No sexto andar de um prédio imponente, no centro de São Paulo, está a Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso. É de se imaginar que os livros que a compõem façam parte de um conjunto muito maior, conservado na Fundação que leva o nome do presidente, cuja vocação é a de promover a produção e a reprodução de conhecimento em torno de questões sociais e políticas sobre o Brasil, sobre o mundo, sobre o Brasil no mundo. Como toda instituição dotada de uma missão como esta e da função de “lugar de memória”, conservando o que foi e projetando o que será, a biblioteca não pode deixar de preservar e disponibilizar os livros que lhes são afins.
Desde a sua situação física, no interior da Fundação, até o título que leva, a Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso parece ter como ponto de partida do seu
ordenamento a representação de um presidente e de uma “primeira dama” leitores – e, não menos, escritores. É claro que uma competência como esta não se restringe ao momento político da trajetória de ambos, embora, à primeira vista, a biblioteca esteja relacionada mais imediatamente a ele, razão de ser da própria instituição que a abriga.
Muito já foi dito sobre a relação entre cultura letrada e política, nos dois sentidos que a expressão dá a entender: o dos usos das letras na política; e o dos usos letrados da política. O primeiro refere-se a práticas um tanto antigas, relacionadas a um regime discursivo marcadamente retórico, num tempo em que a coesão nacional se expressava, antes de mais nada, na história e na literatura da nação. O segundo corresponde à profusão de discursos que decorrem da própria prática política e se apoiam num universo letrado particular que lhes dá sentido, num momento histórico preciso.
Em ambos os casos, está em jogo a própria representação do poder. Ela não deixou de estar estampada, na contemporaneidade, na presença de bibliotecas e de livros no ambiente em que se mostram os chefes de Estado. O caso francês é emblemático e revela algumas modalidades, mais ou menos orientadas, da dimensão simbólica dessas representações.
Em 1981, a fotografia oficial do presidente da república francesa mostrava François Mitterrand segurando, em suas mãos, um volume dos Ensaios de Montaigne. A
foto de Gisèle Freund flagra o presidente como se tirasse os olhos do livro e os voltasse diretamente para a câmera, com a imponente biblioteca do Eliseu ao fundo. Freund, então aos 87 anos, havia antes fotografado André Malraux, Jean-Paul Sartre, Marguerite Yourcenar e Samuel Beckett, entre outros, sugerindo talvez, com a fotografia oficial do novo chefe do Estado, a sua introdução no rol de figuras do mundo letrado, na qualidade explícita de leitor.
Muito antes, Charles de Gaulle, homem de “letras e armas” por excelência, já havia deliberadamente escolhido a biblioteca para seu retrato oficial, feito por Jean-Marie Marcel. Numa continuidade sem dúvida desejada, Georges Pompidou também se fez fotografar no mesmo cenário por François Pages, assumindo irrecusavelmente o legado simbólico de seu predecessor.
Passadas muitas décadas, a fotografia oficial de Emmanuel Macron teve excluída a imagem de fundo da biblioteca em prol de uma janela aberta para os jardins do Eliseu, onde seu predecessor, François Hollande, havia posado quatro anos antes. O livro não deixa, no entanto, de estar presente na cena de Macron: imortalizando o lugar em que trabalha, na sua mesa do Palácio do Eliseu estão postos dois smartphones (um deles reflete na tela a estatueta do galo, símbolo da França), dois notebooks, um relógio, dois livros empilhados (Nourritures terrestres, de André Gide, e Le Rouge et le Noir, de Stendhal) e um livro aberto, Mémoires de guerre, de Charles de Gaulle. Em tempos de marketing político, nada, nesse clichê de Soazig de Moissonière, é gratuito, sobretudo o livro de De Gaulle aberto sobre a mesa, em coerência com a representação desejável de uma presidência forte, em “letras e armas” modernas.
O percurso das representações dos retratos oficiais dos presidentes franceses pode levar a conclusões imediatas, é claro, sobre a figura do homem político junto aos símbolos da nação, particularmente expresso na presença do livro e das bibliotecas, até o cúmulo de saturação simbólica provocada pela última foto. As especificidades do caso francês – sobretudo a disposição sociocultural encontrada em práticas de escrita, de edição e de leitura bastante sólidas, na França – explicam muito do efeito potencialmente provocado na recepção das imagens oficiais de seus presidentes. Na sucessão desses retratos, a biblioteca deixa, pelo visto, de ser apenas o quadro de fundo, quando sua representação se completa tanto pela presença do livro aberto quanto do gesto de leitura.
De todas as fotografias oficiais de presidentes da república brasileira – advogados e militares, em sua grande maioria –, a única que tem por cena de fundo uma biblioteca, a do Palácio da Alvorada, é, justamente, a do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, realizada por Getúlio Gurgel, em 1999. Isso não diz nada, em princípio, do valor intelectual da figura do presidente, mas a singularidade desta foto na galeria de retratos oficiais diz algo sobre o valor dos livros na representação do poder presidencial no Brasil. Em todo caso, uma vez presentes na fotografia, eles participam da dupla dimensão exibida nesses retratos: a da figura pública, na presença imaterial do Estado encarnada em seu “chefe”; e da figura privada, particularizada no corpo físico do retratado.
A Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso funciona também como um indício dessa dupla dimensão, materializando as representações de um presidente e de
uma “primeira dama” inseridos através de seus livros, no seu tempo. É claro que a carreira acadêmica, os títulos honoríficos, o pertencimento a instituições nacionais e internacionais são representações que falam por si mesmas quanto à consagração letrada dessas duas figuras públicas. No entanto, essas evidências, ao invés de nos situar dentro da biblioteca, nos levam exclusivamente para fora dela e esvaziam os sentidos que ela, no seu silêncio e na sua presença monumental, encerra.
