Desafios e oportunidades para as energias renováveis no Brasil
Reunimos autoridades, especialistas e formuladores de políticas para discutir os desafios e oportunidades para a ampliação da oferta de energias renováveis e suas consequências para o desenvolvimento do país.
Com vasto potencial de produção de energia a partir de vento, sol e biomassa, o Brasil está em posição favorável para ser um dos líderes mundiais (e exemplo) da transição energética em curso no planeta, mas precisa deixar definitivamente para trás as incertezas que marcaram o setor energético nos últimos anos e décadas – como falta de clareza sobre os papéis do Estado e da iniciativa privada, imprevisibilidade e insegurança jurídica – e integrar as diversas fontes de energia disponíveis, incluindo os setores hidrelétrico, de petróleo & gás e etanol.
Esta foi a principal conclusão do debate “Desafios e oportunidades para as energias renováveis no Brasil”, que reuniu uma dúzia de representantes do governo, da iniciativa privada e especialistas em um dia inteiro de debates na Fundação FHC.
“O histórico de mudança do padrão energético é lento, mas está acelerando rapidamente devido às mudanças climáticas. Cada vez mais os investimentos internos e externos buscarão alternativas que resultem em menos emissão de dióxido de carbono (CO2). O Brasil tem todas as condições de ser um dos maiores beneficiados.”
Giovani Machado, diretor da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), é especialista em regulação do setor energético
“A matriz elétrica brasileira está em transição: aumenta a participação das ‘novas renováveis’ (eólica e solar, principalmente), enquanto projetos de grandes hidrelétricas com amplos reservatórios deixam de ter a prioridade que tiveram no passado.”
Hélvio Neves Guerra, secretário adjunto da Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do Ministério de Minas e Energia (MME)
“Restam poucas alternativas de locais para a construção de grandes hidrelétricas, em especial na Amazônia. O argumento ambiental e social está vencendo o debate público e é fundamental desenvolver alternativas viáveis.”
Jerson Kelman, ex-presidente da Sabesp, da ANEEL e da ANA
“Em um futuro próximo, o mundo vai ser elétrico e renovável. Com a modernização tecnológica, a miniaturização e a digitalização, o consumidor terá mais controle não apenas sobre seu consumo como poderá produzir energia em casa e vender o excedente.”
David Zylberstajn, ex-diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP)
O Plano Decenal de Expansão de Energia (PDE 2019-2029) – elaborado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) após consulta aos players envolvidos e em fase final de consulta pública – prevê investimentos de R$ 456 bilhões em geração e transmissão de energia elétrica (não inclui distribuição) na década que se inicia. Já o setor de petróleo, gás e biocombustíveis deve receber R$ 1,9 trilhão em investimentos. Segundo dados apresentados por Hélvio Neves Guerra (Secretaria de Planejamento e Desenvolvimento Energético do MME), 44% da matriz energética brasileira hoje já é renovável (em grande parte devido aos investimentos em grandes hidrelétricas no passado) e deve chegar a 48% em 2029. No mundo, esse percentual atualmente é de apenas 14%.
“O Brasil já tem uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, mas, para tornar o setor mais atrativo para investimentos e garantir a sustentabilidade da oferta de energia, os principais desafios são estabilidade regulatória e jurídica, inviolabilidade dos contratos, governança, transparência e sinergia”, disse Guerra.
“O Brasil tem petróleo e gás (a produção no Pré-Sal continuará a crescer nos próximos anos e décadas), rios, vento, sol e biomassa. A produção a partir de todas essas fontes vai aumentar nos próximos anos, inclusive a do setor hidrelétrico (a depender das chuvas), mas o destaque será para os setores eólico, solar e de biomassa”, disse Giovani Machado (EPE). “É fundamental estruturar o sistema de forma a potencializar a complementaridade das diversas fontes energéticas e contribuir para a redução de nossa pegada ambiental.”
