O impasse político no Chile: sinal de força ou fraqueza da democracia?
Conversamos com Verónica Undurraga, advogada e doutora em Direito pela Universidad de Chile, e Kathya Araujo, socióloga e pesquisadora do Instituto de Estudios Avanzados (IDEA).
Os grandes protestos que sacudiram o Chile no final de 2019, conhecidos como estallido social, mostraram uma população politizada, mas os temas que a mobilizam não fazem parte do universo da elite política tradicional chilena. Os principais partidos estão tentando se reconectar com a sociedade, mas ainda não conseguiram estabelecer conexões estáveis. Isso explica por que o país ora parece virar à esquerda, ora à direita, e este zigue-zague parece não ter prazo para acabar.
Estas foram as principais conclusões deste webinar realizado pela Fundação FHC em 12 de dezembro, poucos dias antes do plebiscito do dia 17, em que a população decidirá, pela segunda vez em pouco mais de um ano, se aprova ou rejeita uma nova Constituição, em substituição à Carta de 1980, feita durante a ditadura Pinochet (1973-1990) e que continua em vigor até hoje, apesar de já ter passado por diversas reformas.
Participaram do encontro Kathya Araujo, professora titular do Instituto de Estudios Avanzados da Universidad de Santiago de Chile, e Verónica Undurraga, ex-presidente da Comissão de Peritos que no, decorrer de 2023, teve uma participação fundamental na tentativa de elaborar um novo texto constitucional, o qual será submetido à população em 17/12.
“Os chilenos apoiaram com entusiasmo a redação de uma nova Constituição após o estallido social, pois prometia ser um caminho democrático e institucional para dar uma resposta às demandas surgidas nos últimos anos. Entretanto, a frustração diante do fracasso da primeira tentativa de redigir uma nova carta (2021-22) resultou em uma crescente apatia da população em relação ao segundo processo constitucional (realizado no decorrer do 2023)”, explicou Kathya Araujo, diretora do Núcleo Interuniversitario Multidisciplinar Individuos, Lazo Social y Asimetrías de Poder (NIUMAP).
“Os partidos políticos tradicionais, tanto os de centro-esquerda como os de centro-direita (que governaram alternadamente o país dos anos 1990 até recentemente), foram progressivamente perdendo contato com a população, deixando espaços vazios que foram ocupados por forças mais radicais, à esquerda e à direita. Isso ficou muito claro durante o processo constitucional”, continuou Araujo.
“A atual crise não coloca em risco a democracia chilena, mas sim os políticos, que não têm demonstrado capacidade de liderança”, disse Kathya Araujo.
Em setembro de 2022, 60% dos chilenos rejeitaram a primeira proposta, que foi elaborada por uma Assembleia Constituinte eleita em maio de 2021, com paridade de gênero e quotas para populações originárias. Naquela primeira tentativa, houve um predomínio das forças políticas mais à esquerda, em especial de movimentos sociais cujos membros foram eleitos na lista dos independentes, ou seja, sem filiação a partidos.
O texto resultante expressou a preferência dessas forças e não um denominador comum. Continha mudanças que mexiam com pilares bem assentados do Estado chileno, como o sistema bicameral (propunha-se a eliminação do Senado) e o seu caráter unitário (criava-se um Estado plurinacional, a exemplo da Bolívia).
Diante da rejeição do projeto, desenhou-se um novo processo. Se na primeira vez, o sistema político havia aberto as portas para a participação direta dos movimentos sociais e dos povos originários, na segunda as portas foram fechadas. Encarregou-se uma comissão formada por acadêmicos e políticos veteranos da elaboração de um anteprojeto de Constituição.
Este foi submetido, em seguida, a uma Convenção Constitucional, formada por membros eleitos pela população em maio de 2023, a partir de uma lista de candidatos indicados pelos partidos políticos. A eleição para a Convenção foi vencida pelo Partido Republicano, de ultradireita, cujo líder, José Antonio Kast, é forte candidato à sucessão do atual presidente de esquerda, Gabriel Boric, eleito em dezembro de 2021.
Esquerda dominou a primeira Convenção; direita tentou impor sua visão na segunda
Segundo Verónica Undurraga, professora da Universidad Adolfo Ibáñez, o anteprojeto da nova Constituição refletiu, apesar das divergências, um consenso razoável entre os membros da comissão, que ela presidiu. Porém, quando o texto chegou à Convenção Constitucional, a maioria de direita resolveu impor a sua visão, utilizando a Convenção como um palco para se cacifar rumo às eleições presidenciais de 2025. Essa estratégia pode ter sido um tiro n’água, se as pesquisas sobre o plebiscito se confirmarem. Assim como rejeitou o primeiro projeto de Constituição (que pendeu para a esquerda), a maioria dos chilenos parece disposta a rejeitar o segundo (que se inclina à direita).
Segundo as palestrantes, a sociedade chilena já não é mais aquela que deu sustentação às coalizões de centro-esquerda e centro-direita que se revezaram no poder (a maior parte do tempo nas mãos da centro-esquerda) entre 1990 e 2020, quando se iniciou o longo e inacabado processo constitucional. A sociedade mudou e o eleitorado, mais ainda, com a introdução do voto obrigatório nos últimos anos.
“Está na hora de os partidos deixarem de lado os interesses políticos imediatos e começarem a pensar a longo prazo. A debilidade dos partidos para liderar tem produzido muita frustração na sociedade, que continua a apostar em uma saída institucional para a crise, mas exige soluções concretas para seus problemas”, disse Undurraga.
Democracia chilena não está sob risco, segundo palestrantes
“A atual crise não coloca em risco a democracia chilena, mas sim os políticos, que não têm demonstrado capacidade de liderança. Todo esse processo que estamos vivendo revela claramente que existe um bloqueio no diálogo entre as forças político-partidárias, que começou há mais de uma década e se intensificou nos últimos quatro anos, com a entrada de novos atores no cenário político”, concordou Araujo.
O oposicionista José Antonio Kast, com um discurso de ultradireita, e Gabriel Boric, que lidera um governo mais à esquerda, têm sido os protagonistas deste embate polarizado. Ambos disputaram o segundo turno das eleições presidenciais de 2021, vencida pelo último.
Nenhuma das palestrantes arriscou falar sobre o que pode acontecer no Chile caso a nova proposta de Constituição seja rechaçada no dia 17 de dezembro, mas, segundo Undurraga, a direita está numa posição mais confortável: “Apesar de a ultradireita ter tentado fazer uma nova Constituição ainda mais liberal na economia e muito conservadora nos costumes, ela não teria muito problema em continuar com a Carta atual, herdada de Pinochet. A frustração seria maior no espectro mais à esquerda da sociedade e do mundo político”, disse.
Já o presidente Gabriel Boric ainda tem dois anos de mandato pela frente e precisa entregar resultados, sobretudo na área social. Para ele, é importante que o atual processo chegue a uma conclusão, mesmo que a nova Constituição, se aprovada, não traga os avanços inicialmente imaginados pela esquerda chilena. “Espero que este processo seja finalmente concluído no próximo dia 17. O Chile é um país com muitos recursos e potencialidades, precisamos virar essa página e seguir adiante”, concluiu Undurraga.
“Nos últimos anos, vivemos como se estivéssemos em uma montanha russa, e o Chile é um país acostumado a viver com regras claras. Recuperar a estabilidade político-institucional é um passo importante para retomarmos o desenvolvimento socioeconômico, com bases mais justas e sustentáveis”, concluiu Araujo.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.