O convite aqui, portanto, é outro: entrar na Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso e perscrutar a lógica que governa sua ordenação e as representações que se destacam da simples presença dos livros nela reunidos, variando os pontos de vista, dentro e fora dela. A maior parte desses livros traz, sem dúvida, os temas que mobilizaram o sociólogo e a antropóloga, ao longo de muito tempo. Sinalizam fortemente também para a “entrada na política” de ambos, sem que deixassem de consumir e adquirir livros, e isso muito além das obras de ciências sociais e política, incluindo os livros de culinária, de arte ou de literatura, como grandes leitores com interesses muito largos que visivelmente foram, e que FHC certamente ainda é.
A ordenação biográfica
Sobre essa biblioteca, muito bem conservada e catalogada, três coisas devem ser ditas para que se possa seguir neste ensaio. Primeiro, o seu acervo é composto de
impressos – livros, periódicos, folhetos, teses, dissertações – pertencentes aos Cardoso, parte deles recebidos durante o “período presidencial”, entre 1995 e 2002. Como a biblioteca costuma receber ainda muitos livros (cerca de 25 títulos por mês), foram e até hoje são conservados somente aqueles que correspondem a um determinado perfil, no interior de um critério seguramente arbitrado pelos interesses daqueles que lhe dão os nomes e que se inscreve na própria vocação da Fundação, como foi dito: produzir e reproduzir o conhecimento em torno das questões envolvendo o desenvolvimento e a democracia no Brasil, em sua relação com o mundo. Segundo, dela constam aproximadamente treze mil volumes classificados, que se completam com mais alguns mil que FHC guarda em casa – certamente os livros que, por razões diversas, deseja ter sob a mão e os olhos. Por fim, a biblioteca não pode ser arrancada do acervo muito mais largo de objetos, não exclusivamente textuais e iconográficos, que a Fundação abriga, embora, aqui, deva ser submetida a uma operação forçada de isolamento para ser pensada.
Sabe-se que biblioteca é ordem, ou seja, é um espaço por definição regido por um princípio ordenador, e isso porque concentra, materialmente, discursos escritos. É certo que a “ordem do discurso” não é exclusiva à realidade material dos discursos escritos. Porém, a afirmação de uma ordem, expressa em princípios de classificação, ordenação e distribuição dos discursos, se relaciona muito mais estreitamente com o caráter de composição, exigido na própria existência física do escrito, do que com a qualidade de acontecimento do oral. Assim determinada pela fixidez da escrita, a ordem do discurso tem por corolário a ordem dos livros.
Partindo, assim, de um dispositivo biográfico de ordenação – trata-se da biblioteca de Fernando Henrique e Ruth Cardoso –, é possível assumir um ponto de vista “de dentro para fora”, dos critérios classificatórios para a “história vivida” de seus “proprietários”. Todo um conjunto de indícios, em torno da ordenação biográfica da biblioteca, se encontra, é claro, na profusão de materiais relacionados à trajetória de ambos, que vão desde a correspondência, os artigos e entrevistas publicados em jornais e revistas, as fotografias, passando por objetos, na forma de presentes recebidos, até os próprios discursos produzidos em ocasiões e circunstâncias as mais diversas, inclusive oficiais. Aqui, a relação da biblioteca com o resto do acervo conservado na Fundação assume um valor heurístico que dá coerência ao todo.
No entanto, a biblioteca não participa imediatamente da classificação cronológica imposta aos materiais do acervo, de modo geral, que é tripartite, com centralidade
destacada para os anos de presidência: 1931-1994; 1995-2002; e período póspresidencial. O primeiro segmento, composto de documentação textual e iconográfica,
recobre a infância, os estudos, a vida acadêmica, a família, a pesquisa e a produção científica de FHC até a campanha presidencial de 1994, incluindo o período de “entrada na política”, quando foi senador e ministro da Fazenda. O segundo segmento reúne o material, majoritariamente textual, relativo aos dois mandatos presidenciais, caracterizado, significativamente, segundo a lei, como “documentação privada de interesse público”. Trata-se de documentos que vão desde a correspondência oficial, passando impressos de campanhas e movimentos sociais até mensagens enviadas por cidadãos. Essas peças completam um acervo muito mais volumoso doado ao Arquivo Nacional. Por fim, o terceiro segmento, pós-presidencial, relaciona-se à produção de FHC como professor universitário, conferencista, articulista, escritor e conselheiro de entidades nacionais e internacionais.
Pelo visto, se o critério de ordenamento biográfico impera, naturalmente, no acervo da Fundação Fernando Henrique Cardoso, no caso específico dos livros, a
centralidade do “período presidencial” fica apenas sugerida (não fosse pela presença de muitos livros relacionados exclusivamente a Ruth Cardoso ou à história em comum vivida por eles antes). Em todo caso, a biblioteca encerra uma riqueza muito variada de relações, de interesses, de histórias pessoais. Os livros são, tal como a documentação do arquivo, peças “privadas”, embora dotadas de valor de preservação por razões de “interesse público”. Isso significa que o seu conjunto não foi necessariamente construído na e pela política, apenas participa dela e se organiza, no que toca à sua conservação, em torno dela.
