Política social, reformas e redução da desigualdade social no Brasil
Armínio Fraga dividiu com o público o seu diagnóstico sobre este que é um dos, senão o maior, de todos os problemas brasileiros. Ele também apresentou propostas para enfrentá-lo.
A desigualdade social é um veneno que impede o crescimento equilibrado do país e torna o Brasil presa fácil de políticos populistas, tanto de esquerda como de direita. Daí a necessidade de retomar com urgência políticas de redução da desigualdade que começaram a ser construídas a partir da Constituição de 1988 e ganharam impulso durante os governos FHC e Lula, associadas a um conjunto articulado de reformas que tenha como objetivo incrementar a eficiência do Estado e a produtividade da economia.
Esta foi a mensagem principal de palestra de Armínio Fraga, que atraiu uma plateia lotada de políticos, economistas, cientistas sociais, advogados, empresários e estudantes, curiosos em ouvir o que um ex-presidente do Banco Central (Governo FHC) teria a dizer sobre o tema da desigualdade. “Este não é um tema ao qual tenha me dedicado com maior profundidade durante minha carreira de economista, mas cheguei à conclusão de que a desigualdade está no centro de nossos problemas e, de uns tempos para cá, resolvi estudá-la. Trago aqui algumas inquietações e sugestões, mas também quero ouvi-los”, disse Armínio, no início de sua fala.
“Não há por que esperar para atacar a desigualdade, é preciso agir imediatamente em diversas frentes, pois os brasileiros, principalmente os mais pobres, não apoiarão um governo reformista se não sentirem que sua vida está melhorando.”
Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003)
Segundo Armínio, considerado um economista liberal, um certo grau de desigualdade é natural nas sociedades e estimula a iniciativa individual e o empreendedorismo, mas a brasileira tem razões históricas longínquas, é persistente e se transformou numa marca indelével da sociedade. “Originou-se no modelo colonial extrativista e na escravidão e foi reforçada ao longo de nossa história pelo patrimonialismo, a captura do Estado, o caráter excludente de diversas de nossas instituições, a falta de foco na educação e, mais recentemente, o crescente poder de mercado (concentração de mercados em mãos de uma ou poucas empresas)”, afirmou o palestrante, doutor em economia pela Universidade Princeton (EUA).
Retomar e aprofundar o rumo
Munido de gráficos com diferentes recortes do índice de Gini – que mede a desigualdade de distribuição de renda dentro dos países e possibilita comparações entre eles – e outros dados (ver seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página), Armínio lembrou que o Brasil trilhava o rumo certo nas décadas de 1990 e 2000. “A partir de 1988, com a inclusão na Constituição de direitos e objetivos sociais, as coisas começaram a caminhar na direção certa. O controle da inflação, conquista dos governos Itamar e FHC, foi essencial, assim como a busca do equilíbrio macroeconômico. Durante o governo FHC, houve foco correto em educação e saúde e o início da reforma do Estado. O governo Lula deu continuidade a algumas dessas políticas, e as aprofundou, priorizando o combate à pobreza. Precisamos retomar e aprofundar esse rumo”, disse.
Segundo o economista, o país precisa se reorganizar para gastar mais e melhor nas áreas sociais, sem abrir mão do equilíbrio macroeconômico. “O Estado brasileiro não age adequadamente nem no longo prazo, com políticas eficientes de igualdade de oportunidades, nem no curto prazo, por meio da coleta justa de impostos e de transferências de renda voltadas para os que de fato precisam. Precisamos investir mais em educação, saúde, saneamento básico, segurança pública e transportes. Para que isso seja possível, é essencial gastar menos com pessoal (funcionalismo público), previdência e subsídios fiscais. Só assim conseguiremos direcionar nossos recursos limitados para os mais jovens e mais pobres”, afirmou.
Embora tenha deixado claro que não apresentaria uma proposta fechada para atacar o problema da desigualdade, Armínio defendeu a reforma da Previdência e a reforma do Estado, esta para combater o patrimonalismo, ambas feitas de forma articulada e tendo como princípios a justiça social e a eficiência. Ao mesmo tempo, propôs atacar logo as desigualdades do sistema tributário. “As reformas não devem ser feitas apenas por questões de natureza fiscal, mas sim para ampliar a justiça distributiva e tornar o Estado mais eficiente, possibilitando que ofereça serviços de melhor qualidade. Se as pessoas não se convencerem de que as reformas estão na direção correta, elas não as apoiarão”, concluiu.
