Política externa de Trump: o que é real e o que é só retórica?
Conversamos com Nicholas Zimmerman e Ricardo Zúñiga, analistas americanos e sócios-fundadores da Dinámica Americas, e Fernanda Magnotta, professora brasileira com larga experiência na área externa.
Existem pontos de tensão e riscos significativos, que poderão determinar o rumo das relações entre os Estados Unidos de Trump e o Brasil de Lula nos próximos dois anos. Eles não se resumem ao comércio e podem se acentuar à medida que se aproximem as eleições presidenciais de 2026, se os dois presidentes entenderem que o confronto lhes interessa politicamente.
As possibilidades de cooperação existem, mas não está claro se serão exploradas. Essas possibilidades podem se concretizar caso prevaleça, no governo norte-americano, a percepção de que o confronto com o Brasil levaria ao fortalecimento dos laços entre Brasília e Beijing e, no governo brasileiro, a visão de que o país não pode prescindir de boas relações com os Estados Unidos da América, apesar do eventual antagonismo entre os atuais ocupantes da Casa Branca e do Palácio do Planalto.
“Acredito ser mais provável que, nos próximos dois anos, ocorra algum tipo de colisão diplomática entre os dois países do que o desenvolvimento de uma relação mútua pautada pelo pragmatismo. As eleições presidenciais de 2026 no Brasil representam um grande risco para a dinâmica das relações bilaterais. Mas esta é uma história ainda em aberto”, disse o analista e consultor norte-americano Nicholas Zimmerman, que não duvida da possibilidade de o governo Trump apoiar ostensivamente um candidato da atual oposição à Presidência da República. Zimmerman foi diretor para o Brasil e o Cone Sul no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca durante o governo Obama e hoje atua como consultor.
“O presidente Donald Trump não valoriza relações bilaterais ou regionais, nem mesmo com aliados tradicionais. É obcecado por alguns temas. Na América Latina, ele tem três focos: combater a imigração ilegal, inclusive com a deportação de milhares de latino-americanos para seus países de origem; dificultar que o crime organizado, sobretudo o narcotráfico, atue no mercado norte-americano a partir dos países da região; e reduzir a crescente influência da China na América Latina”, afirmou Ricardo Zúñiga, que por 30 anos serviu como diplomata de carreira e foi assessor especial de Obama para a América Latina.
Perguntado sobre até onde Trump poderia ir para impor os interesses norte-americanos na região, Zúñiga não descartou o uso pontual de força militar, dando como exemplo o emprego de drones para atacar cartéis da droga no México e o deslocamento de navios militares para as proximidades do Canal do Panamá.
Ainda assim, o ex-diplomata, agora consultor, frisou que o Brasil e os EUA podem buscar estabelecer canais de negociação nas três áreas que o presidente Trump considera prioritárias para os interesses dos EUA na América Latina. No caso do combate ao crime organizado, enxerga uma oportunidade real de cooperação, já que se trata de um problema crescente no Brasil e que exige colaboração internacional para ser enfrentado.
Fernanda Magnotta, professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP, também se mostrou preocupada. Advertiu que o Brasil não deixará de ser atingido pelo protecionismo americano: “Embora os EUA não tenham déficit comercial com o Brasil – principal motivo alegado por Trump para impor tarifas sobre diversos países, entre eles seus vizinhos México e Canadá –, o Brasil pode ser prejudicado pelas tarifas de 25% sobre aço e alumínio”, previsão que se mostrou acertada com a imposição de sanções sobre esses produtos a partir de 11 de março.
Magnota também apontou o risco de uma crise diplomática mais grave, motivada por razões políticas. “Tenho falado com diplomatas que dizem ter a percepção de que estamos perto de uma crise, embora ela possa não acontecer. Gostaria de ser otimista, mas creio que conflitos entre os governos Trump e Lula serão inevitáveis, sobretudo com a aproximação das eleições de 2026 no Brasil”, continuou a PhD em Relações Internacionais, com especialização nas relações entre EUA, China e América Latina.
A convite da Fundação FHC, Zimmerman e Zúñiga, sócios-fundadores da Dinámica Americas, empresa de consultoria sediada em Washington D.C., e Magnotta participaram do webinar “Política externa de Trump: o que é real e o que é só retórica?”, que teve o Brasil como foco e a América Latina como pano de fundo. Temas globais também foram abordados.
