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Uma Nova Convenção Constitucional: o Chile entre a continuidade e a mudança

/ Transmissão online - via Zoom


Existe um consenso atualmente no Chile: o país precisa de uma nova Constituição que substitua a Carta de 1980, um legado da ditadura Pinochet, que embora reformada nos governos democráticos posteriores não reflete as necessidades e os anseios da sociedade chilena no século 21.

É necessário, no entanto, definir melhor as regras do jogo para evitar que mais um processo constituinte termine em fracasso, pois o Chile precisa dar respostas às demandas sociais que surgiram com força na última década, sobretudo após os grandes protestos que sacudiram o país em outubro de 2019, e às incertezas que hoje prejudicam o crescimento do país.

“A rejeição da proposta da nova Constituição no plebiscito de 4 de setembro foi difícil de ser assimilada pelos que fizeram campanha pelo ‘sim’, mas esta derrota deve ser vista como um capítulo de uma história que ainda não terminou. O fundamental é que vivemos um processo institucional que está sendo construído com base no diálogo, não por meio de uma ruptura”, disse a advogada Elisa Walker, que trabalha com questões relacionadas à diversidade e inclusão na Universidad Adolfo Ibáñez.

“Existe um consenso político de que esse processo precisa seguir adiante, mas o desafio é definir regras que garantam legitimidade à nova convenção constituinte. A participação da sociedade civil é essencial, mas também é muito importante que os partidos políticos chilenos recuperem seu papel político-institucional e contribuam efetivamente para a redação de uma carta que resulte em um novo pacto social”, afirmou a cientista política Gloria de la Fuente, da Escuela de Gobierno de la Pontificia Universidad Católica de Chile, que também fez campanha pelo sim.

“Fiz campanha pela rejeição porque o texto proposto era desequilibrado, ao pender muito para a esquerda e para as pautas defendidas pelos independentes. O texto final era muito amplo, maximalista, e parecia mais um programa de governo do que uma Constituição. Às vezes, forçar os limites pode não ser a melhor estratégia, pois pode trazer problemas a médio e longo prazo. É preciso parar e rever o processo”, disse a atriz e gestora cultural Javiera Parada, uma das porta-vozes do movimento Marca Tu Voto, criado em 2013, após a divulgação de um manifesto assinado por diversas personalidades pedindo uma nova Constituição.

As três ativistas chilenas participaram do webinar “Uma Nova Convenção Constitucional: o Chile entre a continuidade e a mudança”, realizado pela Fundação FHC, com mediação do cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação. 

Em 4 de setembro último, 62% dos chilenos que votaram no plebiscito rechaçaram a proposta de Constituição redigida pela Assembleia Constituinte entre julho de 2021 e julho de 2022. Com a vitória do “não”, a Constituição de 1980 segue em vigor. Diante do impasse, o governo do presidente Gabriel Boric (de esquerda) e lideranças do Congresso Nacional decidiram formar uma mesa de diálogo para definir o caminho para a realização de um novo processo constitucional, no qual os partidos políticos deverão ter maior protagonismo.

Processo constituinte teve aspectos positivos e negativos

“Apesar da derrota significativa do ‘sim’, há elementos positivos no recém-concluído processo de redação de uma nova Constituição. Do lado das luzes, destacaria a paridade de gênero na eleição dos membros da Assembleia Constituinte, um exemplo para o mundo; e, na minha visão, as vagas reservadas aos povos originários, pois não se dará resposta a séculos de injustiça apenas com garantias no texto constitucional, mas também com a participação dessas lideranças no próprio processo”, disse Elisa Walker.

“Do lado das sombras, eu diria que o afã refundacional, ou seja, a tentativa de criar um novo Chile de A a Z, foi nocivo e pode ter contribuído para a derrota no plebiscito. A convenção constitucional deve ter ampla liberdade, mas é importante que a nova carta respeite a história institucional e constitucional do país”, afirmou.

Além disso, segundo Elisa, em algumas questões delicadas foi dada prioridade à aprovação de “simbolismos, em detrimento de normas concretas e bem definidas”. Como exemplo, ela citou a proposta de reconhecer a validade dos sistemas jurídicos dos povos originários em seus territórios, o que poderia resultar em um pluralismo jurídico e em maior insegurança jurídica. “É importante que dificuldades como estas não se repitam na próxima tentativa de escrever uma nova carta”, disse a advogada.

“O artigo 1º da Constituição rejeitada, que determina que o Chile seja um Estado de direito social e democrático, é uma importante conquista que deve ser preservada no próximo texto”, disse Gloria de la Fuente. “Já passou da hora de encontrarmos soluções para os dilemas do acesso à educação e à saúde de forma gratuita e com qualidade, assim como para a questão das aposentadorias, que estão no centro da preocupação dos chilenos há 15 anos.” 

Duas mudanças importantes que constavam da Constituição rechaçada não devem constar do novo texto a ser redigido: a proposta de um Estado plurinacional, em que os povos originários teriam maior autonomia política e jurídica, e a extinção do Senado Federal e sua substituição por uma Câmara das Regiões, com poderes menores que os da Câmara de Deputados. Segundo as convidadas, o mais provável é que o Chile continue a ser definido como um Estado unitário, ainda que os povos indígenas tenham mais direitos garantidos, e a ter um sistema bicameral, com a manutenção dos poderes do Senado.

Entre as questões polêmicas, está a da definição da água como um bem público “que não pode ser apropriado”. “É importante lembrar que, em 2022, entrou em vigor o novo Código de Águas chileno, que foi aprovado por unanimidade pelo Congresso em 2021, após 11 anos de tramitação e negociação. A convenção constitucional simplesmente ignorou esse processo e criou sua própria regra, passando por cima do que foi acordado no Congresso”, criticou Javiera. 

Segundo a ativista política, a nova regra poderia prejudicar inclusive pequenos agricultores chilenos, que se valem de seus terrenos irrigados como garantia para levantar empréstimos para o cultivo da lavoura. O texto constitucional rechaçado criava dúvida sobre o direito desses pequenos agricultores a se “apropriar da água”.

“Existe um consenso de que o compromisso com a defesa do meio ambiente e o desenvolvimento sustentável deve ser um dos pilares da nova Constituição, mas o fato é que o Chile ainda não tem uma estratégia clara de desenvolvimento sustentável para o século 21. Esta é uma tarefa que cabe ao governo e ao Congresso”, disse Gloria.

Redação da nova carta deve ser concluída o quanto antes

Por fim, as convidadas alertaram para a importância do processo de criação de uma nova Constituição ser concluído com êxito em um prazo relativamente curto. “Em 2024, teremos eleições regionais (governadores) e municipais (prefeitos e vereadores). O ideal é que a redação da nova carta e sua aprovação ocorram antes disso, para que os dois processos não se misturem”, disse Javiera.

Segundo elas, a convenção constituinte deverá ter de seis a oito meses para redigir a nova carta, após ser eleita de acordo com regras e data ainda a serem definidas pela mesa de negociação. Ao final, é provável que haja um novo plebiscito para aprovar a nova Constituição. “É preciso definir um horizonte de chegada o quanto antes para transmitir confiança à população e perspectiva de que suas demandas serão atendidas. Além disso, temos um novo governo que precisa ter condições de governabilidade para cumprir seus compromissos com os chilenos”, disse Gloria.

Assista ao vídeo completo do webinar.

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. 

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