Debates
10 de dezembro de 2020

O drama da Argentina: mais um ato ou desta vez é diferente?

O país precisa resolver distorções nos planos fiscal e monetário, que se tornaram ainda mais agudas com os impactos da pandemia.

A Argentina vive uma deterioração social descrita pelo jornalista e historiador Carlos Pagni como “inquietante”. Com 44% da população em situação de pobreza, o país precisa resolver graves distorções nos planos fiscal e monetário, que se tornaram ainda mais agudas com os impactos da pandemia do novo coronavírus. Para o economista e ex-ministro da Fazenda Alfonso Prat Gay, na raiz dos problemas argentinos se encontra uma tensão estrutural entre o valor dos salários internos (em dólar), requerido para manter a paz social e a estabilidade política, e o nível de câmbio necessário para equilibrar as contas externas do país.

Estes foram os principais pontos do diagnóstico sobre o país vizinho feito neste webinar.

“Nós, argentinos, nos consideramos sempre excepcionais e, agora, temos uma nova exceção. Entramos na crise da Covid-19 com uma longa lista de comorbidades, e a política argentina não tem ajudado a resolver esse dilema.”
Carlos Pagni, historiador e jornalista, é colunista dos jornais La Nación (Buenos Aires) e El País (Madri).

 

“Nos 60 anos de vida de nosso maior ídolo, Diego Maradona, a Argentina passou por 15 recessões. O desafio é como enfrentar a demanda social resultante do crescimento da pobreza diante das dificuldades de operar uma economia cujo estoque de capital desaparece ano após ano.”
Alfonso Prat Gay, economista, foi ministro da Economia (2015-16), presidente do Banco Central (2002-04) e deputado nacional pela Cidade de Buenos Aires (2009-2013). 

‘Mercado eleitoral para demagogia’

Convidado a analisar o problema argentino sob a ótica da política, Carlos Pagni destacou que muitos argentinos que eram de classe média se tornaram pobres nos últimos anos como resultado de uma combinação de fenômenos de longa duração: modelo produtivo inviável, lenta decadência das condições de trabalho, deterioração dos salários, aumento do desemprego e da informalidade (mais de 50% da população economicamente ativa).

“No começo da quarentena, havia 4.000 favelas na região da grande Buenos Aires, metade delas surgidas após 2000 (em 2001, o país viveu uma de suas maiores crises, que resultou na queda de sucessivos governos) e 25% posteriores a 2010, início de uma década de estancamento econômico após o boom das commodities. São números contundentes, mas as pessoas, de maneira geral, não vêem a situação com clareza. Para mudarmos este quadro, os argentinos precisariam de um reajuste mental”, disse.

“O tema da pobreza se tornou central, gera um mercado eleitoral muito atrativo para ser atendido por políticos em termos demagógicos, tanto dentro como fora do peronismo, e faz com que o Estado tenha que ter um papel cada vez maior (por meio de políticas de assistência social). Todo o sistema passou a funcionar de outra maneira”, disse.

Segundo o jornalista, sem levar em conta esse cenário é impossível entender o kirchnerismo, ala do Partido Justicialista (ou peronista) liderada primeiro por Néstor Kirchner (presidente de 2003 a 2007, morto em 2010) e depois por sua mulher, Cristina (que o sucedeu na Casa Rosada, de 2007 a 2015).

“Cristina é a representante política mais nítida dessa massa de submergidos na periferia de Buenos Aires. É a principal líder de uma ideologia populista que busca resolver o problema econômico sacrificando o longo prazo no altar do curto prazo”, explicou.

Mas, para o palestrante, “a necessidade de enfrentar o problema fiscal e monetário em meio a uma deterioração social inquietante faz com que qualquer governo caminhe sobre a corda bamba”. Segundo Pagni, o atual governo, do presidente Alberto Fernández (eleito em 2019, após o fracasso do governo de Mauricio Macri), vive “em transe”.

O principal motivo é que ele foi escolhido para disputar a Casa Rosada pelo peronismo exatamente por Cristina, que entrou como vice em sua chapa. “Cristina, que tem votos, decidiu não ser candidata a presidente e colocou outro no lugar. É o número 2 que dá ordens ao número 1 e, diante do menor problema, o presidente pode ser substituído pela vice”, disse.