Pode-se supor, assim, que a seleção de livros reunidos na biblioteca seja coerente com um universo referencial e formal originado de escolhas de ordem privada, e que não deixa de ser encontrado, inclusive, nos “discursos políticos” – aqueles que tanto o presidente quanto a “primeira dama” formularam no bojo de projetos ou ações que implicavam diretamente as posições que ocupavam. Mesmo sendo muito determinados, na sua confecção, por circunstâncias e constrangimentos de ordem política e social, estes “discursos políticos” podem mostrar a força particular da cultura letrada de seus autores, expressa, como dito, num determinado uso da língua e no universo particular de referências (representações, categorias, conceitos) mobilizadas. Em suma, apesar do seu teor estrategicamente orientado, na era do marketing político, uma particularidade autoral, por mais “constrangida”, não deixa de estar presente nos “discursos políticos” que formularam, em situações diversas, apontando para um tipo de compreensão do mundo marcada por determinadas referências históricas, geográficas, sociológicas, artísticas, literárias etc. que, pode-se dizer, são as suas.
É claro que os livros e artigos que escreveram e publicaram Fernando Henrique e Ruth Cardoso como cientistas sociais, antes da “entrada em política”, concentra esse mesmo conjunto de escolhas formais e referenciais que está potencialmente disperso no conjunto de livros de que foram usuários, muito mais do que simples “proprietários”. Este é o primeiro sentido, e certamente o mais forte deles, que define a biblioteca.
A dimensão subjetiva da leitura e da “arrumação” dos livros
Operando mais uma vez de fora para dentro da biblioteca, pode-se seguir uma dimensão mais individualizada, subjetiva, da sua constituição. Trata-se de entender a
relação dos nomes próprios “Fernando Henrique” e “Ruth” com os livros. Se, como visto, a representação de um presidente da república e uma “primeira dama” leitores (e escritores) ordena um sentido primeiro da biblioteca, resta, no entanto, recuperar, o quanto for possível, a dimensão subjetiva declarada de suas leituras e de suas relações com os livros.
Os Diários da presidência fornecem elementos importantes para isso, em inúmeras passagens, durante os anos que a narrativa recobre. Muito frequentemente,
como conta o então presidente, pessoas mais ou menos próximas lhes ofereciam livros, presentes naturais, sem dúvida, para leitores que eram. Foi assim que numa “noite agradalibíssima”, no Palácio do Planalto, escreve FHC, às vésperas do Natal de 1995, eles receberam a visita de quatro amigos: “todos me trouxeram livros de presente”.
À presença ostensiva de livros, tanto no Planalto quanto na casa de Ibiúna, corresponde a prática, recorrentemente descrita, de “arrumá-los”. Trata-se, como
confessa FHC muitas vezes, de uma forma de repouso: “tentei dar um pouco de ordem a alguns livros, é difícil, mas é um semidescanso.” A recorrência pode ser considerada parte da rotina: “O único fato alheio à nossa rotina de arrumar livros e ver as coisas aqui do Palácio foi a visita do Tom Cavalcante.” E o caráter trivial do gesto rotineiro de arrumar ou de folhear os livros é declarado: “passamos o dia arrumando livros, trabalhando, nada de especial”; “Enquanto arrumava os livros, peguei vários para folhear, mas nada em mais profundidade do que isso. Foi um dia tranquilo.”
A leitura também participa dessa lógica de “matar o tempo”, nos poucos momentos de liberdade ou de lazer que resta a um presidente. Os livros grandes, que
exigem leitura intensiva, por vezes não têm vez na rotina: “Embora seja um livro muito interessante, é grande e não tenho tido tempo suficiente para isso. De qualquer maneira, não deixei o hábito de ler.” É claro que a leitura extensiva de jornais e revistas, ou a leitura fragmentária, como a da poesia ou dos livros de arte que se folheiam, estava sempre na ordem do dia, em especial dos fins de semana: “Estamos […] lendo jornais, alguns papéis. Li muitos livros no sábado e domingo, um de poesias do Neruda com fotografias das casas dele, um livro de memórias que me interessou muito, do Augusto Frederico Schmidt. Li também um panfleto muito bem-feito pelo presidente do Queens’ College, chamado [John] Eatwell […] Enfim, passamos um dia mais intelectualizado.”
Acontece que, para grandes leitores, é difícil a leitura deixar de ser intensiva. Em seus Diários, FHC qualifica muitas vezes os livros que leu, os compara, os relaciona,
como em rápidas resenhas informais. E não deixa de falar da força afetiva que exercem sobre ele, expressa em particular numa passagem em que se refere a José Sarney: “Ambos temos paixão por livros e outras coisas mais, mas a nossa biografia não tem coincidências.” A coincidência biográfica viria, anos depois, e mais uma vez em torno de livros, quando Fernando Henrique Cardoso ingressa na Academia Brasileira de Letras, em que Sarney já ocupava uma cadeira.
Com essas proposições recorrentes, recolhidas dos Diários, formuladas na forma de uma autópsia do próprio cotidiano sob a carga do trabalho da “rotina presidencial”, entende-se que a leitura permitiu ao então presidente instituir uma outra relação com o tempo. E é de se supor que assim fosse também para a “primeira dama”, uma vez que ambos estavam, nesse momento de suas vidas, fora da rotina acadêmica que conheceram por muitos anos, com sua temporalidade própria, cujo ritmo é ditado pelo funcionamento intramuros da instituição universitária, que exige (ou deve exigir) muita leitura e escrita consequente.
