A amizade entre dois presidentes
A proximidade de Fernando Henrique Cardoso com Bill Clinton elevou o nível das relações diplomáticas e foi benéfica ao Brasil e aos Estados Unidos.
“Tenho simpatia pelo Clinton, parece que é recíproca, vamos ver o que acontece”, anotou Fernando Henrique Cardoso em seu diário no dia 22 de fevereiro de 1995 na primeira referência como presidente empossado ao colega norte-americano. Já no início de seu governo, Fernando Henrique demonstrava confiança nesse relacionamento. Bill Clinton – na época com 48 anos (15 a menos do que Fernando Henrique) e há dois à frente da maior nação do planeta – era um líder democrata, respeitado e aberto ao diálogo.
O momento político mais aberto e distendido foi uma marca dos dois governos naquele período. Mas nem tudo estava tranquilo. Enquanto FHC dava início aos primeiros planos de governo, Clinton, no mesmo período, enfrentava uma pequena crise política: nas eleições legislativas de 1994, os democratas perderam para os republicanos a maioria na Câmara dos Representantes pela primeira vez em quase 40 anos, dificultando ainda mais a relação do presidente norte-americano com o Congresso.
Mais grave ainda seria uma crise deflagrada pelo terrorismo interno. Em abril de 1995, os Estados Unidos seriam atingidos pelo atentado de Oklahoma City. Mais mortal ato de terror ocorrido dentro do país antes dos ataques de 11 de setembro de 2001, a explosão de uma bomba em um prédio em Oklahoma foi o mais grave ataque doméstico da história norte-americana, sendo diretamente responsável pela morte de pelo menos 168 pessoas.
Uma triste coincidência aproximaria os dois chefes de Estado. O ataque ocorreu menos de uma semana antes da viagem oficial de Fernando Henrique, recém-empossado, aos Estados Unidos, a primeira das oito que ele faria durante seus dois mandatos. “Eu sei que hoje é um dia em que celebramos a amizade entre nossos países. Neste momento, no entanto, permita-me expressar-lhe meu profundo pesar pelo ato de barbárie que fez tantas vítimas inocentes”, assinalou o presidente brasileiro em seu primeiro discurso oficial em solo norte-americano. “Esse ato terrorista não agride apenas aos Estados Unidos, ele agride a todos os que acreditam na paz, na democracia e na liberdade”.
“Somos as maiores nações do continente”
Envolto pela solidariedade, o primeiro encontro entre Bill Clinton e Fernando Henrique Cardoso também demonstraria de imediato a boa convivência que a partir de então pautaria o comportamento dos dois. Ambos demonstravam confiança de que os dois países atravessavam um bom momento, com a democracia forte, boas perspectivas econômicas e avanços sociais. Fatores que permitiriam que as relações diplomáticas se dessem em um novo patamar.
FHC foi o primeiro a apontar essa evolução. Lembrando que – em tempos bem menos democráticos – ele próprio havia buscado abrigo nos Estados Unidos (“exilado por um regime que via ameaça em um professor de sociologia”), Fernando Henrique garantiu ter sido testemunha dos valores democráticos defendidos no país norte-americano. Como naquele período não apenas a situação política importava, Fernando Henrique e Clinton já sinalizavam que haveria uma maior integração dos dois países em uma economia em acelerado processo de globalização. “Somos as maiores nações do continente (em termos populacionais e econômicos), compartilhamos os problemas e as virtudes de nosso tamanho, fomos formados com a contribuição dos mais diversos povos”.
É tempo de uma nova parceria – Discurso de FHC na chegada à Casa Branca – 20 de abril de 1995
Um americano simpático
Os seis anos em comum (entre 1994 e 2000) que Fernando Henrique e Bill Clinton estiveram como presidentes foram marcados não apenas pelo bom relacionamento político como também pelo ótimo convívio pessoal. “Clinton me causa a impressão de ser uma pessoa basicamente social-democrata e agradável, um americano simpático que é capaz de ouvir”, elogiou o presidente brasileiro.
Embaixador do Brasil em Londres de janeiro de 1994 a junho de 1999, e em Washington de junho de 1999 a março de 2004, Rubens Antônio Barbosa foi testemunha dessa amizade. Ele já era próximo de FHC desde 1992. “Orgulho-me de ter sido seu assessor econômico quando ele era chanceler (ministro das Relações Exteriores, durante o governo Itamar Franco)”, lembra o embaixador Barbosa, que acompanhou de perto a relação do Brasil com os Estados Unidos durante quase todo o segundo mandato de Fernando Henrique e o biênio final de Clinton na Casa Branca.
