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25 de maio de 2021

Um intelectual na política: Inquietação, formação e prática política

Conversa de FHC com dois ex-alunos que se tornaram conhecidos acadêmicos: José de Souza Martins e Maria Hermínia Tavares.

“Quando jovem, queria ser em primeiro lugar pesquisador e, depois, professor universitário. Por que me tornei político? Porque o regime militar (1964-1985) resolveu que eu era subversivo e, sem querer, acabou me empurrando para a política”, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nesta conversa online com seus colegas de profissão — e alunos na década de 1960 —, os sociólogos José de Souza Martins e Maria Hermínia Tavares de Almeida. O evento faz parte do ciclo de 4 webinars que marca o aniversário de 90 anos de FHC e o lançamento de suas memórias “Um intelectual na política”, pela Editora Companhia das Letras (2021).

“Nós, cientistas sociais, somos treinados para duvidar. Já o político não pode ter muitas dúvidas. Precisa tomar decisões, com frequência de maneira solitária, e transmitir segurança para liderar. Como foi essa passagem daquele que duvida profissionalmente para aquele que acredita?”, perguntou Maria Hermínia, professora titular aposentada da FFLCH-USP e pesquisadora sênior do CEBRAP.

“Entre a pesquisa de campo e a política há algo em comum: contato com gente. É preciso saber conversar com as pessoas, penetrar na vida e na alma do outro para entender sua realidade. Desde que me envolvi com a política, nunca fiz distinção entre pensar e fazer. Tenho um pé em cada canoa”, respondeu FHC. Apesar de ter nascido em uma família envolvida com a política brasileira há várias gerações, o ex-presidente disse que teve o “vírus da política inoculado” quando conheceu Almino Affonso e José Serra durante o exílio no Chile após o golpe de 1964.

“De volta ao Brasil, fundamos o CEBRAP e me tornei cada vez mais ambivalente, com um olho na pesquisa científica e o outro nas políticas públicas. Um belo dia (em 1978) o Ulysses Guimarães (1916-1992) me indicou para ser candidato ao Senado pelo MDB. Não era para ganhar, mas para atrair os jovens e conquistar a vaga de suplente do Montoro. Quatro anos depois, Montoro foi eleito governador e eu, que estava dando aula nos Estados Unidos, voltei ao Brasil para assumir o restante do mandato. Me dei bem no Senado, gostei da política”, contou FHC.

FHC: “Entre a pesquisa de campo e a política há algo em comum: contato com gente. É preciso saber conversar com as pessoas, penetrar na vida e na alma do outro para entender sua realidade”.

Em 1978, Fernando Henrique foi o segundo candidato a senador mais votado em São Paulo, atrás de Franco Montoro (1916-1999), também do MDB (Movimento Democrático Brasileiro, partido de oposição ao regime militar), e à frente de Cláudio Lembo, da Arena (partido de sustentação do regime). Graças ao mecanismo da sublegenda, a votação obtida garantiu-lhe a condição de suplente de Montoro. O então professor assumiu o cargo de senador em 1982, depois que Montoro foi eleito governador de São Paulo. Reeleito senador em 1986, FHC teve papel de destaque na Assembleia Nacional Constituinte (1987-1988) e deixou o Senado em 1992, quando se tornou ministro das Relações Exteriores no governo Itamar Franco (1992-95). Em 93, Fernando Henrique foi convidado a assumir o Ministério da Fazenda e, no ano seguinte, lançou o Plano Real, que controlou a inflação. Em 3 de outubro de 1994, foi eleito presidente da República no primeiro turno.

Entender o possível para conhecer e mudar a realidade

“Presidente, o senhor foi embora do Brasil porque, aos olhos de alguns, era um intelectual comunista. Professor Martins, como o sr. avalia o trabalho acadêmico de FHC dentro da tradição marxista?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor da Fundação FHC e mediador do evento. 