A fotografia oficial de François Mitterand com um volume dos Ensaios de Montaigne nas mãos serve mais uma vez, aqui, no seu intuito de significar a consagração
do gesto de “pausa”: pausa, aliás, muito longa, se a metáfora fotográfica sugerir a suspensão da leitura por quatorze anos, durante os dois mandatos presidenciais que se inauguravam com ela. Em todo caso, Mitterand recebeu no Eliseu centenas de escritores com os quais conversou, essencialmente, de literatura, e encarnou a figura de um chefe de Estado que lê e que se isola para ler, até mesmo em momentos de crise política – como se sabe por um episódio, contado por seu conselheiro especial, o escritor Jacques Attali, em que foi encontrado lendo Lamartine. Nessas imagens consagradas, parecem estar sempre representados dois tempos, sendo um a pausa do outro: o do leitor e o do presidente.
Em termos ainda relacionados ao tempo, o presidente Barack Obama, em entrevista a The New York Times, em 2017, qualifica a sua relação com a leitura: ela lhe
servia, dizia ele, para tornar o tempo mais lento, em meio ao tempo rápido dos acontecimentos e ao turbilhão de informações que lhe chegavam numa escala
inimaginável. Tratava-se também, como explica, de se conectar com o “mundo exterior”. Mais do que tornar o tempo mais lento (“the ability to slow down”), o valor da leitura para Obama – e certamente aqui se trata do efeito da leitura de ficção – estava na possibilidade de sair de si, de assumir perspectivas outras, pontos de vistas de outros (“the ability to get in somebody else’s shoes”).
É mais do que compreensível, nessas falas, o caráter encerrado, fechado sobre si mesmo e suspenso no tempo, da posição presidencial. É ela que faz com que o presidente leitor inevitavelmente assuma a suposta liberdade que o “outro tempo”, o da leitura, oferece.
A inscrição acidental na ordem dos livros
Lado a lado com a monumentalidade irrecusável dos livros, dispostos em formas discursivas e materiais bem conhecidas, uma materialidade fragmentária e acidental se impõe: a das incursões manuscritas, em marginálias e dedicatórias. Se a primeira reforça a “ordem biográfica” da biblioteca, a segunda confirma, em certo sentido, a ordem fortemente “autoral” sugerida em cada um dos livros, fornecendo muito da matéria a partir da qual se pode pensar suas funções e os seus usos sociais.
Esses resíduos manuscritos, por mais que “acidentais”, ou seja, circunstanciais e fragmentários, imprimem códigos de natureza diversa à suposta naturalidade do gesto organizador da biblioteca, e permitem observações dotadas de alguma densidade sociológica e histórica. Isso porque tanto as marginálias quanto as dedicatórias transformam a biblioteca em campo de interrogação sobre a construção tensa, sob a força do nome próprio, de figuras consagradas, como cientistas sociais e figuras políticas que foram Fernando Henrique e Ruth Cardoso, frente à trivialidade das relações da vida privada – aliás, tantas vezes sugerida, como visto, à leitura dos Diários.
É nesse sentido que as marginálias e as dedicatórias singularizam materialmente o objeto livro, introduzindo a manuscritura na “ordem impressa”, material e editorial, imposta ao leitor. A singularidade de cada exemplar marcado é, muitas vezes, cifrada, cabendo a quem os manuseia hoje, para decifrá-la, a possibilidade de imaginar as condições em que as marcas se produziram.
1.A memória de uso do livro
Não surpreende que a jovem bibliotecária que cuida da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso domine claramente os códigos das marginálias, distinguindo
rapidamente as marcas “dele” e as “dela”, que em alguns livros ocupam a mesma página. Lamenta não ter conhecido Ruth, mas pelo visto, ela a conhece como poucos, nas inscrições marginais que deixou nos livros.
Enquanto Fernando Henrique marcava os livros com caneta, Ruth Cardoso costumava intervir na página com lápis, sublinhando as passagens importantes, e comentando ou simplesmente sinalizando o que lera, com um termo ou outro, no espaço marginal do texto. Por sua vez, é raro encontrar uma intervenção feita por FHC com palavras: nas margens dos livros que leu aparece, muitas vezes, um símbolo, rabiscado a tinta, como um jogo-da-velha, por vezes único, por vezes duplicado (denotando, talvez, uma dupla atenção). Nota-se, também, que ele costumava dobrar a pontinha da página dos livros, certamente para indicar onde parou a leitura, ou para sinalizar uma página que contivesse algo que considerasse importante. Hoje, a cada vez que encontra uma dessas dobras, a bibliotecária se empenha, cuidadosamente, em desfazê-la, impondo, como é de se esperar, o protocolo de conservação do livro à memória de uso do texto lido.
2. A marca da memória compartilhada
Por sua vez, as dedicatórias vêm desestabilizar um pouco do sentido unívoco suposto na presença ostensiva dos dois nomes próprios na biblioteca. Os textos das
dedicatórias têm uma tipologia variada, que se presta tanto à reconstrução imaginativa de suas circunstâncias quanto a uma definição mais sociológica da prática de dedicar livros. Considerando, assim, o seu caráter subjetivo, fragmentado, e sua inserção no espaço fechado e imponente do livro, é possível propor uma tipologia das dedicatórias encontradas nos livros da biblioteca, tendo por base a descrição física dos seus vestígios e a suposição de seus efeitos para um leitor que tem, hoje, um desses exemplares nas mãos.
Segue-se aqui, de preferência, com essa tipologia das inscrições encontradas nos livros, mais conveniente do que a lógica relacional dos nomes daqueles que as assinam, que acabaria por inundar este ensaio com uma grande carga subjetiva. Por mais que ela tenha centralidade nas expressões de afeto, de amizade ou de admiração que tipificam as dedicatórias, de modo geral, trata-se de fazer apenas com que indiciem tipos de relação estabelecidas na “história vivida” por Fernando Henrique e Ruth Cardoso.