O diplomata recorda que o bom relacionamento mútuo foi fundamental para o fechamento de alguns acordos, como aquele com o Fundo Monetário Internacional (FMI) realizado em novembro de 1998, logo depois do agravamento da crise russa. O acordo de ajuda financeira significou um empréstimo de US$ 41,5 bilhões e foi importante para o nosso país. “Aquela negociação foi de grande importância para o Brasil, dando condições ao país de proteger sua economia, em um momento difícil”, acredita o embaixador.
Barbosa também destaca outro momento em que a proximidade entre ambos se mostrou fundamental. Foi quando o Brasil e os Estados Unidos assinaram o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), em 2000. Ainda que à época a decisão tenha sido rechaçada pelo Congresso Nacional, o primeiro passo já havia sido dado, permitindo que duas décadas depois os dois países avançassem na negociação que permitiria o uso comercial da Base de Alcântara, no Maranhão. O Acordo de Salvaguardas Tecnológicas previa ainda a proteção de conteúdo com tecnologia norte-americana usado no lançamento de foguetes e mísseis a partir de Alcântara, já que 80% do mercado espacial usa tecnologia norte-americana e, portanto, a ausência de um acordo de proteção limitaria o uso da base brasileira.
Mesmo com dúvidas sobre a ALCA, governo não abandona as negociações
Uma das poucas áreas em que houve um certo desacordo entre os dois governos foi em alguns pontos com relação à pretendida Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Proposta feita pelo presidente dos Estados Unidos, durante a Cúpula das Américas, em Miami, em 9 de dezembro de 1994, a ALCA tinha o objetivo de eliminar as barreiras alfandegárias entre os 34 países americanos, com exceção de Cuba, formando uma área de livre comércio em todo o continente. A estratégia era a de gradualmente suprimir as barreiras ao comércio, prevendo-se a isenção das tarifas alfandegárias para quase todos os itens de comércio. Porém, uma das dificuldades para formação do bloco era a enorme disparidade entre a economia dos EUA e as economias dos demais países.
Ainda assim, os EUA queriam acelerar o processo e, em março de 1996, Fernando Henrique notara essa pressa em conversa com Mickey Kantor, ministro do Comércio dos EUA. Ao ministro, FHC sugeriu que era preciso ter paciência nas negociações para a criação da ALCA, frisando que, do contrário, elas poderiam não evoluir a contento. Clinton concordou e, na memória de Fernando Henrique, elogiou o Brasil por ter uma “posição muito construtiva”, ressaltando que, “apenas em alguns casos os interesses econômicos eventualmente se chocam”.
A partir de 1998, o Brasil se engajaria ainda mais no processo de negociação da ALCA. Um ano antes, em Belo Horizonte, uma reunião havia definido três premissas para a negociação, conforme assinalou o cientista político Sergio Fausto no capítulo ‘Modernização pela via democrática’, do livro ‘História do Brasil’, do historiador Boris Fausto:
1. As decisões seriam tomadas por consenso;
2. Não haveria implementação de partes isoladas do acordo;
3. As regras teriam de ser compatíveis com as do blocos sub-regionais.
Embora o Brasil ainda tivesse dúvida se a ALCA seria boa ou não para os interesses nacionais, o governo FHC nunca pensou em abandonar as negociações. Quem defendia a ruptura era a oposição, representada pelo PT, alguns partidos de esquerda e os movimentos sociais, como o MST. Eles defendiam a realização de um plebiscito, que – com resultado previsível, porém sem nenhum efeito legal – ocorreu em setembro do último ano do governo FHC.
Até então, o engajamento do Brasil para o fortalecimento da ALCA, na visão de Rubens Barbosa, “foi pleno durante o governo FHC”. Barbosa destaca: “Há um discurso do Fernando Henrique, em Quebec (Canadá), em que ele define os limites do apoio do Brasil às negociações. Havia divergências pontuais, o que não quer dizer que não houvesse convergências maiores”.
Tudo mudaria com Luiz Inácio Lula da Silva empossado presidente, a partir de janeiro de 2003. “Tudo desandou”, diz Barbosa. A situação piorou nos anos seguintes. Venezuela e Argentina se posicionaram contra. O novo governo brasileiro também não demonstrava interesse. E os Estados Unidos passaram a deixar de lado a bandeira do livre comércio, focando mais no combate ao terrorismo.
