Os efeitos da Covid-19 na geopolítica
Neste debate, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o embaixador Sergio Amaral conversaram com o cientista político norte-americano Joseph Nye.
As economias norte-americana e chinesa estão de tal forma entrelaçadas que dificilmente ocorrerá uma “nova guerra fria”. “Os Estados Unidos mantêm relações econômicas com a China como nunca tiveram com a União Soviética. Esse nível de entrelaçamento econômico é o oposto do que caracterizava a relação entre as duas grandes potências do mundo entre 1945 (fim da Segunda Guerra) e 1991 (dissolução da URSS)”, disse o cientista político norte-americano Joseph Nye neste webinar, que teve comentários do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e do embaixador Sergio Amaral.
Nye descartou a ideia de que uma das possíveis consequências da pandemia do novo coronavírus seria o fim do processo de globalização. “O que pode acontecer é a pandemia reforçar o ‘tipo ruim de globalização’ em detrimento do ‘tipo bom de globalização’”, disse Nye, co-criador, junto com seu colega Robert Keohane, da teoria da interdependência e da interdependência complexa nas relações internacionais, apresentada por ambos no já clássico livro “Power and Interdependence: World Politics in Transition” (Little, Brown, 1977).
“Em vez de pensar a curto prazo e naquilo que consideram ser seu próprio interesse imediato, os principais países devem adotar uma visão mais ampla que inclua os interesses dos demais”, afirmou o palestrante, tese defendida em seu livro mais recente “Do Morals Matter? Presidents and Foreign Policy from FDR to Trump” (Oxford University Press, 2020).
De acordo com o professor de Harvard, é falsa a impressão de que países autoritários, capazes de impor um confinamento rígido à sua população, teriam se saído melhor no enfrentamento da Covid-19. Como exemplos positivos no mundo democrático, ele destacou Alemanha, Coreia do Sul e Nova Zelândia, que conseguiram controlar a pandemia em seu momento mais crítico com transparência e colaboração entre governo e sociedade.
Tanto os EUA, sob liderança de Donald Trump, como a China falharam, na visão do palestrante. “Pequim e Washington negaram a gravidade da pandemia logo no início, responderam com atraso e agora jogam a culpa um contra o outro”, afirmou.
Um dos autores do conceito de soft power, Nye destacou que o principal ponto de conflito entre EUA e China atualmente é quem vai controlar as tecnologias críticas para o exercício do poder político e econômico no futuro previsível. Essa disputa se manifesta, por exemplo, na tentativa de Washington de bloquear o avanço da chinesa Huawei na oferta da tecnologia 5G mundo afora.
‘Brasil não deve escolher um lado’
Em seus comentários, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse que o Brasil deve evitar se alinhar automaticamente a Washington ou Pequim: “Uma das vantagens de estarmos fora do centro da disputa é que não precisamos escolher um ou outro lado. Este é o momento de ter paciência histórica, observar e agir com cautela.”
Sergio Amaral, embaixador do Brasil em Washington entre 2016 e 2019, lembrou que o Brasil está mais alinhado com os EUA em termos morais e culturais, mas disse que a China é uma realidade econômica que não pode ser menosprezada. “A competição entre China e EUA está presente em toda a América Latina, inclusive no Brasil. Ela vai nos deixar espaço para autonomia? Devemos lutar por isso, mas não é fácil”, disse Amaral, membro do Conselho da Fundação FHC e do CEBRI, co-realizador do evento.
“O Brasil não precisa escolher entre Washington e Pequim porque não é de seu interesse. Mas, devido à longa história de compartilhamento de valores fundamentais e interesses econômicos entre Brasil e EUA, o Brasil pode atuar junto ao governo americano para fortalecer a ideia de que o melhor caminho é a cooperação internacional”, concluiu Nye.
“O Brasil sempre teve a capacidade de construir pontes. Não podemos abrir mão disso”, disse FHC.
Ausência de lideranças globais
FHC e Nye lamentaram a ausência de líderes mundiais com capacidade e energia para exercer uma liderança global em um momento de tantas transformações. Falta visão de futuro, pensar grande.
“A Alemanha ocupou a França durante a Segunda Guerra, mas, após o final do conflito, Paris não teve uma atitude vingativa. Pelo contrário. Sob a inspiração de Jean Monnet (consultor do governo francês na época), França e Alemanha criaram a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço, embrião da atual União Europeia. Hoje a ideia de uma guerra entre França e Alemanha é algo inimaginável. A liderança transformou as relações entre esses dois grandes países”, disse Nye.
FHC concordou: “Trump e Xi Jinping não são lideranças transformadoras. Diante da ameaça global do coronavírus, poderiam ter cooperado, por exemplo, para criar um fundo mundial para desenvolver vacinas contra a Covid-19, em que os países mais pobres não ficassem de fora. Esse tipo de atitude muda o jogo geopolítico global.”
Eleições nos EUA
Para Nye, existe um consenso em Washington de que é preciso conter a China em questões relacionadas ao comércio mundial, devido ao forte subsídio estatal às empresas chinesas, e à propriedade intelectual, pois a China violaria essas regras.
“Republicanos e democratas concordam que essas práticas chinesas devem ser contidas. Se Joe Biden vencer (a disputa pela Casa Branca em novembro próximo), essa contenção se fará pelo fortalecimento de antigas alianças dos Estados Unidos. Se Trump for reeleito, a confrontação entre China e EUA deverá se acirrar, em detrimento do multilateralismo e das possibilidades de cooperação”, disse o cientista político. Os democratas também devem exigir maior respeito aos direitos humanos por parte de Pequim, como no caso da repressão aos protestos pela democracia em Hong Kong.
“Assim como os EUA, o Brasil não pode abrir mão de nossos compromissos morais em defesa dos direitos humanos, da democracia e da liberdade”, afirmou FHC.
Beatriz Kipnis, bacharel e mestre em Administração Pública e Governo (FGV-SP), é assistente de coordenação de estudos e debates da Fundação Fernando Henrique Cardoso.