Há, como se sabe, dois tipos de dedicatórias. Primeiro, há aquelas escritas pelo próprio autor do livro, que são maioria na biblioteca e costumam levar a marca de uma memória compartilhada. Elas são encontradas ao longo de toda a trajetória dos Cardoso, sobretudo muito antes de FHC tornar-se chefe de Estado, indicando simplesmente que eles participavam da economia de trocas simbólicas e de materiais impressos, reguladora do mundo acadêmico. Essas dedicatórias não deixam, no interior dessa lógica, de manifestar os sentimentos afetuosos – por vezes, abertamente “fraternais” – dos autores dos livros dedicados, que, muito além das convenções formais, podem estar, de fato, na base das trocas então efetuadas.
Na grande maioria das dedicatórias dirigidas a Ruth e FHC antes de 1994, são manifestos a “amizade”, a “admiração”, o “afeto”, em expressões por vezes hiperbólicas: “com toda a melhor amizade (da admiração nem se fala)”. Nesse mesmo momento, há também algumas dedicatórias que expressam “apreço”, “admiração”, “estima”, vocabulário mais próximo da formalidade acadêmica da troca de elogios. Mas esse tipo de expressão mais formal, nas dedicatórias, acaba muitas vezes sendo concluída também com uma marca de afeto (“abraço afetuoso”), mesclando o registro pessoal ao vocabulário mais formal.
Ainda no interior das convenções do “gênero”, muitas dedicatórias do próprio autor são autorreferenciadas, ou seja, remetem ao livro que se tem nas mãos: “A Ruth e FH, este livrinho que só para em pé quando aberto.” Há, por vezes, nesse tipo de dedicatória – visivelmente mais jocosa, menos séria –, referências que sugerem trocas prévias: “A Fernando e Ruth, pelo estímulo e amizade que o prefácio reafirma, exagerando talvez em atribuir-lhe – ao Fernando – a co-responsabilidade pelas minhas besteiras. Com grande afeto.”10 Este tom das dedicatórias encerra, hoje em dia, o que antes, no regime retórico que regulava os discursos até o século XVIII, era tido por “modéstia afetada”, muito característica dos paratextos introdutórios dos livros. É assim que escreve o historiador Sergio Buarque de Holanda, em 1979, no exemplar de Tentativas de Mitologias, que dedica “a Fernando Henrique”: “mais estas tentativas e o abraço do Sérgio”.
Ainda no mesmo registro jocoso, mesclando epístola e dedicatória – aliás, dois paratextos obrigatoriamente presentes nos livros antigos, sob o regime retórico –, alguns autores interpelam diretamente o destinatário: “Caro Fernando, mais uma vez você verá que não consigo desembaraçar-me do delirante otimismo. Oxalá tenho 10% de razão (já que são tantas as porcentagens neste raio de livro). Abraço cordial.
As dedicatórias são, em grande maioria, convencionalmente dirigidas, na ordem, a “Ruth e Fernando Henrique”. Esta ordem, uma vez invertida, permite também a ironia de Darcy Ribeiro sobre o traço relacional distinto, entre ele e ela: “Para Fernando Henrique e Ruth, com abraços e beijos respectivamente.”12 Em outra dedicatória sua, Darcy Ribeiro indica o protocolo de leitura do livro oferecido, ainda sob o signo da ironia amical: “Para Ruth ler pro Fernando Henrique”.13 A inscrição se lê, de cima para baixo, com “Para Ruth” no topo, e “Fernando Henrique” no final, logo antes da data, “Brasília, Agosto 96”, e da assinatura. Tudo parece se passar no meio, no “ler pro”, fazendo com que cada um dos dois destinatários pudesse assim se prefigurar separadamente o seu próprio modo de receber o livro.
A tópica da “velha amizade” aparece sob vária formas, particularizada muitas vezes na representação de uma “história compartilhada”: “a velha amizade de muitas
lutas”;14 “esta lembrança de Paris”;15 ou ainda: “À Ruth e ao Fernando com as saudades (Brooklin, Londres, Paris)”. Esta última dedicatória, de Bento Prado Júnior, ocupa também a página de modo singular, elencando, de cima para baixo, as cidades rememoradas, degrau por degrau, como se exigisse uma pausa imaginativa entre cada uma delas.
A biblioteca guarda ainda muitos livros com dedicatórias que rememoram a atividade dos Cardoso como professores e orientadores, na universidade. Uma delas,
dirigida a FH em 1994, refere-se à “missão de ensinar”, que se estendia naquele momento à “missão de servir” do novo presidente.17 O percurso foi longo, dizem algumas inscrições, como a que é dirigida ao “mestre e amigo” Fernando Henrique, em memória do “nosso velho seminário do ‘Capital’”.18 Em 1995, numa dedicatória afetuosa de um livro seu, Jorge Caldeira manifesta também a sua gratidão aos Cardoso, amplificada na repetição: “Vocês são os autores do autor.”
Em particular, Ruth Cardoso conta com inúmeras dessas manifestações de agradecimento e, não menos, de afeto acentuado por parte de ex-alunos, tanto em
dedicatórias impressas em teses e dissertações quanto em inscrições manuscritas em livros: “Ruth, minha querida professora, orientadora sempre, amiga, sempre uma referência para a vida. Beijos imensos.”
Das relações acadêmicas dos Cardoso, pelo que dizem as dedicatórias dos livros, uma das mais constantes e duradouras parece ter sido a de Florestan Fernandes, que cuida, inclusive, de enviar livros aos amigos, em 1964, durante seu exílio: “Para Ruth e Fernando Henrique, com votos ardentes para que retornem rapidamente ao Brasil, com a amizade ainda maior de Florestan Fernandes.”