O debate aconteceu em 26 de fevereiro, no mesmo dia em que o Itamaraty e o Departamento de Relações com o Hemisfério Ocidental (divisão do Departamento de Estado dos EUA) se estranharam publicamente em relação a uma decisão do ministro Alexandre de Moraes (STF) que bloqueou a rede social Rumble no Brasil. O órgão norte-americano classificou a decisão como “incompatível com valores democráticos”. Em resposta, o Ministério das Relações Exteriores brasileiro disse ter recebido a crítica “com surpresa” e não aceitar a politização de decisões judiciais.
Atuação do Brasil como presidente do BRICS em 2025 será fundamental
“Daqui de Washington, não sei avaliar até que ponto o presidente Lula estaria disposto a fazer concessões a este universo transacional de Trump, onde os interesses norte-americanos são colocados em primeiro lugar, com a ameaça de medidas punitivas contra quem não estiver disposto a negociar. O fato de o Brasil ser um dos cinco membros fundadores dos BRICS, presidir o grupo em 2025 e ser anfitrião da próxima cúpula dos BRICS (prevista para acontecer em julho no Rio de Janeiro), tudo isso coloca uma camada extra de riscos, mas também de oportunidades, para as relações com o governo Trump”, explicou Zimmerman.
O consultor, membro do The Wilson Center´s Brazil Institute (Washington D.C), lembrou que Trump já disse publicamente que reagirá com força caso o BRICS decida seguir adiante com a proposta de “desdolarizar” as trocas comerciais entre os países do grupo.
“A ideia de criar alternativas para o monopólio do dólar no comércio mundial é cara a Lula. Se insistir nisso, sobretudo neste ano em que está à frente do BRICS, o Brasil e os demais países do grupo poderão ser alvo de tarifas de até 100%. É preciso cuidado para evitar que questões ideológicas acabem empurrando Brasília para mais perto da órbita de Beijing, o que seria um estímulo à abordagem punitivista de Trump”, disse.
Estudiosa das relações entre EUA, China e América Latina, Fernanda Magnotta também alertou para a importância do Brasil agir com cautela ao presidir o BRICS neste ano: “A crescente rivalidade com a China é uma grande preocupação de Trump, que encontra eco tanto entre os congressistas republicanos como democratas. Se o Brasil, à frente do BRICs, adotar posturas que possam ser vistas como pró-China, isso poderá criar a tempestade perfeita para uma crise diplomática com os EUA.”
O presidente Donald Trump não valoriza relações bilaterais ou regionais, nem mesmo com aliados tradicionais. É obcecado por alguns temas. Na América Latina, ele tem três focos: combater a imigração ilegal; dificultar que o crime organizado, sobretudo o narcotráfico; e reduzir a crescente influência da China na América Latina.
Ricardo Zúñiga, que por 30 anos serviu como diplomata de carreira e foi assessor especial de Obama para a América Latina
Regulação das mídias sociais pode colocar Trump e Lula em rota de colisão
Outro tema caro a Lula que pode azedar a relação com Trump é o projeto de regulamentação das mídias sociais, que tramita no Congresso Nacional há alguns anos, sem avanços significativos. O PT e outros partidos da base governista são, em princípio, favoráveis, mas o assunto é complexo, dividindo inclusive os especialistas, e enfrenta oposição tanto das grandes empresas de tecnologia (as chamadas big techs) como da oposição bolsonarista.
“Se o presidente Lula colocar o seu peso político em defesa de uma nova lei que regulamente as mídias sociais no Brasil – algo que as big techs temem que possa se tornar modelo para outros países –, é provável que algumas das plataformas de mídia social mais poderosas e influentes do mundo decidam fomentar um clima desfavorável ao governo nas redes sociais, por meio da veiculação de fake news e desinformação política, e apoiem o candidato com melhores chances de derrotar Lula ou seu indicado em 2026”, disse Zimmerman.
“Se Trump e seus aliados também trabalharem abertamente em favor do candidato da direita, seja ele quem for, Lula será tentado a abrir mão do pragmatismo e contra-atacar, o que levaria a uma intensificação da polarização política e agregaria mais toxicidade à dinâmica das relações bilaterais”, continuou.
Segundo o analista, a aliança entre Trump e as big techs, escancarada nos últimos meses, já produziu uma campanha nas redes sociais com objetivo de minar a credibilidade do Judiciário brasileiro, tendo como alvo principal o ministro Alexandre de Moraes.
