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Debates

Pandemia nas favelas - Uma conversa com ativistas

/ Transmissão online - via Zoom


O isolamento social de cada família em sua casa não funciona nas comunidades periféricas e as autoridades públicas devem implementar estratégias de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus nas favelas a partir de diálogo e construção coletiva com movimentos e lideranças locais. Infelizmente, os governos — tanto a União como os Estados e os Municípios — estão praticamente ausentes nesses locais. 

Foi o que disseram os ativistas Guiné Silva, Eliana Silva e Jailson de Souza e Silva neste webinar realizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso para discutir o impacto da Covid-19 em comunidades periféricas e como elas têm atuado para reduzir infecções e mortes e ajudar os moradores a enfrentar a crise socioeconômica decorrente da pandemia, que entra em seu quarto mês no Brasil em curva ascendente.

Segundo os ativistas, o isolamento é impraticável nas grandes periferias urbanas não somente devido à precariedade de boa parte das moradias, mas também porque diversas gerações da mesma família vivem juntas, quase todos precisam continuar a trabalhar e muitos utilizam transporte público. 

“A pandemia escancara a negligência histórica de políticas públicas nas periferias brasileiras, onde milhares vivem em moradias insalubres, com cômodos pequenos e sem ventilação, falta de banheiro, saneamento e água potável. Que democracia é esta? Como se isolar nessas condições?”, perguntou o sociólogo Guiné Silva, especialista em gestão de projetos sociais e coordenador de fomento na Fundação Tide Setubal (SP), morador da Zona Leste paulistana, com cerca de 4 milhões de habitantes e parte significativa vivendo em favelas.

“As medidas e os protocolos de enfrentamento do coronavírus dialogam pouco com a realidade das pessoas nas favelas, onde a desigualdade social se revela de forma mais aguda. É preciso trabalhar com condições concretas e demandas reais. Temos feito um esforço muito grande, com apoio de setores da sociedade, mas falta uma ação estrutural dos governos federal, estadual e municipal”, disse Eliana Silva, diretora da ONG Redes da Maré (RJ) e coordenadora da campanha “Maré diz não ao coronavírus”. 

“O isolamento nas comunidades tem de ser territorial e não doméstico. Em vez de exigir um isolamento que outros podem fazer, mas nós não temos condições de cumprir, é necessário adotar medidas que respeitem as características e a dinâmica das favelas”, disse o geógrafo e educador Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas (RJ). 

      ‘Isolamento territorial’

Como exemplo de “isolamento territorial”, Jailson citou barreiras de proteção nas entradas das favelas para medir a temperatura, realizar testes e distribuir máscaras, sabão e alimentos, reforço da ação estatal nas áreas de saúde e assistência social, incluindo oferta de leitos e locais adequados para quarentena, além de auxílio emergencial para garantir renda durante a fase aguda da pandemia.

“Precisamos de hospitais de campanha mais próximos às comunidades e de casas de quarentena, como a que foi criada em Paraisópolis para receber moradores que precisam se isolar mas não têm local adequado”, disse Guiné. “Os mais idosos até tentam se proteger ficando em casa, mas os mais jovens têm de sair e na volta colocam em risco pais e avós. Sem aula, crianças e adolescentes brincam ou se encontram na rua, pois não existem espaços de convívio mais controlados e seguros”, explicou Guiné.

Outras ações que ajudariam a enfrentar o coronavírus com mais segurança e dignidade são: garantia de água potável e energia elétrica 24 horas por dia e acesso à banda larga e pacotes de dados móveis, essenciais para os estudantes manterem algum contato com a escola durante a pandemia. “Quando os responsáveis pelas escolas dizem que aulas e trabalhos online serão o novo normal, de que novo normal estão falando? Um em cada cinco alunos das favelas não tem acesso a internet nem mesmo pelo celular. Onde estão as medidas de inclusão digital prometidas no passado?”, disse Guiné. O Centro de Estudos Periféricos, do Campus Zona Leste/Unifesp, publicou um manifesto com 23 medidas de combate ao coronavírus nas favelas.

Na Comunidade da Maré, onde existem 16 favelas, há 44 escolas de ensino fundamental e três de ensino médio e, depois que as aulas foram suspensas, os alunos ficaram sem nenhum contato com o ensino por cerca de um mês e meio. “O jeito foi criar um fórum online para juntar pais e responsáveis e pensar em maneiras de manter um mínimo de atividade durante a pandemia”, contou Eliana.

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      Três paradigmas     

Para Jailson, diretor geral da Universidade Internacional de Periferias (UNIperiferias), a pandemia do novo coronavírus nas comunidades revela três paradigmas. O primeiro deles é o paradigma da ausência: “A favela é o espaço da não cidade. Enquanto os grupos dominantes da sociedade têm tudo — maior renda e acesso a equipamentos urbanos e serviços de qualidade — nas comunidades temos apenas precariedade e carência”, disse.

O segundo paradigma é o da hostilidade: “Já estávamos acostumados ao preconceito e à violência, nós, negros pobres da periferia, somos vistos com desconfiança, e tachados como perigosos desde sempre. Mas o atual presidente da República trouxe o ódio para a centro da vida pública”, continuou.

