Da arte de se fazer lembrar: presentes a um presidente

A etiqueta manda que visitantes se façam acompanhar por um presente, em sinal de respeito e gratidão pela hospitalidade. Isso acontece também nas relações entre os governos. A prática secular de presentear chefes de Estado é sinal de boa vontade e diplomacia, recorrente no mundo todo. Os presentes recebidos por uma autoridade pública são reveladoras das relações que manteve ao longo de seu mandato. E como representam também quem os oferta, conclui-se que a troca é um ato político, passível de interpretação.

Fernando Henrique Cardoso acumulou, em duas gestões como presidente, mais de três mil presentes, integrados ao conjunto documental do seu acervo, majoritariamente em papel. Vale a pena examinar as diferentes homenagens que chefes de Estado, instituições e pessoas lhe prestaram, por meio de presentes. Além de conhecer a marca cultural intrínseca em cada oferta. Para além do ato simbólico de se aproximar do chefe da Nação, os presentes assumem características formais distintas quanto a suporte, material, tamanho, cor, peso e função.

Por que temos presentes?

Os eventos cerimoniais ocupam boa parte da agenda presidencial. Viagens de Estado e cerimônias de homenagem geram documentos como esculturas, medalhas, troféus e uma gama variada de artefatos. Outros documentos do acervo – relatórios, programas, registros fotográficos e audiovisuais – se referem a esses eventos para viabilizá-los ou testemunhá-los. Os presentes, portanto, fazem parte desse conjunto documental indissociável, e sua presença traz uma camada a mais quanto ao significado da ação governamental e do papel do Estado.
De acordo com a Lei dos Arquivos de 1991, a documentação presidencial é um conjunto privado, de interesse público. Por isso, o acervo aqui exibido é patrimônio coletivo e está disponível para consulta online.

AGENDA PRESIDENCIAL

Banquete cerimonial

Os banquetes oficiais são ocasiões para a troca de presentes, uma antiga prática da diplomacia. As escolhas do presidente Rudolf Schuster, da Eslováquia, revelam o desejo de mostrar a pluralidade cultural de seu país. O presente que ofertou ao presidente brasileiro é um traje tradicional eslovaco, uma espécie de casaco de lã bordado a mão, usado em datas comemorativas e com origem no século XVI. Ofereceu também um chapéu típico, uma pintura figurativa e um instrumento musical, que se destaca pela forma inusitada. A identificação da flauta demandou bastante pesquisa, até se descobrir que o instrumento, reconhecido pela Unesco como patrimônio da humanidade, tem o nome de fujara.

Rudolf Schuster (presidente da Eslováquia) e FHC

FHC recebe uma pintura de Rudolf Schuster (presidente da Eslováquia)

 

Bratislava (Eslováquia), 26/02/2002

 

 

AGENDA PRESIDENCIAL

Titulação de cidadania

No contexto protocolar de homenagens a chefes de Estado não há espaço para espontaneidade e os ritos se repetem, em geral, da mesma maneira. A visita a uma cidade pode gerar a chamada “titulação de cidadania”, que se materializa em uma grande chave, oferecida pela instituição municipal (Prefeitura ou Câmara). Essa tradição remonta à Idade Média, período em que os burgos eram protegidos por muralhas cuja chave só podia ser passada a pessoas de confiança do rei. A honraria é concedida hoje como distinção a pessoas de prestígio ou que contribuíram com alguma ação social significativa. Esta chave foi recebida por FHC em La Paz, no ano de 2001, assim como um bastão de prata e um livro sobre os 450 anos da capital, comemorados na época.

FHC recebe a chave da cidade de Juan Del Granado Cosio, prefeito de La Paz, ao lado deles, Marco Maciel, vice-presidente do Brasil

 

FHC recebe bastão de Juan Del Granado Cosio, prefeito de La Paz, ao lado deles, Marco Maciel, vice-presidente do Brasil

 

La Paz (Bolívia), 26/06/2001

 

Qual presidente mais ofertou presentes?