Há poucos exemplares, na biblioteca, de livros oferecidos pelo próprio autor fora do círculo acadêmico. No entanto, neles, a expressão de afeto pode ser semelhante às das “velhas amizades” e “histórias compartilhadas”, em registro igualmente informal. É assim que D. Lucinha oferece o seu livro de culinária, em 2002, ao “Presidente” e à “Dona Ruth”, “com carinho de mãe mineira”.
Nesses livros oferecidos aos Cardoso depois de 1994, uma vez o presidente investido, surgem dedicatórias mais referidas à circunstância, por mais que as expressões
de amizade e de afeto ainda permaneçam. Um exemplo expressivo, nesse sentido, é o livro que traz a dedicatória de Roberto Campos, datada do primeiro ano do mandato do presidente: “Para Fernando, com esperança de uma correspondência ideológica cada vez maior, e com votos de êxito na tarefa de salvação nacional, um abraço afetuoso”.
Em geral, durante “período presidencial”, o tom das dedicatórias, mesmo no interior da oferta “privada” de livros, tende a ser mais formal e protocolar. Nota-se, ainda, uma certa obrigatoriedade, imposta pela força da posição pública dos destinatários, de tocar em questões relacionadas ao Brasil. Muito convenientes, aliás, na relação com os próprios livros dedicados: “Ao Senhor presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, e à Dra. Ruth, esse bocadinho de busca daquilo que não pode ser encontrado: o mistério chamado Brasil. Com admiração.” Ou ainda, com formalidade mais estreita, vocabular e temática: “Ao eminente presidente Fernando Henrique, um pequeno livro sobre Direitos Humanos, fundamento da Democracia. Cordialmente.” Eduardo Suplicy, que oferece o seu livro Renda de cidadania, no aniversário do então presidente, em 2002, disserta longamente na dedicatória sobre o tema de que trata o livro, interpelando diretamente o homem político. As primeiras linhas já dão o tom da mensagem que ocupa toda a folha de rosto: “Ao Presidente Fernando Henrique por seu aniversário. Para que o cartão cidadão não se torne cartão exclusão, será muito importante que seja em breve considerada a sua validade para os 170 milhões de brasileiros […]”.
Há, no entanto, algumas dedicatórias que, mesmo tendo sido formuladas no interior do “círculo político”, não se alinham ao tom protocolar nem às exigências tácitas
de abordagem de grandes temas. É assim que Mário Soares dedica aos Cardoso o livro Entretien, entrevista sua publicada na França em 2002 (e “presenteado em Lisboa”, como ressalva). Na dedicatória, o epíteto que atribui a FHC, “grande Presidente”, não impede a manifestação de afeto subsequente dirigida ao casal: “queridos amigos, admirador de ambos.”
É na dupla representação pública-privada que se realiza a finalidade das dedicatórias mais laudatórias, como a que deseja, desde as suas primeiras linhas, aos
Cardoso, “que Deus, Suprema Onipotência Universal ilumine suas respectivas trajetórias políticas e administrativas em seus mandatos e que tenham muitas glórias e vitórias junto ao povo brasileiro que tudo espera de Vsas Excas.” Ela se encerra com a manifestação, igualmente extrema, de “cordialidade, afeição, carinho e simpatia” do autor, num livro cujo título, A mulher do século. Anatomia, fisiologia e sexologia, não deixa supor qualquer relação possível entre o texto e o louvor.
Em tom mais protocolar, porém não menos laudatório, o livro oferecido em 2008 a FHC por seu homólogo paraguaio, Juan Carlos Wasmosy, Memórias e documentos inéditos, traz a inscrição: “A mi Amigo el Exmo Señor Ex Presidente de la Republica Federativa del Brasil, Dr. Fernando Henrique Cardozo, com mi consideración mas distinguida y particular estima. Cordialmente”. A dedicatória carrega o eufemismo necessário – protocole oblige – à mescla entre o registro “Amigo” e o formal, que define a relação ao destinatário maior, o “Exmo Señor Ex Presidente”.
Em contrapartida, algumas dedicatórias são bastante sumárias, e isso por razões várias, sobretudo de estilo. Mas, muitas vezes, isso pode indicar também que quem
oferece o livro se afasta ou se aproxima, deliberadamente, de um dos polos do binômio público-privado, limitando, num sentido ou no outro, a expressão mais protocolar ou mais íntima. Assim são as dedicatórias de amigos próximos. Celso Lafer se limita, algumas vezes, a dedicar seus livros aos Cardoso apenas “com um abraço”.28 Distanciando-se da imagem pública da “primeira dama” sem deixar de tocar nela, Lourdes Sola endereça a Ruth Cardoso umas poucas palavras adequadamente escolhidas no livro que lhe ofereceu:
“A Ruth, com afeto redobrado e profunda admiração solidária.”29 Ao contrário, aproximando-se da dimensão pública, mais protocolares foram os termos usados por
George Bush: “To President Cardoso, with high regard”;30 ou perfeitamente econômicos, na pena de outro homólogo, Raúl Alfonsin: “Para Fernando Henrique Cardoso, afectuosamente.” Mesmo sumárias, algumas dedicatórias podem mesclar referências formais com rasgos de expressão íntima, subjetivada. É assim que Ana Maria Machado dedica o seu livro O Mar nunca transborda, em 1995, a “D. Ruth”, em sinal de visível respeito, manifestando em seguida “a admiração e a torcida carinhosa”.
