O antirracismo é uma luta identitária?
Neste debate, recebemos Djamila Ribeiro, uma das principais intelectuais brasileiras dedicadas à reflexão crítica sobre as relações entre raça, gênero e classe nas dinâmicas sociais do país.
A luta contra o racismo no Brasil é frequentemente tratada como uma pauta “identitária” — e, por isso, deslegitimada ou hierarquizada em relação a outras causas sociais. Mas o que está realmente em jogo quando se fala em identidade, raça, classe e gênero como dimensões entrelaçadas da desigualdade brasileira?
A filósofa e escritora Djamila Ribeiro participou de um encontro promovido pela Fundação FHC para discutir esse tema, que considera central para a construção de uma sociedade mais justa. Em diálogo com Sergio Fausto (diretor geral da Fundação FHC) e Celso Lafer (presidente do Conselho da Fundação FHC), ela argumentou que o antirracismo não é uma pauta particular, mas uma luta estrutural e estruturante da democracia. E que a interseccionalidade — conceito-chave da sua produção — é tanto uma ferramenta teórica quanto prática: ajuda a visibilizar experiências diversas e a desenhar políticas públicas mais eficazes.
Djamila mobilizou conceitos, dados e experiências pessoais para desconstruir falsas oposições e reafirmar uma ideia: não é possível transformar o Brasil sem compreender as articulações entre racismo, sexismo e desigualdade econômica.
Identidade, universalismo e o “outro”
Djamila iniciou sua fala com uma crítica contundente à ideia de universalismo que historicamente sustentou a branquitude como norma. “A masculinidade branca também é uma identidade. A branquitude também é uma identidade”, afirmou. Segundo ela, o sujeito branco e masculino se construiu como padrão universal a partir do qual todos os outros são definidos como “particulares”. Djamila ressaltou que o poder hegemônico raramente se vê como específico ou localizado, “identitários são sempre os outros”.
Essa lógica, argumenta ela, legitima uma hierarquia de saberes e existências. O homem branco, ao se colocar como neutro e universal, recusa a alteridade e bloqueia a possibilidade de troca. “Ele não se coloca numa posição de escuta ou de troca, mas como norma da qual todos os outros diferem.
Ela lembrou que o Brasil construiu sua identidade nacional sobre a negação do racismo. “O racismo no Brasil é sofisticado, como disse Kabengele Munanga. Ele se dá pela própria negação do racismo. A ideia da democracia racial foi uma forma de silenciar as denúncias e de mascarar desigualdades profundas.”
Segundo Djamila, tratar o antirracismo como uma pauta “identitária” — e, portanto, menor — é uma forma de manter esse silenciamento. Ela criticou a tendência de isolar o debate racial em ministérios específicos, como o da Igualdade Racial, enquanto temas como habitação, saúde, educação e tributação seguem tratados como neutros. “Se a maioria da população em situação de rua é negra, habitação é uma questão racial. Se mulheres não saem de relacionamentos abusivos por não terem para onde ir, habitação é também uma questão de gênero.”

Ela defendeu que raça e gênero devem atravessar todas as políticas públicas. “A juventude não é uma massa abstrata. Quem é essa juventude? Se são os jovens negros que mais morrem, então pensar juventude é pensar raça. Se são as mulheres negras que mais sofrem com o peso dos impostos, uma reforma tributária precisa considerar isso.”
A interseccionalidade, concluiu, não é apenas uma ferramenta teórica. É uma lente prática para construir políticas eficazes e democráticas. “O problema é que ainda insistimos em pensar de forma isolada. O ministro da Fazenda também precisa pensar em raça e gênero. Não é um favor: é uma exigência da realidade brasileira.”
“Eu já nasci em uma sociedade dividida, estruturada pelo racismo, pelo sexismo e pelo capitalismo. Nomear é o primeiro passo para criar saídas emancipatórias.”
Raça informa classe no Brasil
Retomando autoras como Lélia Gonzalez, Kimberlé Crenshaw e Heleieth Saffioti, Djamila argumentou que não se pode discutir classe no Brasil sem discutir raça — e vice-versa. “A maior parte da população negra no Brasil é pobre. Isso não é casual. É resultado direto de um processo de escravização e empobrecimento histórico.”
Djamila lembrou que a escravidão foi a base da economia brasileira por quase quatro séculos. Após a abolição, não houve políticas de reparação, mas sim medidas que aprofundaram a exclusão: a Constituição do Império de 1824 negava acesso à educação a pessoas não nascidas livres, a Lei de Terras de 1850 impediu o acesso de ex-escravizados à propriedade fundiária, e a chamada política do branqueamento incentivou a vinda de imigrantes europeus para ocupar postos de trabalho, marginalizando a população negra.
“Não se pode discutir classe no Brasil sem discutir raça. Raça informa classe”, enfatizou. Muitos intelectuais negros, como Clóvis Moura, já alertavam para isso, criticando também o mito da democracia racial, que mascarava a persistência do racismo ao reduzi-lo a um problema individual.
Djamila também enfatizou o impacto econômico da representatividade: “Quem aparece, por exemplo, nas novelas, fecha contrato de publicidade. A escolha de representar sempre o mesmo grupo é uma forma de fortalecer esse grupo econômica e simbolicamente.” Ela lembrou que o fortalecimento de um grupo social está diretamente ligado à sua visibilidade cultural, midiática e institucional.