Carlos Menem

Fernando Henrique Cardoso ganhou 9 presentes de Carlos Menem, presidente da Argentina, entre 1989 e 1999. O fortalecimento do Mercosul e os acordos de cooperação Brasil-Argentina estreitaram os laços entre os países vizinhos nesse período. No decorrer dos encontros FHC recebeu itens representativos da cultura plural do país vizinho: uma miniatura de acordeão, instrumento usado nas festas tradicionais, e boleadeiras, artefato que laça o boi, usado nos pampas. Recebeu caixas, canecas, estatuetas, insígnias e um livro com dedicatória, de autoria do próprio Menem.

Miniatura de acordeão

Boleadeiras

Caneca com a inscrição: “Asuncion del Mando Presidencial del dr. Carlos S. Menem 1995-1999”

Caixa de madeira e prata

Livro com a dedicatória: “Para mi amigo Fernando Henrique Cardozo […] talentoso de la P.F. de Brazil com afecto y admiracion un abrazo. Menem”

O ano em que choveram presentes

A primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso pode ser tributada ao sucesso do Plano Real. Não à toa, 1995 foi o ano em que mais recebeu presentes. O mandato começava, o momento era de esperança. Na ocasião da posse, uma profusão de presentes chegou ao Palácio da Alvorada e, na sequência, houve muitas viagens e encontros com autoridades nacionais e estrangeiras, o que gerou ainda mais presentes.

Panô ofertado por Chen Jinhua, ministro da Comissão Estatal de Planejamento da China

 

Barca de São Vicente em miniatura ofertada por Mário Soares, presidente de Portugal

 

Rebab, instrumento musical, oferecido pelo rei da Malásia, Tuanku Jafaar

 

 

Remo oferecido em audiência a ONGs e lideranças indígenas pela prefeitura de Parintins (AM)

AUDIÊNCIAS DE ROTINA

Encontros com margem para o inusitado

Múltiplas camadas da sociedade buscam pavimentar uma relação com o chefe de Estado por meio da oferta de presente. Objetos variados são escolhidos para manifestar apreço: livros, taças, pesos de papel, caixas, instrumentos musicais, bonecas, chapéus e canetas são itens frequentes. Instituições diversas – faculdades, associações, empresas, grêmios, clubes – e cidadãos (artistas, inclusive) costumam utilizar certos artefatos representativos de sua identidade e de seus marcos cronológicos evocativos. Apontar o contexto no qual se insere a homenagem dá ao pesquisador régua e compasso para interpretar o aspecto simbólico de cada item ofertado.

 

Vaso feito com moeda oriental, presenteado pela Federação Nacional dos Profissionais em Acupuntura

 

Espátula com relógio ofertada pela Bolsa de Mercadorias & Futuros (BM&F)

 

Pílulas Poéticas oferecidas  pelo Movimento Pró-Cidade de Goiás – Patrimônio da Humanidade

 

Estatueta de Zumbi dos Palmares oferecida pelo MST

AUDIÊNCIAS DE ROTINA

MST

A luta pela terra no Brasil remonta ao período colonial e envolve europeus, indígenas e ex-escravizados. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) recupera histórias dos quilombos, de Canudos, das Ligas Camponesas e luta pela democratização desse bem, cujo acesso é historicamente desigual e injusto. Em 1995, na comemoração dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares, diversos eventos, oficiais e populares, relembraram essa figura. Atento a tudo isso e aludindo a uma luta identificada com seus objetivos, o MST marcou presença presenteando FHC com uma escultura de Zumbi feita em barro. Presentes de instituições sociais desse tipo revelam a abertura do presidente ao diálogo.

 

Audiência concedida por FHC às lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Brasília (DF), 27/07/1995

Viagens

Nas instituições de custódia, os artefatos são geralmente considerados peças de museu, merecendo tratamento especializado. Mas quando fazem parte de um arquivo, mantêm relações com os demais documentos e cumprem outra função: a de comprovar as atividades às quais estão ligados. Além das informações que a própria materialidade do objeto proporciona, oferecendo pistas sobre sua origem e seu significado, é o contexto que revela a funcionalidade plena do documento. No caso desse acervo, os presentes estão relacionados com compromissos, protocolos e a cooperação de terceiros com o governo. É o caso das peças comemorativas cunhadas pela Casa da Moeda do Brasil a cada viagem internacional do presidente. Os compromissos oficiais geram, por vezes, presentes inusitados. Um bom exemplo: o cardápio em tecido, oferecido pela prefeitura de Londres por ocasião do banquete comemorativo dos 50 anos do fim da Segunda Guerra Mundial.

