O lugar da América Latina em um mundo em transformação
“A China tem objetivos que não acabam amanhã. Quais são nossos objetivos? Como vamos nos posicionar no mundo? Só falamos do dia a dia, falta visão para compreender e planejar o futuro”, disse Fernando Henrique Cardoso.
“A América Latina não está respondendo, enquanto unidade, a um mundo turbulento. Faltam posições concertadas de nossos países aos desafios contemporâneos.”
Enrique Iglesias, economista, foi ministro das Relações Exteriores do Uruguai e presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
“A China tem objetivos que não acabam amanhã. E nós, na América Latina? Que papel queremos desempenhar? Só falamos do dia a dia, mas qual a estratégia para o futuro?”
Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, ex-presidente da República (1995-2003) e presidente da Fundação FHC
O primeiro é economista, nasceu na Espanha e se naturalizou uruguaio, foi presidente do Banco Central e ministro das Relações Exteriores de seu país, secretário executivo da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina, órgão ligado à ONU) e presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). O segundo é sociólogo, brasileiro, foi senador e presidente do Brasil. Conhecem-se há mais de cinco décadas e durante todos esses anos têm tido influência nos debates e iniciativas para o desenvolvimento econômico e social da América Latina e nas experiências de integração da região.
Enrique V. Iglesias e Fernando Henrique Cardoso se reuniram mais uma vez no início de abril na Fundação Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, para um diálogo sobre “O lugar da América Latina em um mundo em transformação”. Leia abaixo os principais momentos do encontro.
Fernando Henrique Cardoso – “Conheço Enrique Iglesias há muitas décadas. Quando nos encontramos pela primeira vez, creio que no final da década de 60, ele já era famoso no Uruguai e presidia o Banco Central. Nas décadas seguintes, participou de toda a institucionalização da ideia de uma América Latina mais unida e integrada, primeiro na CEPAL e depois no BID. Mas, antes de começarmos a nossa conversa, ele terá que admitir que é mais velho do que eu…” (risos)
Enrique V. Iglesias – “Estou muito feliz de voltar a São Paulo e à Fundação FHC.”
FHC – “Antes de passar a palavra a nosso convidado, gostaria de lembrar que nossa geração foi beneficiada pelo fato de que, durante a Guerra Fria, Henry Kissinger (secretário de Estado dos EUA entre 1973 e 1977) convenceu o presidente Nixon a, em vez de entrar em conflito com a China comunista, construir uma relação de outra natureza com Pequim. Aquela política de aproximação entre EUA e China, no entanto, está sendo posta em xeque com a chegada à Casa Branca de Donald Trump (2017).
Nas últimas décadas, os chineses colocaram em prática diversas teorias de desenvolvimento, como a do ‘socialismo harmonioso’, que não sei bem o que significa, mas deu certo. Agora estão envolvidos no projeto ‘One Belt, One Road’ (também chamado de ‘Rota da Seda do Século 21’), para integrar o imenso território e a economia chinesa à vasta massa geográfica e humana da Eurásia. Sem dúvida, como Kissinger e Nixon previram, estamos presenciando a emergência de um novo pólo de poder mundial e, quem sabe, a teoria da ‘armadilha de Tucídides’, segunda a qual uma potência emergente acaba por entrar em choque com a potência anterior, desta vez possa ter um resultado diferente.
Ninguém melhor do que Enrique Iglesias para nos ajudar a refletir e pensar sobre os impactos dessa nova realidade mundial na América Latina e qual o espaço que nos corresponde no novo equilíbrio ou desequilíbrio de forças do planeta.”
Iglesias – “Quando uma época está por terminar e outra está começando, vivemos tempos de incômodo e inquietude . Não há dúvida de que vivemos uma mudança de época, com todos os impulsos que conhecemos. Há uma perda de confiança no sistema institucional que teve início com a criação da ONU em 1945, com os Acordos de Bretton Woods, que lançaram as bases do sistema financeiro internacional, e com a criação do GATT (General Agreement on Tarifs and Trade), que décadas mais tarde daria lugar à OMC (Organização Mundial do Comércio). Durante cerca de 70 anos, esse sistema, ainda que imperfeito, possibilitou que o mundo buscasse resolver seus problemas por meio do diálogo, evitando guerras como no passado. De uns tempos para cá, no entanto, o multilateralismo está cambaleando, e isso coloca em xeque o princípio ético da solidariedade entre as nações.
Em 1945, ao final da Segunda Guerra e quando começou a ‘pax americana’, 40% dos habitantes da Terra viviam na pobreza extrema. Hoje, os mais pobres representam aproximadamente 10% do total da população mundial. Nesse período, a população mundial se multiplicou por três, já a produção cresceu doze vezes. Em termos econômicos, sociais e políticos, os últimos 70 anos foram os mais brilhantes da humanidade. É importante reconhecer isso para entender onde estamos e para onde vamos. Como administrar as expectativas das classes médias é uma das questões fundamentais em todo o mundo.”
