Achando a graça: a charge como documento

Achando a graça: a charge como documento

Nesta mostra apresentamos charges da vida política brasileira entre os anos 1990 e 2013. Compreendê-las será fruto do entendimento do contexto político cotidiano noticiado pelos jornais. O prazer da leitura será ainda maior com a percepção de como recursos de linguagem foram usados para amplificar o humor. Criticar sendo espirituoso é uma arte, e para isso os chargistas apuram as técnicas do desenho e do texto.

Charge, palavra de origem francesa, significa carga, o que é expresso pelo exagero nos traços de caráter ou nas tintas de um evento, a fim de torná-los grotescos. É o gênero textual que expressa uma visão dos fatos por meio de representação satírica (lembrando que os sátiros são divindades mitológicas que desfilam no ruidoso cortejo de Dionísio, deus do vinho. Eles curtem a malícia, o riso e a patifaria, e seu espírito está sempre presente nesses quadrinhos).

As charges buscam o lado oculto de uma situação para criticar as imperfeições de suas personagens, comumente pessoas públicas. Ironizam fatos, ideias e ocorrências. Espreitam o cotidiano para interpretá-lo de forma cômica, usando achados da língua para abrir o caminho do riso.

Uma homenagem a Ana Maria de Almeida Camargo, que deu o mote para esta exposição.

Voto de confiança

No dia 23 de julho de 1993, a imprensa comunica que o presidente Itamar Franco pediu um voto de confiança para enfrentar a situação inflacionária do País. Havia apenas dois meses que FHC tomara posse no ministério da Fazenda e eram grandes as incertezas sobre um novo plano econômico.

Ao pedido metafórico de uma “dose de otimismo”, o garçom FHC responde preparando uma batida de abacaxi, que por sua vez metaforiza algo difícil de ser realizado.

Remédio doce

Fernando Henrique, ministro da Fazenda de Itamar Franco, desenha o Plano Real e em 14 de setembro de 1993 faz um balanço dos três primeiros meses de gestão em entrevista coletiva, quando declara que dessa vez o processo será diferente. A charge resume a fala de FHC e menciona o pacote argentino de estabilização monetária, o Plano Cavallo, implantado em 1991 e batizado com o nome do seu criador, o ministro Domingo Felipe Cavallo.  

O humor é gerado por meio da homofonia entre o nome do ministro e o termo que designa os equinos na língua portuguesa. A fala alude também ao provérbio “o castigo vem a cavalo”, que significa que a punição sempre chega rápido – uma ironia sobre a possibilidade de o novo plano não ser uma solução, como ocorreu em terras argentinas.  

E se der ruim?

O ano é 1994 e está em curso o processo de implantação do Plano Real. No Congresso se aproxima a votação para aprovar o Fundo Social de Emergência e FHC ensaia deixar o ministério da Fazenda para concorrer à presidência da República, o que ocorre em 30 de março. A nova moeda é implantada no primeiro dia de julho.

O presidente Itamar Franco hesita em aderir ao Plano Real e o texto usa um jogo de ambiguidade entre o Real (moeda) e a expressão “cair na real”, que na gíria significa abandonar as ilusões e encarar a realidade dos fatos.

Com a ajuda do Real

Lula está na frente da corrida presidencial de 1994, mas uma aliança entre os partidos PSDB, PFL e PTB pode ameaçar o petista. A candidatura de Fernando Henrique começa a ganhar velocidade com o início do Plano Real, ainda na etapa da URV, que criava uma referência estável para preços e salários.

FHC pilota uma motocicleta enquanto os outros possíveis candidatos, Lula e Paulo Maluf, correm a pé (Maluf acabou não se candidatando). A motocicleta é a metáfora do Plano Real, o que se percebe pela placa com a sigla URV.

 

Fogo amigo

Em setembro de 1996, os jornais repercutem críticas feitas por Sergio Motta ao ex-presidente Itamar Franco no programa televisivo “Jô Soares Onze e Meia”, o que gera uma reprimenda de Fernando Henrique Cardoso ao ministro das Comunicações. Motta era um dos principais quadros políticos do PSDB, conhecido por não ter papas na língua, e suas declarações contundentes faziam a festa dos cartunistas.

Sergio Motta passa por uma zoomorfização, sendo representado como um cão raivoso que FHC tenta conter, alegando que, apesar de bravo, ele sabe usar o jornal, em uma fala de duplo sentido, outro poderoso recurso de linguagem.

 

Tem chovido…

O Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, vitima lavradores ligados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O episódio causa grande comoção no Brasil e no exterior.

Pás, enxadas e ancinhos caem do céu sobre Fernando Henrique, e ele lamenta que não chova canivetes, expressão popular para uma situação adversa. A metáfora da chuva de objetos agrários perigosos é contraposta ao irônico eufemismo do presidente, que busca atenuar a realidade do momento.

