Debates
28 de março de 2017

O que a questão das drogas tem a ver com justiça e democracia?

“Meu objetivo número 1 é quebrar o poder do tráfico”, disse o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal.

Não basta descriminalizar o porte de drogas para uso pessoal. É preciso legalizar e regulamentar a produção e a venda, começando pela maconha. Foi o que defendeu o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no debate “Descriminalização do Uso de Drogas: um Debate Inadiável”, na Fundação Fernando Henrique Cardoso. “Meu objetivo número 1 é quebrar o poder do tráfico”, disse Barroso.

“Não adianta ficarmos obcecados em eliminar o consumo de drogas no mundo, pois não vamos conseguir. É muito melhor fazer como foi feito com o cigarro, cuja política de controle adotada no Brasil é hoje um exemplo mundial”, defendeu o ex-presidente FHC.

“Existe muita confusão em relação a termos como descriminalização, legalização e regulação. Gostaria que os debatedores esclareçam essa questão”, pediu o diplomata Miguel Darcy de Oliveira, que moderou o encontro.

Já o pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, Francisco Inácio Bastos, coordenador da Pesquisa Nacional sobre Crack, criticou os limites existentes para estudar drogas no Brasil. “Com frequência surgem produtos novos e não é possível monitorar essas substâncias se a gente não sabe do que se trata. Como transportá-las para a Fiocruz? São meses de burocracia e, se eu for parado numa blitz, posso ser considerado traficante. É muito importante que a ciência possa trabalhar com liberdade e em diálogo com a sociedade”, disse Bastos.

Leia abaixo os melhores trechos do diálogo entre o ex-presidente Fernando Henrique e o ministro Luís Roberto Barroso, ponto alto do evento.

Fernando Henrique Cardoso – No Brasil, atualmente, a droga está livre nas mãos do bandido. O tráfico existe por todo lado e o acesso é amplo e irrestrito. Ainda ontem debatia com o médico Drauzio Varela, que mostrou claramente como o país se tornou exemplo mundial pela maneira como lidou com o problema do tabaco. Ninguém proibiu o cigarro, mas dificultamos ao limitar os espaços onde é permitido fumar, proibimos a propaganda, conscientizamos a população dos malefícios e hoje o consumo aqui é muito menor do que na Europa e em outras regiões. Por que não fazer a mesma coisa com as drogas? A nossa proposta não é de liberar geral, mas de descriminalizar. O ministro Luís Roberto Barroso entende muito mais disso do que eu, mas o que propomos é que não se coloque na cadeia a pessoa que tem no bolso uma certa quantidade de droga para uso pessoal.

Luiz Roberto Barroso – Mas, embora seja importante do ponto de vista humanitário, a descriminalização do porte para uso pessoal produz pouco impacto sobre a dramática realidade das drogas no Brasil. No Primeiro Mundo, a grande preocupação é com o usuário, o consumidor. Nós temos um problema maior, que é o poder do tráfico nas comunidades carentes, onde ele se tornou o poder político e econômico. E seu poder vem da ilegalidade. O tráfico perpetra a maior violação de direitos humanos que há no Brasil atualmente, que é impedir um pai ou uma mãe de família decente de criar seu filho numa cultura de honestidade porque o tráfico alicia esses jovens pelo dinheiro, pela intimidação ou de outra forma.

“Meu objetivo número 1 é quebrar o poder do tráfico”.

Não me é indiferente o caso de um jovem da zona sul carioca que morra de overdose, mas esta pessoa, mal ou bem, fez uma escolha na vida. Preocupo-me mais com as vítimas inocentes, que são as pessoas que morrem de bala perdida ou são cooptadas pelo tráfico. Em segundo lugar, nós prendemos milhares de jovens primários e de bons antecedentes por delitos associados ao tráfico. Pequenos traficantes, de 100 g, 200 g, até 1 kg. No mesmo dia em que este jovem entra na prisão, por questão de sobrevivência se filia a uma facção e, então, passa a dever favor a ela, ele e sua família, que do lado de fora se torna refém das facções que operam nos presídios. Para criar uma vaga no sistema penitenciário, o Estado gasta R$ 40 mil e, para manter um jovem na prisão, R$ 2.000 por mês. Portanto, há um custo financeiro e, quando ele volta para a rua, há um custo social. Mas há algo ainda pior. No dia seguinte ao que foi preso, há um exército de reserva nas comunidades mais carentes para repô-lo. Portanto, a gente prende o rapaz, destrói a vida dele, gasta dinheiro para mantê-lo na prisão, torna-o mais perigoso e não produz nenhum impacto sobre o tráfico. Que política pública estúpida é esta?