FHC – “Essas palavras iniciais são importantes. O mundo melhorou desde o final da Segunda Guerra. As sociedades avançaram, não regrediram. O Brasil também. Muita coisa melhorou. Está bom? Não, tem muita coisa a ser feita. É importante dialogarmos e buscarmos o interesse comum dentro dos países e entre os países. O Brasil sempre foi um defensor do multilateralismo, que foi para nós uma bóia de salvação para não termos de nos sujeitar ao controle de um só país, os Estados Unidos.”
Iglesias – “A revolução digital e tecnológica que estamos vivendo já há algumas décadas nos traz surpresas todos os dias e torna muito difícil imaginar o que acontecerá daqui a cinco anos. Ela tem impactos em todos os aspectos da vida, das sociedades e da economia e está no centro da atual disputa entre EUA e China. Pequim e Washington disputam espaços comerciais e nos investimentos mundo afora, mas o verdadeiro embate hoje está no campo das novas tecnologias, das patentes etc. A China tem investido fortemente para se consolidar também como potência tecnológica. Os EUA estão conscientes disso e já ameaçam impor sanções a países que importem certos produtos tecnológicos chineses. Espero que não aconteça, mas pode acontecer. Quem mandará em matéria de tecnologia nas próximas décadas?
O mundo vive uma fase de realinhamentos. Rússia e China constroem uma nova relação, a Europa passa por um momento complicado com o Brexit e também há um esfriamento nas relações europeias com os EUA, em especial após a posse de Trump. Hoje, o poder demográfico e econômico está no Pacífico, onde vive cerca de 60% da população mundial e onde estão as maiores taxas de crescimento econômico.
Também não podemos perder de vista as mudanças em outras partes do mundo. Em 2100, a África terá 56% da população mundial, concentrada em sua maioria na costa do Oceano Atlântico, em frente ao Brasil. Os países africanos estão avançando no sentido de uma maior integração e deverão ter papel mais relevante no mundo no futuro. Durante os governos FHC e Lula, principalmente, o Brasil iniciou um importante diálogo com alguns países africanos e não pode abrir mão disso. Ao contrário: deve usar essa experiência para propor à América Latina uma política de aproximação e de relacionamento com a África.”
FHC – “O Iglesias diz, com generosidade, que o Brasil, durante meu governo e o de meu sucessor, estreitou vínculos com países africanos. De fato, houve esse movimento, pois a África é fundamental para nós tanto do ponto de vista histórico como estratégico. Também é importante lembrar que os povos asiáticos e do Oriente Médio estão presentes há muito tempo na sociedade brasileira. Manter e aprofundar essas relações deve ser uma prioridade.
Entretanto, o novo governo defende uma aliança incondicional com os EUA, coisa que aliás ninguém havia nos pedido. Um país não faz opções incondicionais. A nós, interessa exportar para Ásia, África, Europa, países árabes, Israel, o mundo todo. Isso quer dizer que vamos brigar com os norte-americanos, que também são importantes parceiros? Claro que não. É importante ter noção do que está em jogo para agirmos de acordo com nossos interesses a médio e longo prazo.
A política externa e comercial brasileira, no entanto, não deve ser voltada exclusivamente aos nossos interesses específicos. Devido à crise do multilateralismo, ao aumento do protecionismo e ao recrudescimento da disputa entre China e EUA, não só o Brasil como outros vizinhos latino-americanos podem sofrer impactos em suas exportações e economias. Daí, a importância de nos posicionarmos como região diante das rápidas mudanças do mundo.”
Iglesias – “A América Latina não está respondendo, enquanto unidade, a um mundo turbulento. Existe uma fragmentação de objetivos e áreas de influência. Acertadamente, Colômbia, Peru e Chile estão mais interessados em aprofundar suas relações econômicas e comerciais com as potências emergentes da região da Ásia-Pacífico. O México sofre grande influência de dinâmicas internas dos EUA e, assim como a América Central, enfrenta questões graves como a violência do narcotráfico e o aumento da migração ilegal. Apesar das tentativas recentes, os países do Mercosul continuam com dificuldades de tirar o bloco da paralisia dos últimos anos. E a Venezuela passa por uma profunda crise política, econômica e humanitária, com consequências negativas para toda a região. Em um momento em que o mundo está se reorganizando em novas áreas de influência, nós, como região, não estamos trabalhando no sentido de definir posições concertadas frente aos desafios contemporâneos.
Onze países latino-americanos têm algum tipo de acordo comercial com os norte-americanos, mas até hoje não temos uma relação estruturada com os EUA. Outros 11 países têm algum tipo de acordo comercial ou de colaboração com a Europa, mas o acordo entre UE e Mercosul está há 19 anos sem solução. A partir de 2005, a América Latina viveu o ‘boom das commodities’. Alguns países aproveitaram mais, outros menos, mas nos últimos anos a região cresce em média apenas 2%, taxa insuficiente para darmos o salto necessário em termos econômicos e sobretudo sociais. Há sinais de que, em breve, o mundo poderá enfrentar uma nova crise financeira semelhante à de 2008-2009. O que estamos fazendo para nos preparar estruturalmente para esse cenário?”
