história do federalismo brasileiro. Aprovou também a Emenda Constitucional 29, que aumentou os recursos para o SUS, e ainda a criação do Bolsa Escola, origem dos programas de transferência de renda que cresceriam nos anos seguintes.
O fim da aliança
As disputas pelas presidências da Câmara e do Senado, em fevereiro de 2001, marcaram o início do fim da coalizão que sustentou Fernando Henrique por quase oito anos. Já no início do ano seguinte – um ano de disputa presidencial – o PFL e o PTB saíram do governo e entregaram as pastas que comandavam. A intenção era que as legendas pudessem ter total liberdade para lançar candidatos à Presidência da República. Esse movimento fez com que a base governista caísse para menos da metade da Câmara dos Deputados pela primeira vez desde 1995.
Com o PFL andando agora em faixa própria, seus líderes lançaram Roseana Sarney ao Palácio do Planalto. A candidatura não prosperou, inviabilizada por um flagrante de recursos em espécie supostamente destinados ao caixa 2 da campanha. Feito pela Polícia Federal, o flagrante foi atribuído por lideranças do PFL a uma ação politicamente orientada pelo governo federal. O clima azedou de vez entre os partidos que haviam se unido oito anos antes em torno de Fernando Henrique. José Sarney saiu em defesa da filha, acusando o governo de agir como a Gestapo. Em seus diários, o então presidente registrou, no calor da hora, que Sarney agia com “amor de pai e imaginação de romancista”.
O candidato escolhido pelo PSDB foi José Serra, ministro do Planejamento e depois da Saúde nos governos FHC. Em lugar do PFL, a candidatura à vice-presidência foi entregue ao PMDB, que indicou a deputada capixaba Rita Camata. Sem repetir a ampla coligação que havia formado nas duas eleições anteriores, o PSDB atravessou um primeiro turno duríssimo, enfrentando fortes candidatos como Anthony Garotinho (PSB) e Ciro Gomes (PPS) para ver quem passaria com o candidato do PT, líder nas pesquisas, para o segundo turno. Apesar de ex-ministro por duas vezes, Serra não defendia o legado de FHC com convicção. Chegou ao segundo turno sem fôlego para derrotar Lula, que se elegeu presidente em sua quarta tentativa de chegar ao Palácio do Planalto.
Saiba mais:
Os partidos na transição – artigo de FHC publicado no jornal Folha de S. Paulo em 1986
Governar é possível – artigo de FHC publicado no jornal O Estado de S. Paulo em 2008
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Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).