Entre os diversos gráficos apresentados, um deles mostra que 80% do gasto primário do governo vai para previdência e funcionalismo (ver abaixo). “É uma extravagância que impede que o país realize investimentos absolutamente necessários para melhorar a vida dos cidadãos”, afirmou.
Outro gráfico que chamou atenção foi o que mostra que metade das transferências monetárias feitas pelo Estado vai parar nas mãos dos 20% de domicílios com maior renda (ver abaixo).
Segundo Armínio, os tributos indiretos incidem desproporcionalmente sobre a população mais pobre, que também paga juros muito altos quando necessita tomar um empréstimo. “Quem faz um empréstimo de R$ 1.000 paga 40% de juros anuais. Não faz o menor sentido”, disse.
Enquanto isso, os mais ricos se beneficiam de diversas maneiras. Uma delas é a chamada ‘pejotização’, pela qual profissionais liberais com faturamento bruto até R$ 4,8 milhões podem aderir ao Simples Nacional, pagando tributos mais baixos. Também no mercado financeiro as vantagens são grandes para quem tem mais recursos. “No Brasil, os que têm muito dinheiro para investir podem criar um fundo e postergar o pagamento de impostos sobre renda do capital para o ‘dia de São Nunca’”, afirmou Armínio, sócio-fundador da Gávea Investimentos.
‘Reestatizar o Estado’
O economista também criticou os subsídios concedidos pelo Estado a diversos setores da economia e os empréstimos do BNDES com taxas de juros significativamente inferiores às praticadas pelo mercado. “As renúncias fiscais chegam a 5% do PIB. Se cortarmos pela metade, o Estado terá mais dinheiro para investir em políticas sociais, com impacto na desigualdade, e a economia vai funcionar melhor. É preciso ‘reestatizar’ o Estado”, disse Armínio.
Ao defender a necessidade de uma reforma tributária, o palestrante propôs, entre outras medidas, a criação de um imposto sobre doações e heranças: “Hoje é inferior a 10%, dá para cobrar mais.” Por outro lado, ele disse haver excesso de tributação sobre a renda do trabalho, o que geraria informalidade. “É importante rever isso, mas de forma articulada com a reforma da Previdência”, disse.
Essas reformas se dariam em meio a um ajuste fiscal equivalente a, no mínimo, 4% do PIB. “O Estado brasileiro precisa gastar menos e melhor até para ter flexibilidade para fazer política anticíclica em momentos de crise. Política fiscal anticíclica é para quem pode, não para quem quer”
Para Armínio, com uma dívida próxima a 80% do PIB e crescendo, o Brasil deveria fazer um ajuste fiscal ainda maior. “Quando jovem, eu pesava 75kg. Os anos foram passando e fui engordando, engordando, quando vi estava com 90 kg, sempre cansado e com dor nas costas. Não bastava estabilizar, fui forçado a emagrecer. Para o Brasil voltar a ser saudável e reconquistar a capacidade de investir em quem mais precisa, o ajuste deve chegar a algo como 6% do PIB”, afirmou.
Anestesia coletiva
Já ao final de sua apresentação, Armínio lembrou que os economistas podem ajudar a identificar os problemas, mas que os políticos, intelectuais e formadores de opinião em geral precisam ajudar a convencer a população da necessidade de adoção de um conjunto de medidas e reformas que visem a tornar o Estado mais saudável e eficiente, aumentando assim sua capacidade de atuar para reduzir a desigualdade. “A solução passa por mostrar que quem vai perder com as mudanças são os que estão ganhando mais do que deveriam”, disse. Entre eles, os mais ricos e os altos funcionários do Estado.
“Vivemos uma fase de paralisia político-institucional e de um certo anestesiamento coletivo. Para superar isso, é fundamental se comunicar melhor com a população, assim como abrir outras agendas que demonstrem que as coisas serão tratadas do ponto de vista distributivo. Só assim o governo e o parlamento terão moral para realizar as mudanças necessárias”, afirmou.
“A questão é sobretudo política”, concordou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Não é fácil fazer mudanças que mexem com interesses e o bolso de grupos privilegiados. Ninguém muda na abundância, mas sim nos momentos de crise. É fundamental haver uma liderança que dialogue com a opinião pública e bata na mesma tecla todos os dias até conseguirmos avançar, com foco e consistência. Não adianta tentar empurrar as soluções para os outros”, concluiu FHC.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.