Por fim, nenhum dos livros da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso indicia, de modo mais eloquente, a própria trajetória dos Cardoso do que os de Manuel
Castells. A presença deles é ostensiva, ao longo de muitos anos, e as dedicatórias muito variadas, inclusive nas línguas usadas (espanhol e francês), sinalizando para as várias circunstâncias de uma história vivida em comum. Em todo caso, a sequência dos títulos dos seus livros conservados na biblioteca já diz algo sobre a sua duração: de Capital multinacional, passando por The colapse of Soviet Communism, culminando com The Information Age ou The Rise of Network Society.
As dedicatórias de Castells percorrem os muitos níveis que encerram os seus laços de amizade com os Cardoso. Primeiro, a cumplicidade afetiva, expressa nas saudações “Com todo cariño, vuestro amigo de siempre”; ou, ainda, no grifo, “Con la amistad y la admiración personal, de vuestro Manolo.”32 Segundo, a identidade intelectual, ao dedicar, por exemplo, “este análisis de las raízes del cambio social en uma era que no segue las pautas que nos enseñaron, pero que siempre sentisteis-sentimos”. O uso da dupla conjugação verbal, neste último trecho, aponta para um terceiro nível, o da memória da experiência compartilhada, retratada, em 1981, na expressão “amigos de siempre y compañeros de tantas experiências y de tantos sueños”. Estes dois termos, “experiências” e “sonhos”, se repetem nas dedicatórias de Castells, recobrindo, seguramente, aquilo que liga quem dedica a quem recebe. Assim escreve ele, quinze anos mais tarde, mesclando no texto todos os níveis imagináveis do laço de amizade: “Para Fernando Henrique y Ruth, actores políticos e intelectuales y personas que encarnan en su práctica los sueños y esperanzas de nuestra generación […] Vuestro amigo de siempre, Manolo.”
3. A marca do livro oferecido
Um segundo tipo de dedicatórias leva a assinatura de pessoas que não são os próprios autores dos livros, que apenas os oferecem na qualidade de amigos, colegas,
homólogos etc., em ocasiões tanto privadas quanto públicas (e aqui não se trata dos livros que foram presentes oficiais). São, em geral, desde pessoas próximas até supostamente desconhecidas que presenteiam a “figura pública-privada” do presidente, e eventualmente a “primeira dama”, ou, muitas vezes, o casal.
Para esses livros cujo autor não é quem escreve a dedicatória, o caráter subjetivo, quase como uma marca “coautoral”, se expressa, antes de tudo, na escolha do texto
oferecido e da ocasião da oferta. Os livros de literatura são os que mais se prestam a este tipo de presente, aparentemente mais próximo da representação privada do destinatário, mas quase sempre motivado pela dimensão da representação pública. É assim que um exemplar em inglês de The Brothers Karamazov foi oferecido a FHC, no dia do seu aniversário, endereçado ao “Senhor Presidente”, com a menção “Feliz Aniversário!” e a saudação “Cordialmente”, alternando, com discrição, o tom íntimo e o formal. Já o romance O Matador foi oferecido a Ruth Cardoso, em 1998, com a seguinte dedicatória “cifrada” quanto à motivação da dádiva: “pela impressão que nos causou de nossa periferia.” Ou ainda, num registro mais íntimo: “Para Ruth, esse livro [Trilhos e quintas] que eu adorei. No Natal de 99.”
Ainda no interior da lógica de presentear um texto literário numa ocasião festiva, a escolha sugestiva de Comédias da vida privada, de L. F. Veríssimo,38 é justificada na mensagem transmitida na dedicatória: “Ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma lembrança da Segurança Presidencial para amenizar as agruras do cargo. Feliz aniversário!” Pelo visto, nesses livros presenteados, as dedicatórias têm quase sempre a função de passar um tipo de mensagem, muitas vezes coextensiva ao título do livro e ao seu conteúdo suposto. É assim que os Poemas de amor e solidariedade, de A. Zanotto, oferecidos como presente aos Cardoso, trazem, na dedicatória, a referência ao “brilhante trabalho” realizado por eles, como “inequívoca demonstração de amor e solidariedade”.
As dedicatórias desses livros funcionam, também, como um guia de como e por que ler, um verdadeiro protocolo de leitura para aqueles que são presenteados. Em 1995, o então presidente recebe o livro de Gore Vidal, Hollywood, um romance da América nos anos vinte, com a inscrição: “Para Fernando Henrique – Presidente e amigo – um belo romance para seus raros instantes de lazer”.40 Mais um livro da biblioteca tem sua chave de leitura expressa na dedicatória. Trata-se de A arte da sabedoria mundana. Um oráculo de bolso, texto do século XVII, traduzido, adaptado, e assim mutilado em edições brasileiras contemporâneas, que transformaram as máximas da “arte de prudência” do jesuíta Baltasar Gracián em conselhos de autoajuda. Os termos escolhidos na dedicatória buscam conformar, de antemão, a recepção do destinatário, ressalvando o “interesse” do texto e descartando uma suposta “necessidade” de aconselhamento: “Para o Presidente Fernando Henrique Cardoso: os aforismas são desnecessários, talvez; mas a compilação é interessante.”