Moedas produzidas pela Casa da Moeda do Brasil (CMB)

Cardápio oferecido pela prefeitura de Londres (Inglaterra)

O que os presentes informam

Inaugurações e lançamentos de programas

Alguns presentes fazem referência aos próprios eventos de que se originaram, como a miniatura da Sala São Paulo, oferecida durante a inauguração do Centro Cultural Júlio Prestes, em 9 de julho de 1999. O cartão do Seguro Social do Governo Federal é autoexplicativo. Isso ocorre também com a placa alusiva ao centenário do presidente Juscelino Kubitschek, oferecida em 12 de setembro de 2002, data em que ocorreu uma sessão solene no Congresso Nacional – com apresentações musicais e outros eventos – na cidade idealizada por JK com a ajuda de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa.

Agrupando os presentes

A afinidade entre alguns presentes recebidos por FHC permitiu dividi-los em famílias como uma forma de dar um panorama dos regalos recebidos por ele. Artefatos utilitários associados aos hábitos de comer, beber, escrever e decorar o ambiente são presentes bastante comuns. Mas, para um presidente, as peças escolhidas têm algo a mais, seja pela originalidade, seja pela raridade. Fica uma ponta de curiosidade: será que as pessoas que ofereceram presentes a FHC acreditavam que ele pudesse utilizá-los em sua vida particular?

Para escrever

O que significa “dar meios” para um presidente escrever?

Canetas são presentes oferecidos a pessoas que estão constantemente escrevendo e assinando documentos. Além da sua utilidade, também aludem à capacidade intelectual do presenteado. FHC, professor e intelectual, recebeu várias. Selecionamos, ao lado, algumas com histórias bem interessantes.

Presentes lúdicos

Por que ofertar jogos a um presidente?

Quais os prováveis sentidos dessa oferta? FHC recebeu diversos tipos. O primeiro é um clássico: um xadrez bastante original, cujas peças representam duas etnias da província da Terra do Fogo, Antártica e Ilhas do Atlântico Sul. Os Yámanas, canoeiros e nômades do mar vivem ao sul e os Selk´nam ou onas, caçadores vivem ao norte da Terra do Fogo. Foi presente do governador argentino, José Arturo Estabillo, durante a XIV Convenção de Chefes de Estado do Mercosul. O outro conjunto de xadrez também é um tanto diferente, pois as peças são manufaturadas com insumos industriais e foi ofertado na inauguração do Centro Móvel de Formação Profissional do Senai, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial, durante viagem a São Paulo, em 1999. As peças são construídas com parafusos e roscas, ajustáveis em relação ao tamanho. Entre os jogos figuram também dois clássicos orientais: o mahjong, de procedência chinesa, e o tangram, um quebra-cabeça chinês oferecido durante Encontro do II Fórum de Mulheres do Mercosul, como presente do Centro Universitário Una em Belo Horizonte, em dezembro de 2012.

Tucanos

Em sintonia direta com o titular

A presença desses pássaros em nosso acervo é significativa. Não há como não relacionar o tucano com a trajetória política de Fernando Henrique Cardoso, pois é o emblema do Partido da Social-Democracia Brasileira (PSDB), fundado por ele. Nossos tucanos têm diferentes tamanhos, contextos e cores. Ofertados por políticos, chefes de Estado, artistas e fãs, eles têm formatos que variam de cinzeiros a esculturas e é quase óbvia a presença de pedras típicas brasileiras na sua manufatura. Confira a nossa seleção:

Os presentes que mais se repetem…

 

 

A metodologia do conjunto documental

Os presentes têm relação estreita com o resto do corpo documental produzido durante a presidência da República e por isso receberam tratamento arquivístico. Diferente da visão museológica, que valoriza a unicidade de cada peça, o primordial em um acervo histórico é a relação dos artefatos com os demais documentos. Sobretudo porque eles representam eventos e atividades do chefe da Nação. O tratamento arquivístico trabalha com a ideia de que artefatos comprovam a trajetória do titular em seus aspectos sociais e profissionais, formando com o acervo, um conjunto indissociável.


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