“As ideologias dos governos Lula e Trump são completamente diferentes, assim como as prioridades estratégicas e as agendas programáticas de cada um. Essas incompatibilidades tendem a causar conflitos. O problema pode piorar porque, no momento, os canais oficiais de comunicação entre Washington e Brasília são muito limitados. Se houver uma crise mais grave, teremos dificuldade em sermos ouvidos. Daí a necessidade de construir confiança em alto nível”, disse Magnotta.
Brasil tem reservas de minerais raros que interessam aos EUA e podem facilitar acordo com Trump
Segundo Zúñiga, além de possibilidades de cooperação no combate ao crime organizado nas Américas, o governo brasileiro pode acenar com algum tipo de acordo com os EUA para a exploração de reservas de minerais de terras raras, cruciais para as indústrias de defesa, nuclear e de tecnologia, entre outras.
“Embora o Brasil esteja entre os países do mundo com maiores reservas desses minerais raros, o país ainda não é um produtor relevante e precisa de investimento para explorá-las e agregar valor a esses recursos. É uma boa oportunidade de cooperação entre os EUA e o Brasil”, disse o analista, que foi diplomata de carreira dos EUA.
Esses minerais raros – cuja produção é atualmente dominada pela China – estão no centro das conversas entre Trump e o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky. Nas conversas para conseguir um cessar-fogo da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, o líder norte-americano exigiu que Zelensky assinasse um acordo em que cederia aos EUA parte das reservas ucranianas desses minerais, também volumosas, como pagamento pela ajuda militar norte-americana nos últimos três anos.
“Trump não está nem aí para acordos comerciais multilaterais ou mesmo bilaterais, o que pode abrir uma oportunidade para o Brasil. Existe espaço para EUA e Brasil avançarem em acordos setoriais que sejam mutuamente benéficos em determinadas áreas específicas. E uma delas é justamente um acordo em torno desses minerais raros”, afirmou.
Gostaria de ser otimista, mas creio que conflitos entre os governos Trump e Lula serão inevitáveis, sobretudo com a aproximação das eleições de 2026 no Brasil.
Fernanda Magnotta, professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da FAAP
Mundo multipolar com o qual o Itamaraty sonhou não existe mais
Zúñiga alertou para a possibilidade de Trump, o presidente da China, Xi Jinping, e o presidente russo, Vladimir Putin, fazerem algum tipo de acordo que “divida o mundo em três zonas de influência”.
“Como o Brasil vai operar em um mundo em que os presidentes da Rússia e dos EUA parecem ter um entendimento melhor do que aquele que Putin e Lula aparentemente desenvolveram? Isso muda bastante a paisagem geopolítica para o Brasil. Usem a imaginação para refletir sobre o que será o mundo dentro de um ano ou dois, pois o que antes parecia impossível com o retorno de Trump se tornou possível”, disse.
Segundo Zúñiga, os EUA, sob o comando de Trump, vivem o início de um processo “revolucionário”, cujos resultados e consequências são imprevisíveis: “Os integrantes do primeiro escalão do governo Trump se veem como disruptivos. Eles conquistaram o poder em Washington para mudar os Estados Unidos, como o governo funciona e opera interna e externamente. Trump é a força unificadora entre várias facções republicanas e a resistência, mesmo entre democratas, tem sido mínima.”
“Se vocês tivessem a oportunidade de aconselhar o governo brasileiro sobre como lidar com Trump, o que diriam?”, perguntou o cientista político Sergio Fausto, diretor geral da Fundação FHC, aos três palestrantes.
“O mundo multipolar que vemos hoje é diferente daquele que abstratamente o Itamaraty imaginava que fosse surgir no início do século 21, com a ascensão da China e dos demais membros-fundadores dos BRICS. Independentemente das diferenças ideológicas, é do interesse do governo Lula encontrar maneiras de cooperar com a América de Trump. Isso pode ser feito agindo pragmaticamente, sem abrir mão de sinergias econômicas e geopolíticas que Lula identifica em sua relação com Beijing e os BRICS”, respondeu Nicholas Zimmerman.
“Façam um inventário detalhado de quais são seus interesses na relação com os EUA e ajam com pragmatismo para garantir que alguns deles sejam atendidos, pois a negociação será dura”, sugeriu Zúñiga.
“Esta é a hora de diversificar os parceiros porque isso significa diversificar riscos e oportunidades. Foquem em agendas comuns e evitem choques em temas sensíveis. E, se for necessário partir para o enfrentamento, façam isso em grupo, não de maneira isolada”, propôs Magnotta.
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Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.