Outro aspecto importante diz respeito à ocupação da página pela dedicatória manuscrita. Uma delas, em especial, chama a atenção, estendendo-se por três páginas,
desde a de rosto. O autor ultrapassa as convenções do “gênero”, redigindo mais uma vez uma carta, que contém, inclusive, como nas epístolas antigas, uma petitio, um pedido dirigido ao então presidente. A ocupação um tanto anárquica das páginas (começando da esquerda para a direita), a cor da tinta, azulada, a variação da caligrafia e, não menos, o teor das palavras eleitas fazem deste um exemplo bastante singular. A extensão e o conteúdo da intervenção manuscrita e a escolha do texto oferecido dizem muito quanto às expectativas da recepção do livro dedicado. Trata-se de Les portes du Ciel, de Jacques Attali, livro que serve de espaço – físico e simbólico – para o longo discurso da dedicatória, que vale reproduzir na íntegra:
Sr. Presidente, Dedico-lhe este livro, como alguém que lhe admira desde o dia em que vi no “EUCHANEL” a Sua Excelência declarar: “… o Brasil vai cumprir os seu compromissos internacionais custe o que custar…”. Depois disso me mudei para o Brasil, orgulhoso do nosso chefe da nação. Mais orgulhoso fiquei em ve-lo numa foto com “os cinco grandes” na Alemanha. Como economista, admiro a habilidade com que o Sr. Tem tratado as questões políticas e econômicas. É uma pena que o Sr. Não conte mais com o “TEO” (TEOTONIO) para lhe auxiliar nas negociações políticas. Como bom alagoano e amigo de infância dele, que conheço bem, posso lhe garantir que é um homem de bem e daria um ótimo PRESIDENTE. ELE TEM UMA LIDERANÇA NATURAL E EXPONTÂNEA. DESDE O TEMPO DE FACULDADE PARA ONDE ELE IA CARREGAVA TODOS OS AMIGOS COM ELE. OS AMIGOS NEM PERGUNTAVAM PARA ONDE ELE IA, SIMPLESMENTE SEGUIAM-NO. PARA ONDE ELE IA, O POVO IA ATRÁZ, SEM PERGUNTAR NADA. NA MINHA OPINIÃO, NA POLÍTICA, ELE SUPEROU O PAI, E MUITO. MAS, NA SUA HUMILDADE, SEU PAI É O SEU GRANDE ÍDOLO. DESCULPE POR ME ALONGAR TANTO. SEI QUE O SR. COM CERTEZA FARÁ O SEU SUCESSOR. PENSE NO TEO, SR. PRESIDENTE, COMO UMA SOLUÇÃO E SE FOR O CASO CONVIDE-O. COM RESPEITO E ADMIRAÇÃSO DESDE QUANDO LI “SOCIEDADE BRASILEIRA”, EM 1973. […] P.S. ESPERO QUE A LEITURA DESSA PEÇA LHE SEJA PROVEITOSA.
A conveniência da escolha do livro, sugerida no Post Scriptum, fornece o peso histórico necessário para legitimar os termos da dedicatória: a peça tem por personagem principal o imperador Carlos V, em 1558, poucos anos depois de sua abdicação, quando busca dar conta do seu legado, nas cerimônias organizadas em sua memória, em vista de seu próprio funeral. A chave interpretativa da leitura – “proveitosa” – de quem tem o livro dedicado é, assim, expressamente comandada pela intenção da mensagem daquele que o dedica.
Um último conjunto de dedicatórias diz respeito, muito particularmente, à relação do casal Cardoso: alguns exemplares da biblioteca foram oferecidos por Ruth a Fernando Henrique. Essas dedicatórias são muito simples, como se não fosse preciso escrever nada, apenas deixar lavrados os dois nomes, e com isso apenas dar sentido ao gesto e ativar a memória da ocasião, exclusivamente entre um e o outro. Em 1949, Ruth ofereceu a Fernando Henrique, no seu aniversário, um exemplar de Calligrammes, de Guillaume Apollinaire. No ano seguinte, Le livre ouvert, de Paul Éluard, e um volume em espanhol de Marx, El Capital. Em todos, a mesma inscrição singela: “Para o Fernando Henrique, da Ruth.
Mais um livro, Les Caves du Vatican, de André Gide, oferecido por ela em 1951, comemora um evento aparentemente importante, à época: “Ao Fernando Henrique, no seu segundo dia de árduo trabalho. Ruth.” Talvez eles já imaginassem que esses eram apenas os primeiros de muitos dias de árduo trabalho – dignos de comemoração – que estariam por vir
Dentro e fora da biblioteca
A intenção deste ensaio não foi, pelo visto, fazer um esboço analítico da Biblioteca Fernando Henrique e Ruth Cardoso. Foi, tão simplesmente, a de abrir as portas do espaço que abriga os livros e pensá-los de pontos de vista possíveis. Essa visada talvez tenha trazido à tona muito daquilo que, potencialmente, permite compreender os sentidos que a atravessam por dentro e que a relacionam com o que esteve e ainda está fora dela.
Desse modo, ela foi tomada aqui como um conjunto material e simbólico passível de uma operação arqueológica sobre a própria materialidade dos livros e a partir de
indícios de práticas e representações relacionadas àqueles que lhe dão muito mais do que os nomes. Quando manuseados, esses livros podem ter força semelhante a de alguns relatos biográficos ou autobiográficos, ou mesmo de fotografias, produzindo um “efeito de presença”, de muitas presenças.
Se algumas das proposições deste ensaio têm aparência previsível é porque uma biblioteca como essa guarda, por excelência, um sentido de que seus usuários de hoje, imprevistos, certamente suspeitam: o da trivialidade da vida privada frente à oficialidade da vida pública. Como foi sugerido, esta é a tensão, maior ou menor, que se encontra em cada um dos livros. E o que a letra morta dos impressos, em seu silêncio monumental, pode dizer da história vivida daqueles que os manipularam, os marcaram, ou, mais ainda, deram seus nomes como seus “proprietários” e foram seus primeiros leitores? As portas da biblioteca assim abertas nos deixam entrever que a simples presença desses livros reunidos já é, em si, uma resposta.