Debates
03 de fevereiro de 2021

Os desafios da América Latina na saída da pandemia – Um diálogo entre FHC e Luis Alberto Moreno

A região deve apostar no multilateralismo para superar os efeitos destrutivos da pandemia de Covid-19.

A América Latina está diante de um grande desafio social e econômico: por um lado, a pandemia acabou com cerca de 40 milhões de empregos na região, principalmente em pequenas e médias empresas e nos setores de serviços, turismo e restaurantes; por outro, houve uma aceleração da transformação digital e da inovação, o que abre novas oportunidades de trabalho, mas exige adaptações rápidas nos sistemas educacionais e programas de treinamento para preparar melhor a mão-de-obra para um futuro que já chegou. Também os sistemas de saúde latino-americanos precisam incorporar tecnologia para reduzir custos e aumentar sua qualidade e abrangência.

No plano internacional, a América Latina deve apostar no multilateralismo — aproveitando a oportunidade surgida com a posse de Joe Biden na Casa Branca — para que o mundo supere de forma mais equilibrada os efeitos destrutivos da pandemia do novo coronavírus. A mudança climática — “outra crise de grandes proporções que está batendo às nossas portas” — também exige urgente cooperação global. Contendo alguns dos mais importantes ecossistemas do planeta, como a Amazônia, a região deve assumir um papel relevante na política global do clima.

Estas foram as principais mensagens trazidas pelo ex-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (2005-2020) Luis Alberto Moreno, em conversa virtual com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. “Lamentavelmente o que temos visto durante a pandemia é um mundo de ‘salve-se quem puder’. O maior exemplo disso é a acumulação de vacinas pelos países desenvolvidos, com contratos de compra que superam em duas ou até três vezes suas necessidades populacionais, como estamos vendo acontecer na União Europeia e no Canadá”, disse o diplomata colombiano.

Moreno defendeu maior integração entre os países latino-americanos, algo que foi muito discutido em diversos momentos da história, mas pouco avançou na prática. “Há um provérbio africano que diz: ‘Se quer ir rápido, vá sozinho; se quer ir longe, vá em grupo.’ É fundamental retomarmos a visão de conjunto na América Latina para enfrentarmos de maneira convergente os grandes desafios do momento, entre eles a vacinação contra a Covid-19 e o endividamento decorrente dos auxílios emergenciais concedidos durante a pandemia. Juntos, também podemos nos posicionar melhor frente à disputa entre Estados Unidos e China”, afirmou o ex-embaixador da Colômbia em Washington.

“A minha geração de intelectuais e políticos forjou uma relação bastante próxima uns com os outros, em grande parte devido à luta contra as ditaduras latino-americanas entre os anos 1960 e 1980. Alguns de nós fomos forçados ao exílio, estudamos e lecionamos em universidades de países vizinhos, fizemos pesquisas e escrevemos trabalhos juntos. De volta a nossos respectivos países, viajávamos para participar de congressos e falávamos ao telefone com frequência. À medida que assumimos posições de liderança, inclusive à frente de governos, esse contato pessoal deu bons frutos”, lembrou FHC. Veja como foi o debate em comemoração aos 50 anos da obra ‘Dependência e Desenvolvimento na América Latina’, escrita por FHC e Enzo Faletto (Chile, 1935-2003).

FHC: ‘Populismo se combate com moderação e esperança’

O ex-presidente lembrou que a pandemia atingiu o Brasil e outros países da região em um momento em que a economia já estava debilitada pela recessão de anos anteriores, aprofundando ainda mais problemas crônicos como a desigualdade e o desemprego. “Já vivíamos uma situação bem dramática e a pandemia poderia ter sido um momento propício para enfrentarmos essas questões de forma mais consistente e sustentável. O auxílio emergencial, cuja aprovação partiu do Congresso, representou uma grande ajuda aos mais necessitados em um momento crucial”, disse. Entretanto, não é uma solução sustentável a médio prazo.

Segundo FHC, o sistema político-partidário ainda não se deu conta da mudança de percepção dos cidadãos, que vêem a política completamente dissociada de suas vidas. “Existe um descolamento dos políticos, que parecem viver em uma bolha, enquanto a população está em situação muito difícil. Esse contexto pode complicar ainda mais o cenário social, econômico e político e abrir espaço para o fortalecimento do populismo (de direita ou de esquerda)”, disse.

“É preciso saber se opor ao fenômeno do populismo com moderação e oferecendo esperança, mas não vejo no mundo político brasileiro ninguém conseguindo fazer isso no momento”, concluiu.

Moreno: ‘Perda de confiança e raiva cidadã’

“Com a pandemia, a desigualdade social não vai se aprofundar apenas dentro de nossos países, mas também entre os países. Junto vêm a perda de confiança dos cidadãos em suas instituições e a raiva da cidadania, que se sente perdida e abandonada”, disse Luis Alberto Moreno. Para o ex-presidente do BID, a atual crise deve ser aproveitada para “de uma vez por todas criarmos iniciativas e políticas capazes de gerar mudanças profundas em nossas sociedades.”

“Temos muitos exemplos concretos de ações bem-sucedidas, mas políticas públicas que atinjam milhões de pessoas com eficácia são raras”, afirmou. Como exemplo de projeto com bons resultados no Terceiro Setor, ele citou a ONG Laboratoria, que auxilia mulheres já formadas, mas sem perspectivas de entrar no mercado, a desenvolver habilidades digitais. Criada originalmente no Peru, já atua no México, na Colômbia e no Chile.

Moreno lembrou que a pandemia de Covid-19 afetou principalmente os trabalhadores informais — que somam cerca de 50% da população economicamente ativa na América Latina —, as mulheres, as crianças e os jovens, que em diversos países (entre eles o Brasil) já ficaram um ano inteiro longe da escola.

“Em 2021, ocorrerão 13 eleições importantes na América Latina, algumas delas presidenciais. São uma excelente oportunidade para discutirmos o contrato social que temos, dando ênfase à educação e à saúde, à capacitação profissional e à criação de empregos, à ciência e à tecnologia”, disse.

Moreno defendeu a importância de um diálogo mais profundo entre o setor público e a iniciativa privada na América Latina. “Em nossa região, metade das vagas de emprego que exigem maior capacitação não são preenchidas por falta de mão-de-obra qualificada. Os setores público e privado precisam fazer uma mudança radical para otimizar oferta e demanda no mercado de trabalho”, afirmou.

“A energia que existe nas populações de nossos países é muito forte”, disse Fernando Henrique Cardoso. “O governo precisa ajudar, mas o ímpeto virá da sociedade civil e do desejo das pessoas de evoluir, sobreviver e ir adiante”, concluiu o ex-presidente brasileiro.


Para saber mais: 

Leia a nota técnica da OIT sobre os impactos da Covid-10 no mercado de trabalho na América Latina e no Caribe (set.2020).

Conheça o El Hilo, podcast narrativo da Rádio Ambulante Estudios, que se propõe a cobrir as notícias mais importantes da América Latina.

Visite o Latinoamérica 21, espaço jornalístico colaborativo dedicado a questões políticas, econômicas e sociais sobre a América Latina.

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.