Devemos legalizar com regulação intensa, algo semelhante, como salientou o presidente Fernando Henrique, ao que foi feito com o cigarro. Nas últimas décadas, a população adulta de fumantes no Brasil caiu de 35% para 14%. Obtivemos excepcional resultado ao combater um produto lícito à luz do dia, com ideias, informações, cláusula de advertência e contra-propaganda. Sugiro fazer a mesma coisa começando pela maconha. Não tenho certeza de que vai dar certo, ninguém tem. Estamos lidando com gente e, se der errado, teremos que voltar atrás. Mas posso garantir que a guerra às drogas não está dando certo.

FHC – O ministro Barroso dá um passo adiante significativo no debate público ao defender a legalização com regulamentação. Há algum tempo fiz uma visita à Comunidade de Vigário Geral, no Rio, e havia entre os presentes um grupo em que alguns deveriam ter sido traficantes, mas aparentemente haviam sido regenerados pelo Afroreggae. A grande questão para eles era quem iria distribuir a droga, se legalizada? Que empresas tomariam conta do mercado deles? Esta é uma luta grande porque o tráfico no Brasil cresceu muito. E não só se fortaleceu e está presente em toda parte como começou a penetrar na política. Vimos na Colômbia, no México, na América Central e na África, o que isto significa. Estamos todos escandalizados com a corrupção revelada pela operação Lava Jato envolvendo os políticos e as empreiteiras, mas sabe-se lá até onde pode chegar o tráfico no envolvimento com a política.

“No Brasil, estamos assistindo a uma guerra entre grupos criminosos organizados e começam a surgir sinais de cartelização pesada”.

O PCC, uma organização poderosa monopólica em São Paulo, estaria em conflito com grupos presentes em outras regiões para controlar a entrada de drogas da Colômbia. Portanto, o ministro está certo. A questão do tráfico não pode ser colocada à margem. Não é só uma questão de combater o consumo, mas de desorganizar o monopólio que o tráfico exerce sobre territórios e áreas importantes para o país.

Barroso – Aí vem outra discussão. Qual é o melhor modelo de regulamentação da produção e da venda? O uruguaio, em que a produção de maconha é controlada pelo Estado, ou o norte-americano, em que é explorada privadamente? Sou de uma geração que acreditou que o Estado pudesse ser o protagonista dos avanços sociais, mas hoje sou extremamente descrente. Nas minhas piores fantasias, imagino a criação de uma Drogabras (risos) porque aí sim vai desmoralizar completamente o produto. Vai ser caro, vir malhado, um horror. Por isso, trataria como um business estritamente regulado e fiscalizado.

FHC – Quando será o momento de descriminalizar e legalizar todas as drogas, ministro? Nunca tem um momento perfeito, ideal, precisamos quebrar o tabu que existe na sociedade. Aqui no Brasil existe um medo das pessoas envolvidas no processo decisório de entrar nesse tema. Os setores políticos, os partidos, são os mais resistentes porque partem da suposição de que a população vai ser contra porque não quer que se mexa nesse tema. Por isso, os avanços têm sido mais no Poder Judiciário do que no Executivo ou no Legislativo. A verdade é que o sistema judiciário em certos casos têm tomado decisões que representam um avanço em relação aos debates no Congresso, o que incita que a sociedade discuta mais. A mídia também tem um papel importante.

Barroso – Este é o passo número um, presidente, mas o passo número dois depende de reforma legislativa. Quer dizer, a judicialização tem limites de legitimidade a partir do qual ela se torna ilegítima. A judicialização para defender direitos fundamentais, como a união homoafetiva ou a descriminalização da interrupção de gestações, é legítima. Mas outras questões exigem uma decisão política porque assim é a vida democrática.

FHC – Sem dúvida. O debate não deve acontecer só no Supremo e no Congresso, mas na sociedade. É a cultura e a visão de todos nós que têm que mudar. Por isso, pessoas como nós decidiram fazer quase uma pregação. E é preciso fazer isso com uma certa estratégia, o ministro Barroso foi muito claro nesse sentido. Avançar pouco a pouco com um objetivo claro.

