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02 de dezembro de 2020

Bolívia: Novo presidente precisa provar autonomia em relação a Evo e superar crise econômica

Um novo governo assume o país em meio a uma crise econômica que já dura vários anos e que foi bastante agravada pela pandemia de Covid-19.

Após uma vitória eleitoral contundente em outubro de 2020, o novo presidente boliviano Luis Arce terá o desafio de provar sua independência e autonomia em relação a quem foi seu chefe nos anos em que esteve à frente do Ministério da Economia: o ex-presidente Evo Morales, principal liderança do MAS (Movimento ao Socialismo), pelo qual Arce disputou e venceu as eleições com 55% dos votos válidos no primeiro turno. O MAS conquistou também a maioria absoluta dos votos da Câmara e do Senado, mas não o quórum suficiente para introduzir mudanças constitucionais sem negociar com a oposição.

O novo governo do MAS assume em meio a uma crise econômica que já dura vários anos e que foi bastante agravada pela pandemia de Covid-19, apontou Carlos Mesa, um historiador e jornalista que foi vice-presidente e presidente da Bolívia entre 2002 e 2005, em webinar realizado pela Fundação FHC.

Além do desafio de enfrentar a crise econômica e responder às demandas sociais de uma população empobrecida, Mesa destacou outra preocupação: o novo governo seguirá o caminho de autoritarismo crescente percorrido pelo MAS entre 2006 e 2019, com controles cada vez maiores sobre o Poder Judiciário e perseguição a líderes oposicionista, ou Luís Arce adotará uma postura mais democrática do que Evo Morales?

A esse respeito, Mesa chamou atenção para o vice-presidente David Choquehuanca Céspede, Ministro das Relações Exteriores nos governos de Morales, mas que dele se afastou no período mais recente. Colquehuanca tem defendido a normalização das relações entre governo e oposição. Nas disputas de poder internas ao MAS, conta a seu favor o fato de ser indígena. Ainda assim, ressalvou Mesa, Morales segue sendo o líder inconteste do partido.  

Mesa disputou as duas últimas eleições presidenciais, ambas como principal candidato de oposição ao MAS. Em 2019, recebeu pouco mais de 38,2% dos votos, enquanto Morales obteve 45,3% no primeiro turno e chegou a proclamar vitória. Sob denúncias de fraudes, a eleição acabou cancelada e o país entrou em uma crise política que levou à renúncia de Morales e seu exílio provisório (entenda o que aconteceu neste texto da BBC Brasil).

Na origem da crise política que levou à renúncia de Morales está o referendo realizado em 2016 para determinar se o então presidente teria ou não direito a disputar um quarto mandato consecutivo. Derrotado no referendo, Morales recorreu no ano seguinte à Corte Suprema, controlada por ele, para assegurar o direito que as urnas lhe haviam negado. A perspectiva de eternização de Morales no poder levou ao acirramento dos ânimos políticos, com o fortalecimento de grupos de direita.

Nesse ambiente de polarização crescente, Mesa se estabeleceu como a opção do centro democrático. Formou a Coalizión Ciudadana. Apesar de derrotado na eleição de 2020, quando obteve 28,83% dos votos, é hoje o principal líder da oposição. Seu partido conta com 39 das 130 cadeiras na Câmara e 11 das 36 no Senado. No campo da oposição, enfrenta a competição de Luis Fernando Camacho, candidato da coalizão Creemos, um político novato com raízes na província de Santa Cruz, que obteve 14% dos votos nas eleições presidenciais. Camacho tem apoio entre os setores religiosos e conservadores, em especial na sua província natal.

As razões da vitória do candidato do MAS

“Por que, diferentemente do que nós, da oposição, imaginávamos que aconteceria, 55% dos bolivianos votaram no MAS?”, perguntou o palestrante. “O primeiro fator foi a identidade étnica (no Censo de 2012, 40% da população se declarou indígena). O segundo foi a memória do êxito econômico de Morales de 2006 a 2014, quando Arce era ministro da Economia.”

Segundo Mesa, na mobilização do voto indígena em favor de Luís Arce, o MAS jogou com o medo de que uma eventual derrota do seu candidato representaria um retrocesso na luta contra o racismo, a discriminação e a exclusão presentes historicamente na sociedade boliviana.

“Embora em outros períodos da história recente da Bolívia diferentes governos tenham promovido  a integração e a igualdade, para jovens aimarás e quechuas (povos indígenas pré-colombianos) colou o discurso muitas vezes repetido por Morales e outras lideranças do MAS de que uma espécie de apartheid se instalaria na Bolívia no caso de vitória da oposição”, explicou.