Equalização inteligente do sistema elétrico
“É possível ter um futuro com as renováveis, como a eólica e a solar? Sim, mas as usinas hidrelétricas e termelétricas devem servir de garantia (para a estabilidade do sistema elétrico)”, disse o professor da COPPE-UFRJ Jerson Kelman (ex-Sabesp, ANEEL e ANA).
“Não há como recuperar o país de um blecaute (ou de uma crise energética de maiores proporções) sem o auxílio das hidrelétricas e termelétricas, mas os setores eólico e solar podem contribuir cada vez mais. Daí a necessidade de fazermos uma equalização inteligente de todo o sistema”, disse Flávio Antônio Neiva, presidente da Associação Brasileira das Empresas Geradoras de Energia Elétrica (ABRAGE).
Neiva apresentou 5 pontos da agenda defendida pela ABRAGE:
- integrar fontes renováveis em rápida expansão (eólica, solar e biomassa);
- garantir equilíbrio entre oferta e demanda no curto, médio e longo prazo;
- garantir oferta firme de suprimento de gás (a produção de gás no Pré-Sal deve crescer significativamente);
- reduzir carga tributária do setor elétrico;
- tirar o máximo proveito da disrupção causada pela chegada das carros elétricos.
Oferta internacional de petróleo vai superar demanda
“O petróleo ainda é um mal necessário e o Brasil tem boas reservas, mas, diferentemente do que se imaginava, não é um choque de oferta e, sim, de demanda que levará à sua substituição por outras fontes de energia. Cada vez mais países, principalmente os mais desenvolvidos, estabelecem prazos para abolir o uso de veículos movidos a gasolina ou diesel. O Brasil não pode ficar pra trás”, disse David Zylbersztajn, presidente do Conselho de Administração da Light S.A.
Diversidade de fontes energéticas deve impulsionar mercado livre
Segundo Filipe Domingues, diretor-presidente da EDP Renováveis Brasil, com a expansão da oferta de energia de fontes diversas, em especial a eólica, o mercado regulado tende a perder importância para o mercado livre, em que grandes consumidores podem escolher de quem compram energia e a negociação é feita de forma livre e bilateral, com menos interferência estatal. “Um obstáculo existente é que o grande consumidor ainda tem pouco interesse por contratos de longo prazo: cerca de 80% dos contratos de mercado livre (ACL) têm prazo inferior a 6 anos”, disse. Quanto mais longo o contrato, mais baixos e menos voláteis tendem a ser os preços.
País já está entre os ‘top 10’ da energia eólica
Durante o evento, foi exibido um gráfico dinâmico com o ranking dos maiores produtores de energia eólica do mundo de 1985 a 2018: até 2010, o Brasil simplesmente não aparecia no lista, mas desde então começou uma rápida ascensão e, em 2018, ocupava a 7ª posição, logo atrás da Espanha. O líder com folga é a China, depois vêm EUA e Alemanha.
“O Brasil tem o melhor vento do mundo e, na última década, conseguimos desenvolver toda a cadeia produtiva aqui mesmo. São centenas de fornecedores que viabilizam uma indústria eólica com forte conteúdo nacional (sem que tenha havido imposição por parte das autoridades)”, disse Elbia Gannoum, presidente da Associação Brasileira de Energia Eólica.
Impacto social no Nordeste
“No setor elétrico brasileiro, tem espaço pra todo mundo, mas o eólico é o que tem crescido com maior rapidez nos últimos dez anos, com crescimento da capacidade instalada de cerca de 2 gigawatts ao ano, R$ 15 bilhões em investimento e 30 mil empregos por GW”, disse. Segundo a representante do setor, a indústria eólica tem tido importante impacto social na região Nordeste, seja por meio do aluguel de terras para instalação de torres (R$ 1.000 mensais por aerogerador), garantindo a seus proprietários renda por até 25 anos em média, ou dos empregos criados localmente.
Ela reconheceu que os parques eólicos têm impactos ambientais, como ruído e morte de pássaros e morcegos. “Toda atividade econômica tem consequências, mas a eólica é uma das que têm menos impacto. A legislação ambiental é rígida. Proíbe, por exemplo torres no meio de rotas migratórias”, disse.
