Nicarágua: uma ditadura sem fim?
Neste webinar, conversamos com os ex-deputados nicaraguenses Enrique Sáenz e Mónica Baltodano.
Quarenta e cinco anos após a Revolução Sandinista derrubar a ditadura Somoza, em 19 de julho de 1979, a Nicarágua vive desde 2007 sob uma nova ditadura, comandada de forma messiânica pelo líder sandinista Daniel Ortega, onde há uma mescla rara de brutal repressão, capitalismo selvagem e uma retórica de esquerda, anti-imperialista e soberanista.
“Não há ditaduras sem ditadores, sem um líder com vocação e instinto ditatorial. Daniel Ortega aproveitou o importante papel que teve na Revolução Popular Sandinista (1979-1990) para construir um projeto de poder personalista. Inicialmente, o aparato partidário da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) foi ‘privatizado’ por ele, e essa apropriação se estendeu aos sindicatos e aos movimentos sociais. Após 2007, com o retorno de Ortega ao poder, ele implementou uma liderança messiânica e o sandinismo se transformou em ‘orteguismo’”, disse a cientista social Mónica Baltodano, que foi guerrilheira sandinista, mas se tornou uma oposicionista do regime e foi expulsa do país em 2023.
Após os sandinistas conquistarem Manágua, em 19 de julho de 1979, derrubando o ditador Anastasio Somoza (cuja família governou o país de forma dinástica por 45 anos), a Nicarágua foi governada por uma junta liderada por Daniel Ortega. Em 1984, ele se tornou o presidente de fato, mas em 1990 foi derrotado nas urnas por Violeta Chamorro, líder da oposição unida. Nas duas eleições seguintes, Ortega tentou voltar ao poder, sem sucesso, até que em 2006 ele venceu as eleições (com cerca de 38% dos votos), reassumindo a presidência em 2007. Desde então, foi reeleito por três vezes consecutivas, em eleições cujos resultados foram contestados pela oposição, consolidando assim seu domínio.
“Sob o comando de Ortega, a Nicarágua se transformou em um Estado mafioso, que usa o terror para se manter no poder e onde, embora a população sofra uma deterioração progressiva de seu nível de vida, o governo mantém uma retórica de esquerda, supostamente progressista e a favor dos pobres”, disse o economista nicaraguense Enrique Sáenz, que foi deputado da Assembleia Nacional da Nicarágua de 2007 a 2016 e foi expulso do país em 2018.
Tanto Mónica Baltodano como Enrique Sáenz se tornaram vozes de oposição ao regime Ortega, tiveram sua nacionalidade retirada de forma unilateral pelo regime, perderam seus bens e suas aposentadorias e vivem hoje exilados na Costa Rica, proibidos de voltar à Nicarágua. A convite da Fundação FHC, eles participaram do webinar “Nicarágua, uma ditadura sem fim”, no qual trouxeram sua visão sobre a atual situação política, social e econômica do país centro-americano.
‘A Revolução Sandinista foi traída, mas nem tudo está perdido’, diz Baltodano
Como chegamos à situação que vivemos hoje, depois que a Revolução Sandinista derrotou uma ditadura dinástica que nos dominou por mais de quatro décadas?, perguntou a ex-comandante sandinista Mónica Baltodano, que exerceu cargos executivos e foi deputada na Assembleia Nacional. Segundo ela, alguns fatos explicam o que aconteceu na Nicarágua de 1979, quando os sandinistas tomaram o poder após vários anos de luta armada contra a ditadura Somoza, aos dias de hoje.
– A política do governo Ronald Reagan (1981-1989) contrária ao governo sandinista, por considerá-lo uma ameaça comunista em plena América Central – “Reagan ignorou as particularidades da Revolução Sandinista, que tinha uma proposta de economia mista, pluralismo político e não alinhamento a nenhuma das duas superpotências da Guerra Fria. Ele asfixiou a Nicarágua, contribuindo para que se tornasse o segundo país mais pobre da América Latina.”
– Entre 1990 e 2006, os governos de oposição ao sandinismo adotaram uma política neoliberal, que propiciou relativo desenvolvimento econômico, mas não resultou em uma redução significativa da desigualdade social – “Os três governos que tivemos naquele período foram caracterizados por um importante avanço democrático e pela adoção da dogmática neoliberal então em voga. Nos primeiros anos, houve um certo desenvolvimento econômico, mas a desigualdade social não diminuiu, criando as condições para que Daniel Ortega se apresentasse como salvador do povo e vencesse as eleições de 2006, embora com apenas 38% dos votos, voltando ao poder em janeiro de 2007.”
– De volta à presidência, Ortega favoreceu o capital financeiro e o empresariado local e estrangeiro, em troca do silêncio desses setores a seu projeto de assumir controle total sobre o país – “Ele aprofundou ainda mais as políticas neoliberais, concedendo enormes vantagens às elites financeiras e empresariais, tanto nacionais como internacionais, enquanto assumia o controle sobre todas as instituições de Estado e criava as condições para que pudesse se reeleger indefinidamente, embora a reeleição fosse inconstitucional.”