Quem tem lugar de fala?
Questionada sobre o conceito de “lugar de fala”, Djamila afirmou que ele continua sendo essencial — sobretudo porque dá nome a desigualdades que já existem. “O lugar de fala é o desvelamento de processos de opressão. Ele nomeia os lugares sociais criados por desigualdades estruturais — e, enquanto essas opressões existirem, o conceito segue necessário.”
Ela criticou os equívocos comuns em torno do termo, como a ideia de que ele seria um interdito (“não fale sobre isso”) ou uma perspectiva essencialista (“só mulheres podem falar de machismo, só pessoas negras podem falar de racismo”). “Isso está no meu livro, mas as pessoas não leem. O lugar de fala não é sobre a minha experiência individual como Djamila, é sobre meu lugar social como mulher negra, sobre experiências compartilhadas por pessoas que partem do mesmo lugar estrutural. O lugar de fala é de onde se fala.”
Djamila destacou que, no Brasil, as mulheres negras compartilham experiências como altos índices de feminicídio, violência obstétrica e presença massiva no trabalho doméstico. “Esses lugares sociais não foram escolhidos. Foram impostos por uma sociedade estruturada em racismo, sexismo e desigualdade econômica.”
Ela explicou que o conceito é útil também para analisar o lugar ocupado por homens brancos: “O homem branco fala de um lugar — o da hegemonia. Quando questionamos isso, quando dizemos ‘você está aí não porque é mais inteligente, mas porque foi privilegiado’, aí vem o incômodo.”
Djamila reforçou que o lugar de fala é sobre o ponto de partida de onde se fala, não sobre interditar o discurso. “Pessoas brancas podem e devem falar sobre racismo — mas a partir de outro lugar, reconhecendo seus privilégios. Se você é professor e só ensina autores brancos, você está legitimando uma visão de mundo excludente. Se é gestor público, seu compromisso deve ser com toda a população brasileira — que é formada por negros, indígenas, mulheres.”
“Não se trata de ler autores negros porque eles são negros, mas porque eles fazem parte da história. Se você não ensina isso, está apresentando uma história incompleta. E isso é um problema ético, político e pedagógico”, explicou.
Ela também abordou os efeitos do racismo e do sexismo sobre a própria experiência humana: “Uma sociedade desigual empobrece a todos, inclusive os privilegiados. Se você só convive com iguais, sua visão de mundo é limitada. Se você precisa diminuir o outro para se sentir alto, é porque tem um problema profundo — como dizia Toni Morrison.”

Violência de gênero e urgência política
No trecho final da conversa, Djamila abordou com firmeza a tragédia da violência de gênero no Brasil. Ela lembrou que o país bateu recorde de feminicídios em 2024 e que é o quinto do mundo em casamentos infantis. Mas, mais do que repetir números, sua fala apontou a urgência de nomear desigualdades específicas para desenhar políticas eficazes.
Djamila argumentou que não pode haver hierarquia entre opressões: racismo, sexismo e capitalismo estruturam a sociedade brasileira em conjunto — e precisam ser enfrentados de forma articulada. Para ilustrar, ela citou o caso da Lei Maria da Penha. Quando a lei completou 10 anos, uma pesquisa do Mapa da Violência revelou que, embora o assassinato de mulheres brancas tivesse caído 10% no período, o de mulheres negras havia aumentado quase 55%.
“A resposta não pode ser simplesmente ‘vá à delegacia e denuncie’. Muitas dessas mulheres vivem em territórios onde sequer se pode chamar a polícia. Outras não têm dinheiro para o transporte até um centro de atendimento, que geralmente está no centro da cidade. É uma questão de classe, de território, de acesso. Essas mulheres não foram consideradas no desenho da política. Porque sua realidade não foi nomeada.”
Segundo ela, quando as políticas são pensadas a partir de um sujeito universal, as demais realidades seguem invisibilizadas. É o que Foucault chamou de “deixar morrer”: a produção de uma invisibilidade que exclui certos corpos do direito à vida plena.
“Não se trata de competir sobre quem sofre mais, mas de entender como as opressões se combinam e geram desigualdade concreta. E de construir políticas que não deixem ninguém para trás.”
O racismo no Brasil é sofisticado, como disse Kabengele Munanga. Ele se dá pela própria negação do racismo. A ideia da democracia racial foi uma forma de silenciar as denúncias e de mascarar desigualdades profundas.
Djamila Ribeiro, filósofa e escritora
Conservadorismo e polarização
Djamila também refletiu sobre o crescimento do conservadorismo no país, inclusive entre parcelas da população negra. Para ela, é um erro acreditar que a periferia é progressista por definição. “Muitas vezes, quem oferece pertencimento, assistência e dignidade são projetos conservadores. Precisamos disputar sentidos.”
Ela defendeu que não se pode recuar diante da polarização. É preciso continuar propondo políticas afirmativas, mesmo diante das reações. “Não podemos ser reféns da opinião pública”, afirmou, lembrando que o enfrentamento exige coragem e comprometimento com os princípios democráticos.
Ao longo de sua fala, Djamila reforçou que nomear desigualdades não é dividir a sociedade — é o primeiro passo para transformá-la. A interseccionalidade, para ela, é tanto um diagnóstico quanto um horizonte político. “Não se trata de competir sobre quem sofre mais. Trata-se de entender como raça, gênero e classe se articulam para produzir desigualdade — e de construir juntos saídas emancipatórias.”
Assista também ao episódio “Congresso e representatividade”, da série Vale a Pena Perguntar, e à pílula “Decisões partidárias e representatividade”, com Luiz Augusto Campos.
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Isabel Penz é historiadora (FFLCH-USP) e mestre em comunicação (Universitat Pompeu Fabra/Espanha). É analista de Estudos e Debates na Fundação FHC.