Barroso – Há uma frase que é constantemente repetida, que é a de que no Brasil a gente prende muito, mas prende mal. Por quê? A sociedade brasileira tem duas grandes preocupações: violência e corrupção. Temos a quarta maior população carcerária do mundo, com cerca de 650 mil detentos, mas apenas 35% estão presos por violência: 25% deles por roubo e 10%, por homicídio. Já o percentual dos detidos por delitos associados às drogas é de cerca de 30%. E quantos estão presos por peculato, corrupção ativa e passiva ou fraude em licitações? Menos de 1%. E infelizmente não é porque não aconteça esse tipo de crime, como a realidade demonstrou. Criamos uma elite brasileira que pratica desabridamente a criminalidade econômica sem nenhum tipo de consequência. Poucas coisas se revelaram mais evidentes para mim nesses quatro anos em que estou no Supremo do que a perversa desigualdade do sistema punitivo brasileiro, que é feito para punir negros e pobres em grande parte por delitos irrelevantes. A percepção dessa desigualdade me levou a rever muitos conceitos de como nós devemos tratar essa matéria, não para criarmos uma sociedade punitiva, porque não se faz um país com exacerbação do direito penal. Um país se faz com educação, distribuição justa de renda e debate público democrático de qualidade, como estamos tentando fazer aqui. Mas a verdade é que o direito penal absolutamente leniente no andar de cima criou um país de ricos delinquentes. É disso que estamos tentando sair e, agora, temos uma chance de mudar de patamar. Não podemos perdê-la porque, do contrário, todas as dificuldades pelas quais estamos passando terão sido em vão. Para mudarmos de patamar, precisamos de pensamento original, energia criativa e um pouco de ousadia.

Um dos problemas que enfrentamos hoje no Brasil é a má qualidade do debate público. O sujeito já entra na discussão desqualificando o outro. Para dar um exemplo real e concreto: a redução da maioridade penal, que tramitou pelo Congresso recentemente. Não importa agora o que cada um acha, mas as questões que se impunham eram: 1) Como está funcionando o sistema punitivo dos adolescentes em vigor? 2) Se reduzirmos a maioridade penal, quantas novas vagas teremos de criar no sistema prisional? 3) Qual será o custo disso? Veja, eu não tenho problema moral de punir um menino de 16 ou 17 anos que mata ou estupra. Nenhum. Mas tenho um problema moral de prendê-lo no sistema das facções. Ou de o Estado pela primeira vez se mostrar presente na vida desse menino apenas para metê-lo na cadeia. E como foi o debate público no Brasil? Os reacionários retrógrados eram a favor, os progressistas liberais eram contra. Uma discussão que deveria ser técnica se transformou em uma guerra de insultos. Portanto, uma pessoa como o presidente FHC falar sobre drogas é tão importante. Eleva a qualidade do debate. Ninguém precisa pensar como ele ou eu. Mas é preciso discutir com ideias, informações, estatísticas. Quem quiser se contrapor que traga também seus elementos.

FHC – Neste sentido, a Comissão Global sobre Política de Drogas tem publicado relatórios muitos interessantes (veja o relatório de 2016, em português) porque junta observações científicas, do ponto de vista clínico, penal e social, assim como experiências de diversos países. E tentamos juntar pessoas que são relativamente acima de qualquer suspeita e com ressonância em seus países ou regiões. É o caso de Kofi Annan (ex-secretário geral da ONU), Olusegun Obasanjo (ex-presidente nigeriano), Mario Vargas Llosa (escritor peruano), Paul Volcker (ex-presidente do Banco Central norte-americano) e George Shultz (ex-secretário de Estado dos EUA). Algumas pessoas me criticam dizendo ‘Ah, mas o sr. foi presidente e não fez nada. Por que agora?’ Não é verdade que nada tenha sido feito na área das drogas durante o meu governo (a política de combate ao tabagismo teve grande avanço no governo FHC, com José Serra à frente do Ministério da Saúde). Mas ainda bem que passei a entender mais sobre esse assunto. Fui evoluindo, todos devemos ter humildade para rever conceitos, buscar se informar, aprender. Recentemente, o Alexandre de Moraes, quando estava no Ministério da Justiça, foi ao Paraguai e se deixou filmar queimando pés de maconha. Quando era presidente, fiz a mesma coisa. Depois percebi que não adiantava nada (risos). Como ministro do Supremo, não sei como ele vai votar em relação à questão das drogas, mas vamos deixar em aberto a possibilidade de, em seu novo cargo, levar em conta outros fatores.

Barroso – Caberá agora ao ministro Alexandre de Moraes, que sucedeu Teori Zavascki (falecido em um acidente de avião em janeiro deste ano), retomar a votação no STF de uma declaração de inconstitucionalidade da criminalização do porte para uso pessoal. Não sei como ele vai se posicionar. Espero que o Supremo e seus integrantes se sintonizem com o mundo civilizado. Termino citando uma frase do escritor Elie Wiesel, que foi sobrevivente de Auschwitz durante o Holocausto e ganhou o Prêmio Nobel da Paz: ‘A neutralidade significa estar do lado do opressor.’ É absolutamente verdadeiro. Como pessoas comprometidas com o Brasil e a humanidade, devemos nos preocupar em proteger as vítimas inocentes do tráfico. E a melhor forma é a legalização e regulação estrita por parte do Estado.

Otávio Dias, jornalista, é especializado em questões internacionais. Foi correspondente da Folha em Londres, editor do estadão.com.br e editor-chefe do Brasil Post, parceria entre o Huffington Post e o Grupo Abril.