Debates
09 de maio de 2019

Os Evangélicos na Sociedade e na Política: efeitos e significados de uma influência crescente

Neste debate, conversamos com dois pesquisadores deste fenômeno: Ricardo Mariano e Ronaldo de Almeida.

No censo do IBGE de 2010, os evangélicos e protestantes representavam 22% da população brasileira e hoje já devem estar perto de um terço, sendo que os pentecostais protagonizam a expansão em curso. Ao mesmo tempo, há diminuição do número de brasileiros que se dizem católicos: em 2010, eram 65%, mas esse percentual deve apresentar nova queda no censo programado para 2020.

À medida que se tornam mais numerosos nas periferias das capitais e regiões metropolitanas, em cidades de pequeno e médio porte do interior e nas novas fronteiras agrícolas das regiões Norte e Centro-Oeste, os evangélicos estão mais ativos politicamente, não somente na disputa de cargos legislativos e executivos nos três níveis de governo, mas também na busca por influenciar a pauta político-social em temas morais, comportamentais e até mesmo econômicos.

Essas foram as principais conclusões do seminário “Os evangélicos na sociedade e na política: causas, efeitos e significados de uma influência crescente”, realizado na Fundação FHC com participação de dois pesquisadores deste fenômeno.

“Hoje em dia não é possível refletir sobre a democracia brasileira sem levar em conta o ativismo político evangélico. Foi-se o tempo em que eles eram ‘outsiders’ na política.”
Ricardo Mariano, professor do Departamento de Sociologia da USP e pesquisador do CNPq

“Em que momento as duas curvas (acima) vão se encontrar? Alguns demógrafos preveem que isso ocorra em meados da década de 2030, ou seja, dentro de uns 15 anos.”
Ronaldo de Almeida, professor do Departamento de Antropologia da Unicamp e diretor científico do CEBRAP

Segundo Ronaldo, autor de “A Igreja Universal e seus demônios” (Edit. Terceiro Nome, 2009), no início dos anos 2000 imaginava-se que o crescimento dos evangélicos bateria num teto, mas essa tendência se manteve e tem se dado em várias camadas e em todo o país, com predominância entre os mais pobres, menos escolarizados e não brancos.

“Existe uma percepção de aceleração desse movimento de tal forma que é de se esperar que no censo de 2020 haja uma aproximação ainda maior das duas linhas. No anel metropolitano do Rio de Janeiro já há equilíbrio entre as populações evangélica e católica e naquele estado, assim como em Rondônia, os católicos já são menos de 50%”, disse.

Mulheres ‘puxam’ conversões

A expansão contínua desde os anos 1960 se deve a um “incansável, eficiente e vigoroso proselitismo, levado a cabo também por leigos, especialmente as mulheres”, afirmou Ricardo, autor de “Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil” (Edições Loyola, 2018). “São elas que recrutam e convertem seus maridos, filhos, vizinhos e colegas de trabalho”, contou.

A relativa fragilidade institucional do catolicismo, devida à elevada proporção de católicos não praticantes e ao número insuficiente de sacerdotes no Brasil, facilitou o sucesso dos concorrentes: 44% dos evangélicos têm origem no catolicismo, enquanto 90% dos católicos nasceram na própria igreja.

Além disso, segundo os palestrantes, as igrejas pentecostais são hábeis em lidar com as necessidades e os anseios das camadas mais pobres da população:  adaptam o chamado religioso à sua realidade material e cultural, oferecem apoio espiritual, emocional, terapêutico e assistencial aos fiéis, formam redes comunitárias de apoio e sociabilidade e, ao estabelecer padrões morais e comportamentais bem definidos, contribuem para melhorar a qualidade e o nível de vida dos membros e de suas famílias.

‘Nova paisagem visual e auditiva’

“Ao andar pelas ruas das periferias e cidades do interior, vemos grande número de pequenas igrejas, versículos pintados nos muros, grupos de fiéis com a Bíblia embaixo do braço e ouvimos música gospel por toda parte”, falou Ronaldo de Almeida.

Segundo o organizador da coletânea “Conservadorismos, fascismos e fundamentalismos: análises conjunturais” (Edit. Unicamp, 2018, em parceria com Rodrigo Toniol), o crescimento do pentecostalismo está relacionado à percepção de aumento da violência nas regiões periféricas e à presença do crime organizado, principalmente o tráfico de drogas.

“O dinamismo evangélico tira proveito da criminalidade cada vez mais espalhada pelo país, pois muitas pessoas, para se sentirem mais seguras ou até mesmo para se afastar do crime, buscam refúgio nas igrejas evangélicas, onde encontram um sentido e uma identidade para suas vidas ou até mesmo uma espécie de salvo conduto”, explicou o antropólogo com pós-doutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris).

Domesticação religiosa

Embora não haja dados empíricos que comprovem que a adesão ao pentecostalismo resulte em melhoria de renda e qualidade de vida dos fiéis, os dois palestrantes concordaram que a conversão melhora a autoestima e dá uma nova perspectiva de vida e de futuro.

“Muitos fiéis deixam de beber, de fumar, param de brigar com a esposa e passam a cuidar mais da família. Ocorre uma certa domesticação religiosa, o que não é pouca coisa”, disse Ricardo Mariano.