O terceiro paradigma é o da potência: “A pandemia está mostrando que a favela é mais do que tudo isso. Temos solidariedade, capilaridade e criatividade. Estamos mostrando que sabemos agir com empatia para dar respostas possíveis aos desafios trazidos pelo coronavírus, por meio de campanhas de informação, arrecadação, articulação e logística”, concluiu o sociólogo. 

Para Jailson, é hora de “valorizar a potência inventiva das comunidades locais e praticar a pedagogia da convivência, pois a favela não pode se fechar em si mesma, tem de trabalhar com outros setores da sociedade para romper o preconceito e a exclusão”.

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        ‘Pandemia sem neurose’

A comunicação é uma das vertentes importantes de ação nas favelas. Um exemplo é o podcast Pandemia sem neurose, produzido pelo canal Alma Preta - Jornalismo Preto e Livre, com o objetivo de combater a desinformação e as fake news relacionadas ao coronavírus. Um dos programas de áudio discutiu declaração do governador paulista, João Doria, de que a PM poderia prender pessoas que violassem regras de isolamento, medida logo descartada pela própria polícia. Outro dá dicas de como jovens que precisam trabalhar podem adotar medidas de proteção aos parentes idosos.

“É importante pensar na saúde mental dos moradores das favelas”, disse Eliana, que fez uma parceria com a Fiocruz para informar os cerca de 130 mil habitantes da Favela da Maré por meio de podcasts, carros de som e pinturas nos muros. O grupo de whatsapp “De olho no corona” mapeia a evolução do vírus rua a rua, com informações sobre os sintomas de Covid-19, quando procurar uma unidade de atendimento ou equipe de saúde da família e dicas para vizinhos ajudarem doentes de forma segura. Também há uma ação permanente de higienização, que já desinfetou 900 ruas.

Recentemente, o Censo da Maré identificou as 6.000 famílias mais vulneráveis da comunidade, que passaram a receber alimentos e produtos de higiene. Cozinheiras da comunidade que trabalham em restaurantes e bufês e estão sem trabalho e renda preparam até 300 refeições diárias para moradores de rua, recebendo por isso. Costureiras produzem 20 mil máscaras por semana.

Segundo os ativistas, as comunidades têm recebido muitas doações de empresas e indivíduos desde o início da pandemia. Elas têm sido usadas em ações emergenciais e para apoiar negócios da comunidade, a maioria deles paralisados, por meio de empréstimos a juros reduzidos e com prazos prolongados. Para doar, consulte as páginas da iniciativa Matchfunding Enfrente, que já arrecadou mais de R$ 6 milhões, e da campanha Maré contra o coronavírus. “Felizmente os recursos doados estão chegando na ponta, mas até quando poderemos contar com eles? A iniciativa privada é essencial, mas o Estado não pode se omitir”, disse Guiné.

          ‘Decisão histórica do STF’ 

Os ativistas qualificaram como histórica a decisão do ministro Edson Fachin de proibir operações policiais nas comunidades durante a pandemia. “Só na Maré, a polícia entrou em confronto com grupos armados em três oportunidades nas últimas semanas, causando pânico e correria no meio da entrega de cestas básicas”, criticou Eliana.

“Aqui no Rio o direito à segurança pública não existe dentro das favelas. A polícia praticamente só se faz presente por meio de operações do BOPE. Controlar a ação da polícia é tão importante como controlar a ação de grupos armados”, disse Jailson.

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          ‘O que aprendemos com a pandemia?’

Assim que a fase mais crítica da pandemia for superada, o Observatório de Favelas pretende organizar uma série de encontros com representantes das comunidades periféricas de todo o Brasil para discutir lições aprendidas durante a pandemia. “Precisamos consolidar as lições aprendidas e nos preparar para outras emergências sanitárias que venham a ocorrer no futuro. Convidamos a Fundação FHC a participar dessa iniciativa”, disse Jailson de Souza e Silva.

Ao ser perguntado pelo mediador Sergio Fausto, diretor da Fundação, se novas lideranças comunitárias estariam surgindo no contexto do combate ao coronavírus, Guiné destacou o envolvimento de jovens universitários. “A inteligência periférica que está se formando nas universidades vem ocupando espaços de reconhecimento e legitimidade nas favelas. Não vejo espaço para experimentações sem vínculo forte com a realidade de cada local”, afirmou.

Segundo Jailson, as comunidades periféricas brasileiras são muito heterogêneas e exigem soluções diferenciadas. Como pontos para uma agenda comum, ele citou a criação de um programa de renda básica universal, combate ao preconceito, racismo e machismo, educação e saúde de qualidade, redução da violência e política de segurança que respeite os moradores das favelas, fortalecimento dos grupos culturais da periferia e acesso gratuito à tecnologia.

“Só das periferias podem vir soluções para uma cidade mais justa, fraterna e democrática. Temos diante de nós o desafio de integrar movimentos de todo o Brasil para dialogar com a sociedade civil, as autoridades públicas do Executivo, Legislativo e Judiciário e dos três níveis de governo e a iniciativa privada”, disse.

“A periferia segue inovando e apresentando caminhos. Estamos fazendo nossa parte, mas a responsabilidade é de toda a sociedade, principalmente do Estado, que tem recursos para dar escala. Infelizmente, a troca com os governos é esporádica, lenta e complexa”, concluiu Guiné.

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Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.

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