Bill Clinton: ouvinte da música brasileira
Dois anos e meio depois da primeira visita oficial de Fernando Henrique aos Estados Unidos (1995), Clinton retribuiu a gentileza e veio ao Brasil. Ele abriu sua fala com uma referência pessoal: “Eu gostaria de dizer agora que há 30 anos o Brasil ocupa um lugar importante na minha imaginação. Começou quando eu me apaixonei pela música brasileira quando jovem”.
De forma mais específica, Clinton ainda destacou que Fernando Henrique, com o Plano Real, colocou o Brasil nitidamente no caminho da prosperidade: “Com as maiores populações e as maiores economias do continente americano e compartilhando tanto as virtudes como os desafios colocados pelas dimensões dos nossos países e pela nossa diversidade efetiva, o Brasil e os Estados Unidos têm uma obrigação especial de liderar esta revolução histórica, que se desenvolve no nosso continente atualmente”.
Fernando Henrique: algodão entre os cristais
Com relação ao papel que o Brasil desempenhava na América Latina, o embaixador Rubens Barbosa destaca a importância e o protagonismo de Fernando Henrique, em especial na questão envolvendo a Venezuela e os Estados Unidos. Em um momento em que as discussões estavam tão acirradas, com o então presidente venezuelano Hugo Chávez em conflito permanente com os Estados Unidos, o presidente brasileiro teve – segundo Barbosa – a função de ser “o algodão entre os cristais”.
Já em uma análise mais global, Barbosa ressalta a participação de FHC, no segundo semestre de 1999, do primeiro grande encontro de cúpula para discutir a chamada Terceira Via, uma proposta originalmente apresentada pelo então primeiro-ministro britânico, Tony Blair. A reunião, ocorrida em Florença (Itália), seria vista pelo governo brasileiro como uma forma de renovar a social democracia na Europa e nas Américas, por meio da compatibilização entre uma economia sadia do ponto de vista macroeconômico, equilíbrio entre o Estado e o setor privado e políticas sociais abrangentes. Além de Fernando Henrique, Clinton e Blair, o encontro contou com as presenças de Lionel Jospin, presidente da França, Gerhard Schröder, chanceler da Alemanha, e Massimo D’Alema, presidente da Itália. Os presidentes da Comissão Europeia, o italiano Romano Prodi, e da Internacional Socialista, o português António Guterres, também compareceram.
“Havia uma química boa entre os Clinton (Bill e Hillary) e Fernando Henrique e Ruth Cardoso”, lembra Barbosa, “algo que eu nunca tinha visto antes, com os militares, nem depois, com Lula”. Outro exemplo dessa amizade foi o fato de que, em junho de 1998, Fernando Henrique e a primeira-dama, Ruth Cardoso, foram convidados a se hospedar na casa de campo da Presidência dos Estados Unidos, em Camp David.
Já fora da Casa Branca, Clinton pediu a Barbosa que fosse o emissário de uma mensagem a Fernando Henrique. Em março de 2001, o já ex-presidente garantiu ter a intenção de realizar uma nova visita ao Brasil. Através de Barbosa, que seguia morando em Washington, Clinton telefonou para Fernando Henrique, que estava em visita à capital norte-americana para um encontro com o novo ocupante da Casa Branca, o republicano George W. Bush. Uma conversa animada e cordial, na definição de Barbosa, que, infelizmente, não se confirmou. Clinton não veio ao Brasil naquele ano.
Mas FHC e Clinton voltaram a se encontrar em maio de 2004, por ocasião do seminário internacional que marcou o lançamento do Instituto Fernando Henrique Cardoso (hoje Fundação FHC), em São Paulo, do qual também participaram líderes políticos e intelectuais estrangeiros de renome, como o espanhol Manuel Castells, Lionel Jospin, António Guterres e John Clark, entre outros. Isso já faz 20 anos!
Este texto faz parte da série “FHC: Ação Política”. Por meio de textos, fotos, vídeos e documentos do Acervo da Fundação FHC, abordamos momentos e fatos marcantes da trajetória política e intelectual de Fernando Henrique Cardoso.
Márcio Pinheiro é jornalista com passagens pelo O Estado de S. Paulo, JB e Zero Hora. Autor do livro “Rato de Redação – Sig e A História do Pasquim” (Matrix, 2022).