A tarefa de Morales foi facilitada pelo governo da senadora Jeanine Áñez Chávez, que presidiu interinamente o país entre a renúncia de Morales, a realização de novas eleições e a posse de Arce. Seu gabiente era composto, principalmente, por forças políticas e sociais muito conservadoras, algumas delas racistas.

Um de seus ministros, que havia ocupado cargos nos governos do MAS, ressaltou os seus traços raciais para rebater as críticas de que seria uma “quinta-coluna” infiltrada no novo gabinete. A declaração de que era branco e tinha olhos verdes e, por isso, não cabia no figurino do MAS, custou-lhe o cargo de ministro da Mineração, mas não deixou de reforçar o discurso de Morales contra o governo interino.

O outro fator da vitória de Luis Arce representa uma faca de dois gumes para o novo governo. Se, de um lado, reforça a sua legitimidade inicial — pois Arce esteve à frente da Economia durante o período de bonança econômica e distribuição de renda vivido pela Bolívia entre 2006 e 2014 —, de outro eleva as expectativas de que seja possível reviver aquela fase.

Nas palavras de Mesa, “naqueles anos a sensação era de que o governo Morales havia conseguido ampliar as perspectivas de parte significativa da sociedade, formada por indígenas e também por moradores das periferias urbanas, e vencido a luta contra a pobreza.” 

“A partir de 2014, no entanto, esse crescimento arrefeceu e o governo começou a comer gordura. O déficit fiscal saltou de 3,5% do PIB em 2015 para 8% em 2019, as reservas externas minguaram e o investimento público caiu pela metade. Esse cenário precário e frágil se agudizou com a chegada da pandemia”, explicou Mesa.

Para o ex-presidente, o novo governo enfrentará uma realidade econômica e social bastante distinta e bem mais complexa, com  déficit fiscal de até 12% do PIB, redução ainda maior das exportações e das reservas, com provável desvalorização da moeda. “Se Arce pretende reequilibrar a economia, terá de buscar empréstimos no exterior e conversar com o FMI, algo que durante a campanha ele prometeu que não faria”, disse Mesa.

A questão federativa

Outro tema fundamental para o futuro da Bolívia é encontrar um equilíbrio estável na relação entre os diversos departamentos bolivianos, que têm características demográficas, étnicas, sociais e econômicas bastante distintas. “Já temos uma legislação que garante as autonomias regionais, mas falta aplicá-la em profundidade. O centralismo de Evo dificultou esse processo, que precisa avançar para que a federação boliviana se torne uma realidade, evitando conflitos”, afirmou Mesa.

Segundo o palestrante, o ponto nevrálgico está no Departamento de Santa Cruz — o mais rico e dinâmico do país, onde a população indígena tem influência menor do que em outras regiões (como em La Paz e nos demais departamentos do Altiplano) e o MAS enfrenta uma oposição aguerrida. “Santa Cruz tem hoje uma identidade regional e uma massa crítica nos aspectos demográfico, social, econômico e acadêmico. Sua centralidade precisa se refletir na política nacional, mas de forma complementar, não conflituosa. O aprofundamento das autonomias regionais é essencial para construirmos uma Bolívia mais próspera e pacífica”, explicou o historiador.

FHC: Relação entre Brasil e Bolívia deve evitar ideologias

Em seus comentários após a fala de Mesa, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso defendeu que a Bolívia fortaleça a democracia e as instituições de Estado. “Os ventos do mundo não vão na direção de abrir mão da institucionalidade democrática. Na Bolívia (e na América Latina de maneira geral), não devemos poupar esforços para realizar eleições limpas, respeitar os resultados e garantir que os eleitos exerçam seus mandatos de acordo com as regras democráticas, concluindo seus mandatos”, afirmou. 

“O Estado deve dar respostas às questões identitárias, étnicas e raciais, mas também avançar nas questões sociais e na economia. Para combater a pobreza de forma estrutural, é essencial investir em políticas públicas que integrem as pessoas ao mercado de trabalho e ao sistema produtivo”, disse.

FHC também salientou que as diferenças ideológicas entre os atuais governos brasileiro (de direita) e boliviano (de esquerda) não podem prejudicar as relações bilaterais. “Na relação entre países, mais ainda entre vizinhos, não pode haver isso de ser contra ou a favor do governo de outra nação. A relação bilateral não deve ser contaminada por ideologias. O que deve prevalecer são os interesses mútuos e a cooperação”, afirmou o ex-presidente brasileiro.

Para saber mais: 

Leia o livro Bolívia: de 1952 ao Século XXI, que reúne três teses sobre o país vizinho.

Nesta entrevista, intitulada A montanha russa boliviana, o jornalista e analista político boliviano Pablo Ortiz se aprofunda na conjuntura política atual.

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.