Os jovens tendem a se casar mais cedo, devido às restrições sexuais antes do casamento, e, embora nem sempre tenham escolaridade ou renda suficiente para formar uma família, evitam se envolver com problemas nas ruas. “Existe uma virtuosidade nos vínculos que se criam entre os irmãos de fé, pois uns ajudam os outros prioritariamente, trocam informações de trabalho e há um fortalecimento dos laços sociais”, disse.

Onda conservadora

Apesar de existir diversidade de opiniões também no universo evangélico, com igrejas e pastores que se posicionam claramente em defesa dos direitos humanos e das minorias,em parceria com entidades não religiosas da sociedade civil, quem tem dado o tom na arena política é o núcleo evangélico mais conservador.

“Há diversidade no mundo evangélico, com segmentos mais à esquerda ou progressistas, mas os setores mais moralistas ou conservadores são hegemônicos e têm sido bem mais atuantes do ponto de vista eleitoral. Participam ativamente da atual onda conservadora, sendo constituintes e constituídos por ela, às vezes como pano de fundo, outras vezes como protagonista desse conservadorismo”, disse Ronaldo.

Ricardo lembrou que, na Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 1988, os evangélicos já se faziam presentes, com uma bancada de 32 integrantes. Desde então, buscaram aumentar sua influência política com base em uma bancada crescente de parlamentares e na obtenção de novas concessões de rádio e TV. Nesses processo,, assumiram o controle ou criaram novos partidos, passaram a presidir comissões parlamentares e a ocupar ministérios e secretarias. Atualmente, a bancada evangélica soma 90 deputados federais e 9 senadores, além de deputados estaduais, vereadores, prefeitos e governadores.

Apoio decisivo

Em 2018, os evangélicos deram apoio decisivo à eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Entre os evangélicos, o candidato do PSL obteve 11,5 milhões a mais do que Fernando Haddad (PT). A diferença entre os dois candidatos no segundo turno foi de quase 11 milhões de votos. Veja abaixo tabela que mostra em quem votaram os adeptos de diferentes religiões nas eleições do ano passado.

“A polarização política que se deu nos últimos anos colaborou para consolidar uma direita política cristã, fenômeno muito conhecido nos Estados Unidos, mas que demorou décadas para se constituir no Brasil”, falou Ricardo Mariano.

Segundo o sociólogo, o núcleo duro do conservadorismo evangélico, anti-aborto, pró-família tradicional, antifeminista e anti-LGBT, expandiu seus interesses a outras áreas, transformando a escola pública e o material didático em campo de batalha. “Os parlamentares evangélicos são os principais proponentes dos diversos projetos do tipo ‘escola sem partido’ nos legislativos federal, estadual e municipal”, disse.

‘Teologia da prosperidade’

As lideranças evangélicas também passaram a defender proposições “de direita” no campo penal e ideias mais liberais na economia, estimulando por exemplo o empreendedorismo por parte de seus membros, em substituição a um assistencialismo que caracterizou a ação da Igreja Católica por muitas décadas.

“Essa ‘teologia da prosperidade’ abandona a crítica à desigualdade social e a confiança na providência de Deus e passa a valorizar a ascensão individual, ao defender que melhorar de vida é desejável do ponto de vista religioso”, disse Ronaldo de Almeida.

Segundo o antropólogo, as igrejas têm sido competentes não apenas em elevar a auto-estima e a disposição de seus membros de tomarem as rédeas de suas próprias vidas, mas têm organizado cursos sobre como gerir um negócio, ainda que informal, e “enfim se tornarem patrão nas relações de trabalho”.

Ainda segundo o professor da Unicamp, o atual discurso desse núcleo evangélico mais conservador se baseia em quatro “linhas de força”:

1. Defesa da moralidade e de princípios éticos e comportamentais: segundo o pesquisador, esse seria o campo em que os evangélicos são protagonistas, na defesa da proibição do aborto mesmo nos casos hoje permitidos por lei, na crítica à educação  sexual nas escolas e na oposição à ‘ideologia de gênero’, ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e à adoção de crianças por casais homoafetivos, entre outros temas que dividem a sociedade ;

2. Discurso de valorização da ordem: apoio a medidas mais duras contra a criminalidade, como endurecimento de penas, redução da idade de maioridade penal, flexibilização da posse de armas etc;

3. Dimensão econômica: defesa de um Estado menos interventor nas relações sociais e econômicas e menos ‘assistencialista’, com valorização da ideia de ascensão social a partir do próprio trabalho e do estímulo ao empreendedorismo individual e familiar;

4. Aposta na demonização religiosa e na polarização ideológica e política: exacerbação das críticas a outras religiões, em especial aquelas fora da tradição judaico-cristã, e a partidos e movimentos de esquerda.

‘Nova maioria cristã’

Ronaldo alertou para a tentativa de imposição de uma moralidade pública baseada na ideia de uma “nova maioria cristã”. “Apesar de uma maioria evangélica-protestante ainda não ser uma realidade no Brasil, pouco a pouco os líderes pentecostais mais conservadores e combativos começam a bater na tecla da supremacia de uma maioria judaico-cristã, que incluiria os católicos. Quem não estiver de acordo que se sujeite ao desejo da maioria”, disse, alertando para o risco de essa visão se tornar hegemônica.

“Até recentemente, a efetividade dessa vasta pauta evangélica-conservadora tem sido relativamente limitada, mas o impacto dela já é grande na sociedade e deve aumentar, eventualmente obtendo vitórias importantes na definição da normatividade jurídica e de políticas públicas”, concluiu Ricardo Mariano.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.