“Como vice, Cristina virou epistolar: escreve cartas. Em uma das recentes, destroçou a Corte Suprema de Justiça. Diante dessa situação, o rumo institucional do governo e do país tornou-se uma incógnita”, continuou.

Fernández também tem dificuldades para governar porque “não sabemos bem o que ele pensa” (antes de ser ungido por Cristina, foi um dos mais vocais críticos de seu governo) e por estar à frente de uma coalizão que abriga pessoas com visões políticas e econômicas muito diversas, o que resulta em intermináveis concessões.

“À confusão da anatomia se soma a confusão da fisiologia. Em um momento de incerteza econômica em escala global, e mais ainda na Argentina, o oficialismo é um aparato desenhado para gerar crises”, afirmou.

O colunista político concluiu dizendo que a oposição, desgastada pelos equívocos da gestão econômica e social durante o governo Macri (2015-19), não oferece alternativas, o que pode levar a protestos contra todo o sistema político e o possível surgimento de uma alternativa de poder antissistêmica, com tendências reacionárias, “à la Bolsonaro”.

‘Ajuda com emissão monetária contrata inflação’

A Argentina optou por adotar uma rígida quarentena durante a pandemia sem, no entanto, ter os recursos disponíveis para financiar a concessão de auxílio emergencial aos mais pobres, o que resultou no aumento do déficit fiscal primário de 0% do PIB (no início de 2020, uma das poucas conquistas de Macri) para 5% do PIB (veja gráfico na seção Conteúdos Relacionados, à direita desta página).

“Fizemos um isolamento parecido com o europeu, mas, diferentemente da Espanha e da Itália, não temos a União Europeia por trás. Também não somos os Estados Unidos, que têm o dólar, desejado em todo o mundo, e crédito a juro zero. Diante de um Tesouro sem recursos, o jeito de compensar quem não pôde sair para trabalhar foi emitir moeda, contratando inflação futura”, disse Alfonso Prat Gay, que ocupou cargos-chave tanto na esfera pública (foi ministro da Economia de Macri) como na iniciativa privada (trabalhou por sete anos no banco JPMorgan).

Prat Gay, que presidiu o Banco Central no início dos anos 2000, afirmou que o país viverá em permanente crise enquanto não resolver o desequilíbrio entre os salários internos (em dólar) e a desvalorização do peso em relação à divisa norte-americana, necessária para estimular as exportações e fechar as contas externas.

“O tipo de câmbio necessário para equilibrar as contas externas é incompatível com o atendimento das demandas sociais via salários. Se houver aumento do salário em dólares, aprofunda-se o déficit no balanço de pagamentos”, explicou. Se os salários diminuem muito em dólar, cria-se uma crise social e política. O economista destacou que “a taxa de investimento real na Argentina é inferior a dois dígitos, ou seja, abaixo de 10% do PIB há um bom tempo, o que destrói não somente a infraestrutura como o capital social, econômico e humano”.

Segundo o palestrante, qualquer governo argentino não pode escapar de buscar respostas a três questões:

  • Como voltar a ter uma moeda com credibilidade?
  • Como resolver a questão do câmbio vs. salários?
  • Como financiar um déficit de 5% do PIB?

Outro problema grave é a multiplicação por quatro do percentual da população atendida pelo sistema de seguridade social em apenas 20 anos, segundo ele, “um tema ausente das discussões políticas.”

Prat Gay concluiu alertando que a polarização política não ajuda e propôs um acordo nacional para tirar o país da complexa situação em que se encontra. “Se não houver um amplo acordo social, que reúna governos, Congresso, partidos políticos, iniciativa privada e sindicatos, é muito difícil enfrentar o atual quadro de decadência”, afirmou.

‘Combinar realismo com esperança’

Em breves comentários ao final da apresentação dos dois convidados, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que, para a Argentina sair de situação difícil, será necessário “apertar o cinto, mas também recriar a confiança”.

“Tem que haver realismo e visão de futuro, as duas coisas simultaneamente. Ao líder cabe explicar o que está acontecendo e conseguir apoio dos cidadãos para enfrentar medidas difíceis, mas também mostrar que existe um futuro possível, melhor do que o presente. Sem esperança, não se caminha”, disse FHC.

Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. É editor de conteúdo da Fundação FHC.