 

Fica, FHC

A base do governo, em outubro de 1996, busca viabilizar a possibilidade de reeleição do presidente, além de governadores e prefeitos, por meio de uma emenda constitucional que será aprovada no ano seguinte.

O humor aqui se produz pela metáfora feita entre a marca de fósforos “Presidente”, que tem duas cabeças: um só palito com duas possibilidades de uso.

 

Sarney de novo?

No final de agosto de 1997, os jornais comentam os gastos que o governo pretende fazer no ano seguinte, data da próxima eleição para a presidência da República. Ao mesmo tempo, surge o rumor de que Sarney estaria disposto a concorrer ao Palácio do Planalto, caso seu partido o lance candidato. 

FHC monta um cavalo puro-sangue, numa possível referência às melhores condições que teria na eleição, por disputá-la sendo presidente da República. Por sua vez, José Sarney cavalga um caranguejo que, por metonímia, refere-se ao mangue maranhense.

 

 

O futuro a Deus pertence

Em 2 de março de 1998, o jornal traz a notícia da convenção do PMDB, que irá aceitar ou negar o apoio à reeleição de FHC; nesse momento ele certamente deve estar avaliando as possibilidades do futuro. 

FHC enumera o que de mais sombrio poderia lhe ocorrer, quando a primeira-dama interrompe a ladainha com um corte seco. O efeito de humor é produzido pela quebra da expectativa entre a fala das personagens, gerada pela diferença de tom, o que produz uma antítese cômica entre o otimismo do presidente e o realismo ácido de sua esposa.

 

 

E agora?

No dia 11 de setembro de 1998, a manchete do jornal O Globo anuncia: “Bolsa desaba, dólares fogem e BC aumenta juros para 49,75%”. A Folha de S. Paulo comenta a tentativa do Banco Central de impedir a fuga de capitais. A crise econômica russa afeta o Brasil e o Real – o momento é alarmante.

O mundo está caindo sobre a cabeça de FHC e ele avalia o fato eufemisticamente como “muito chato”, vindo daí o humor do quadrinho. O tamanho da encrenca está refletido nas dimensões da esfera terrestre e na rapidez da sua trajetória de queda.

 

 

Salário mínimo, temor máximo

A partir de 1995 o aumento do salário mínimo passa a ser divulgado depois do Dia do Trabalho, o primeiro de maio, e o anúncio, muito esperado, é sempre alvo de especulações da imprensa e de todo o País. No início de 1999, momento da charge, o Brasil sente os efeitos negativos da desvalorização do Real e, em especial, do aumento do desemprego.

O primeiro balão de fala simulou um diálogo com o líder do PT, e o nome de Lula foi substituído por uma expressão alusiva a uma característica física. O uso desse recurso deixa a frase engraçada, pois remete imediatamente à pessoa e gratifica o leitor que matou a charada. O último quadro oferece mais um motivo de riso, dessa vez mais melancólico: FHC provoca a piada, mas não espera que os ministros concordem tão prontamente.

 

Dança das cadeiras

Em julho de 1999, terminado o primeiro semestre do segundo mandato, FHC iria anunciar o novo ministério; nos jornais, comentava-se a dificuldade do presidente em compor a equipe.

A charge trabalha com uma metáfora que virou expressão popular: a associação entre descascar uma fruta áspera e espinhenta com problemas difíceis de resolver.

 

 

Inimigo íntimo

Luiz Inácio Lula da Silva vence o segundo turno das eleições presidenciais em outubro de 2002. A passagem se dá tranquilamente e cada área do governo FHC entrega aos ministros seguintes o “livro de transição” com as informações necessárias para que trabalhem.

O autor usa o recurso da personificação, mas de maneira inversa. Em vez de dar características humanas a outros seres, ele cria um animal (feroz) para representar a inflação e suas consequências, ou seja, os problemas que poderiam ocorrer no mandato seguinte.

 

 

O mundo mudou

A questão em pauta são as jornadas de junho de 2013, iniciadas a partir das manifestações contra o aumento das passagens de metrô e ônibus no Estado de São Paulo. FHC diagnostica a influência da internet e diz que a comunicação virtual se transforma em ação no mundo físico.

Ao amplificar o descontentamento da população, a comunicação virtual é metaforicamente referida como um fio desencapado que provoca choques ­– manifestações de protesto no mundo real que surpreendem a sociedade.

Ficha técnica

Ficha técnica

Concepção

Fundação FHC e Grifo Projetos

Pesquisa e textos

Laura Mollo

Sebastiana Cordeiro

Silvana Goulart

Consultoria

Prof. Frederico Barbosa

Edição de texto

Sérgio Fausto

Silvana Goulart

Revisão

Alessandra Siedschlag

Apoio

Renata Bassetto 

Montagem

Sintrópika

Identidade visual

Sintrópika