Há 15 anos, os custos de produção de energia eólica eram até seis vezes mais altos do que os do setor hidrelétrico, mas hoje já seriam inferiores. Para manter esse curso de redução de custos, “é essencial não haver espaço para (novos) subsídios em nenhuma área”. Para a porta-voz do setor, a próxima fronteira da indústria eólica serão as usinas offshore (instaladas no mar).
Filipe Domingues (EDP Renováveis Brasil) defendeu parques híbridos eólico-solares como forma de reduzir a variabilidade de geração em diferentes horários do dia e da noite, infraestrutura e recursos humanos comuns às duas atividades.
Energia solar ‘empodera’ consumidor
Embora o Brasil esteja atrasado – o setor de energia solar responde por pouco mais de 1% da matriz brasileira –, Zylbersztajn (Light S.A) aposta em seu rápido crescimento. “Desde 2009, o custo de produção de energia a partir do sol caiu 90%. Em breve, será mais acessível que a eólica e a hidrelétrica”, disse.
“Ainda não aparecemos nos rankings, mas isso vai mudar. A China lidera tanto na produção como no consumo, mas o bonde ainda não passou e há espaço para avançarmos. O principal desafio é desenvolver a cadeia produtiva no Brasil”, disse Rodrigo Sauaia, copresidente da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR). Ele destacou que, para produzir energia a partir de luz solar, não precisa de água nem há geração de ruídos, gases ou líquidos poluentes.
Com a popularização das placas solares fabricadas na China, será possível produzir energia em casas, prédios residenciais e comerciais, escolas etc. e, por meio da tecnologia de smart grid, vender o excedente para empresas de distribuição. Ao gerar energia junto do ponto de consumo, não é necessário construir linhas de transmissão e diminuem as perdas e os desperdícios.
“Os consumidores vão mudar para o solar de qualquer jeito. A regulação pode ajudar no sentido de essa transição ser feita com segurança e no tempo adequado”, disse Wilson Ferreira Junior, presidente da Eletrobras.
“A transição que vivemos hoje não diz respeito apenas à diversificação das fontes de energia. Aborda também inovações tecnológicas como Inteligência Artificial, Blockchain e Internet das Coisas. O resultado, a médio prazo, será um consumidor cada vez mais ‘empoderado’”, disse Giovani Machado (EPE).
O potencial da biomassa
Machado lembrou que o programa RenovaBio (lançado em dezembro de 2017) definiu metas de descarbonização para o mercado de combustíveis e criou as condições para um “novo ciclo virtuoso para a produção de energia a partir de biomassa no Brasil”. Ele defendeu que o setor vá além do já conhecido etanol (utilizado em quase 70% da frota de carros brasileira) e evolua para a produção em escala de biodiesel, biogás e bioquerosene de aviação. O biometano, produzido a partir de resíduos agropecuários, pode ajudar a reduzir a pegada ambiental do agronegócio. “O caminho é colocar as diversas tecnologias para competir umas com as outras e que a melhor vença”, sugeriu.
“O Brasil tem um dos maiores potenciais de biomassa e uma das maiores biodiversidades do planeta. Pode ser protagonista na pesquisa de novos usos para a co-geração de energia a partir de biomassa, que já responde por cerca de 9% da matriz energética brasileira”, afirmou Antonio Simões Rodrigues, diretor-executivo da Raízen.
Newton José Leme Duarte, presidente da Associação da Indústria de Cogeração de Energia, defendeu a redução do número de distribuidores no meio da cadeia de produção como forma de cortar custos e produzir mais energia a partir de biomassa perto das áreas de consumo.
“A consolidação de uma matriz de baixo carbono não é uma escolha, mas uma exigência do Século 21. Com os recursos renováveis disponíveis, o Brasil tem tudo para evoluir nessa direção. Mas precisa se antecipar em relação ao que acontece no resto do mundo e inovar cada vez mais”, comentou o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.