“O Henri Lefebvre (1901-1991) faz uma distinção entre pensamento marxista e pensamento marxiano, ou seja, o teórico, o cientista, ele pode ser marxiano porque segue o método dialético, mas ele (Lefebvre) não define isso como marxista. Aplico essa definição ao caso do Fernando Henrique. Seria um empobrecimento dizer que a obra de FHC é marxista. Na ideia vulgar de marxismo que foi sendo construída ao longo do tempo, se alguém é sociólogo não pode ser marxista; se é marxista não pode ser sociólogo. O próprio Marx (1918-1883) não era marxista”, respondeu o professor emérito da FFLCH-USP (2008).

“No início da minha vida como pesquisador, quem me influenciou foi o Prof. Florestan Fernandes (1920-1995), que era adepto da sociologia empírica, gostava de pesquisa de campo. Não tinha nada de teoria. Fui estudar Marx bem depois”, explicou FHC. “Para ser cientista social, o fundamental é ter curiosidade, inquietação. Se a gente já sabe o que vai acontecer, acabou. Eu sempre quis tentar entender o que estava acontecendo e para onde as coisas iam. Até hoje é assim. O que me interessa é a mudança, o devir.”

Para José de Souza Martins, desde o início de sua carreira como pesquisador e sociólogo, Fernando Henrique desenvolveu um método que permite trabalhar com o possível. “O possível não é o que dá para fazer, mas o historicamente possível, o que está contido nas possibilidades históricas de uma dada realidade. Conhecer o possível é fundamental para entender o que dá para ser, o que vai ser. A práxis política está lá presente e é fundamental. Que práxis temos hoje no Brasil?”, perguntou.

Segundo o sociólogo, a tese de doutorado de FHC — Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul (Civilização Brasilleira, 1961) — é uma “obra prima da sociologia brasileira, onde o método dialético foi empregado da maneira mais consistente, mais rigorosa e mais dialética”. “Mais de três décadas depois, FHC, já presidente, agiu contra a escravidão ainda existente em partes do país, ao criar o Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Forçado (Gertraf), que reduziu enormemente a escravidão por dívida no país”, lembrou o ex-professor da Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge (1993-94).

“A agenda metodológica e teórica proposta por FHC continua aberta aos sociólogos das novas gerações. É preciso prestar atenção àquilo que não somos e poderíamos ser”, concluiu. “Assim como o artista, o intelectual deve saber juntar coisas desconexas para tentar compreender e explicar a realidade. “A vida inteira, como intelectual e como político, busquei juntar coisas díspares”, completou o ex-presidente.

Uma aventura em três dimensões

“A geração intelectual de FHC, da qual faço parte, representa uma aventura em três dimensões. A primeira dimensão se caracterizou por um mergulho profundo na sociologia para entender o que havia de específico na sociedade brasileira. A segunda — a mais importante — foi a luta contra a ditadura e a conquista da democracia. A terceira buscou utilizar aquele conhecimento de forma pragmática para tentar mudar o Brasil pós-democratização”, disse Maria Hermínia Tavares de Almeida.

“Fomos marcados indelevelmente por essa transição de um país autoritário para um Brasil democrático. O que houve de positivo nos últimos 30 anos foi construído pelas forças políticas, sociais e intelectuais que estavam na luta contra a ditadura nos anos 1970 e 80. Hoje, vivemos outras estruturas de conflitos que não existiam naquela época e que representam um novo desafio”, continuou a pesquisadora do CEBRAP.

“A democracia tem de ser regada todos os dias e não tem sido bem regada. Mas ela vai se recolocar e, tenho esperança, do modo mais razoável, ou seja, por meio de eleições. Isso de ver o adversário como um inimigo a ser destruído não faz parte da nossa cultura, não tem chance de dar certo. Nós que vivemos durante a ditadura sabemos o que significa viver com medo. Ainda há tempo de retomar o caminho da democracia e da liberdade”, disse FHC.


Para saber mais:

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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.