FHC – “No passado, a América Latina tinha uma estratégia de desenvolvimento, em parte desenvolvida pela CEPAL. Depois, o BID foi muito atuante, inclusive no financiamento de projetos de infra-estrutura para a região. Alguns foram adiante, como o gasoduto Brasil-Bolívia, mas outros ficaram pelo caminho. A China tem objetivos que não acabam amanhã. Quais são nossos objetivos? Como vamos nos posicionar no mundo? O que queremos individualmente como nação e como países vizinhos? Que papel podemos jogar? Só falamos do dia a dia, falta visão e capacidade de compreender e planejar o futuro.”
Iglesias – “Toda nossa história tem sido de negação da necessidade de uma macroeconomia organizada para podermos resolver os desafios econômicos e sociais de forma sensata. Houve avanços e retrocessos, mas é essencial encontrarmos solução permanente para o déficit fiscal, o endividamento. Não há solução para o baixo crescimento e a desigualdade social na desordem econômica.
Outra questão fundamental é a baixa produtividade de nossas economias, que não estão em linha com a produtividade existente nos países asiáticos e em alguns países desenvolvidos. Sem uma economia mais produtiva, com mão de obra mais bem preparada e educada, como navegaremos em um mundo cada vez mais competitivo? Por que não estabelecemos alguns objetivos flexíveis de cooperação em áreas como logística e formação de recursos humanos?
Por fim, há outro fenômeno preocupante, sobre o qual Fernando Henrique entende muito mais do que eu: a erosão da confiança de nossas populações na democracia, como mostram pesquisas do Instituto Latinobarômetro, sediado no Chile. Como reformar o Estado, as empresas e a política, combater a corrupção, modernizar os partidos e a sociedade civil para que haja uma maior sensação de pertencimento? Este é um tema especialmente significativo para nossa geração, que lutou tanto pelo retorno da democracia a nossos países.”
FHC – “Em toda parte há uma crise da democracia representativa, decorrente das mudanças tecnológicas que impactaram o mundo do trabalho, as relações e a comunicação entre as pessoas, que hoje acontecem pelas redes sociais. O Estado e os partidos não acompanharam essas transformações, e as sociedades e as forças políticas estão cada vez mais polarizadas. Esse fenômeno é ainda mais visível em países populosos, como Brasil, EUA, Rússia, Índia, entre outros. Já países menores como Chile, Uruguai e Portugal têm conseguido preservar um certo diálogo político interno, que é importante. Portugal tem um presidente de centro-direita, enquanto o primeiro-ministro é de centro-esquerda. E daí? A última vez que fui ao Chile, encontrei o presidente Sebastián Piñera, que é de centro-direita, e o ex-presidente Ricardo Lagos, que é de centro-esquerda. Soube que eles conversam com frequência. No Uruguai, a convivência entre partidos é razoável. Confesso que tenho uma certa inveja disso.”
Iglesias – “Nem tudo é negativo, no entanto. A América Latina tem pontos positivos também. Apesar da alta criminalidade, somos uma região de paz entre os vizinhos. Em 120 anos, tivemos dois ou três conflitos, de pequenas proporções. A Europa viveu duas grandes guerras no século passado. E se reergueu. Por isso, sou otimista. Temos opções.”
FHC – “Sem dúvida. Não há conflitos com nossos vizinhos. Por isso, todo cuidado é pouco em relação à situação na Venezuela. Não podemos adotar posições perigosas que possam nos levar a situações impensadas, pois a Venezuela está aqui ao lado e não vai deixar de existir. Este não é um problema que possa ser resolvido de fora para dentro. Infelizmente muitos venezuelanos foram embora do país, inclusive muitos jovens, líderes políticos e empresariais, profissionais liberais, boa parte da classe média. Existe um vazio, que dificulta a futura recuperação do país. Nosso papel é de ajudar. O Brasil sempre teve a posição de evitar que potências estrangeiras tivessem maior presença aqui. Quantas vezes não fomos instados a intervir no conflito interno da Colômbia? Nunca entramos. O pior que pode acontecer é uma briga entre russos e americanos na Venezuela. Para fortalecer nossa região como um todo em relação ao mundo, devemos evitar conflitos que não são nossos e nos concentrar em educação, ciência e tecnologia, fortalecimento da democracia, defesa do meio ambiente e do clima, retornar ao multilateralismo e apostar na integração. Temos que ser fortes aqui dentro para termos mais espaço no mundo.”
Otávio Dias, jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br. Atualmente é editor de conteúdo da Fundação FHC.