– Crítico aos EUA, Ortega tem cooperado com a política norte-americana em relação à América Central – “A política externa do regime é esquizofrênica. Por um lado, Ortega ataca o imperialismo americano, mas por outro colabora com as políticas de segurança, migratória, de combate às drogas e ao crime organizado dos Estados Unidos. Já a Casa Branca tem adotado uma lógica bem pragmática: o que importa é o que Ortega faz, não o que ele diz, e já qualificou seu regime como um ‘populismo responsável’.”
Baltodano criticou intelectuais e dirigentes latino-americanos de esquerda por não se posicionarem de maneira firme contra o crescente autoritarismo de Daniel Ortega, com a exceção do presidente chileno, Gabriel Boric, que, embora de esquerda, criticou abertamente o autoritarismo de Cuba, Venezuela e Nicarágua.
“Repito uma frase dita recentemente pelo presidente Boric: ‘Onde se relativiza a democracia, os direitos políticos dos cidadãos e os direitos humanos, só resta o caminho do autoritarismo e da brutalidade’. Isto vale para a direita e para a esquerda. Em pleno século 21, sem liberdade e sem respeito aos direitos políticos dos cidadãos, não há progresso, não há justiça social”, disse Baltodano.
‘Nicarágua vive um capitalismo selvagem associado à corrupção’, diz Sáenz
O regime Ortega se diz de esquerda, progressista e a favor dos mais pobres, mas os dados econômicos e sociais não comprovam esse discurso e o país vive um “capitalismo selvagem na sua pior versão, associado à corrupção”, afirmou Enrique Sáenz, responsável pelo canal de notícias e análises “Vamos al punto”, no YouTube.
“Dou o exemplo de três feridas sociais que mostram a situação terrível em que vivem os nicaraguenses mais pobres hoje. Segundo dados da Unesco, 97% das crianças nicaraguenses não alcançaram a nota mínima em matemática, 95% foram reprovadas em ciências e 87%, em leitura. O país tem o salário mínimo mais baixo da América Latina, comparadamente, e 80% da população economicamente ativa ganha a vida na informalidade. Por fim, 10% da população nicaraguense (de 6,95 milhões de pessoas, segundo o Banco Mundial) deixou o país em busca de uma vida melhor no exterior nos últimos anos. É como se 22 milhões de brasileiros decidissem abandonar o país por não terem um futuro para eles e suas famílias no Brasil”, afirmou o economista.
Segundo Sáenz, a Nicarágua é hoje um Estado mafioso, em que o grupo que está no poder controla todas as instituições com o objetivo de acumular riquezas para si próprio, com total impunidade. Como exemplo, ele citou a cessão de uma grande parte do território nicaraguense a um empresário chinês para a construção de um canal ligando os oceanos Atlântico e Pacífico, semelhante ao Canal do Panamá. “Esta concessão vai durar cem anos e foi inscrita em nossa Constituição. Como falar de soberania?”, perguntou.
Ele também denunciou a concessão para a construção de uma grande hidrelétrica à brasileira Queiroz Galvão, sem o devido processo licitatório. “A Nicarágua é hoje, junto com o Haiti, o país mais corrupto da América Latina. Não há um só caso de funcionário do governo Ortega condenado por corrupção”, continuou.
De acordo com o palestrante, Ortega controla a totalidade dos cargos públicos, inclusive o Poder Judiciário, e todos os partidos, inclusive os que apoiavam o governo, foram colocados na ilegalidade. “Não é à toa que ele conseguiu se reeleger por três vezes, em 2011, 2016 e 2021, sempre com mais de 70% dos votos. Além de fraudes, não há concorrência eleitoral”, disse.
“Hoje não há eleições livres e disputadas, não há respeito às leis, não há transparência. Para se manter no poder, o principal recurso é o medo e a perseguição implacável a toda a oposição. Ortega decide até quem é nicaraguense e quem não é, pois 317 pessoas, entre elas Mónica e eu, fomos despojados de nossa nacionalidade, tivemos nossos bens confiscados e fomos declarados fugitivos da justiça. Tornamo-nos apátridas”, continuou.
Sáenz destacou também que 40% das exportações da Nicarágua têm como destino os Estados Unidos, enquanto 60% dos produtos importados são norte-americanos. “Nunca fomos tão dependentes dos EUA. O discurso anti-imperialista é pura retórica”, disse.
Baltodano criticou a comunidade internacional por manter boas relações econômicas e comerciais com o regime de Ortega, apesar das violações aos direitos humanos e sociais dos nicaraguenses. “Se olharmos o relatório do Fundo Monetário Internacional (FMI), parece que a economia nicaraguense está no rumo certo. Devido a seus interesses comerciais, de segurança ou geopolíticos, os Estados Unidos e outras democracias, até mesmo a União Europeia, fecham os olhos para as brutalidades que acontecem na Nicarágua. Vivemos um processo de normalização da ditadura de Ortega”, disse.
Lula deveria ser mais contundente nas críticas a Ortega, dizem palestrantes
Segundo os dois ex-deputados nicaraguenses, o governo brasileiro se posicionou do lado da democracia ao apoiar um informe crítico ao governo Ortega divulgado recentemente pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU e também tem atuado da forma correta na Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual a Nicarágua se retirou em 2022 após a entidade declarar ilegítima a reeleição de Ortega em 2021.
Ambos cobraram uma posição mais enfática do Brasil na defesa da democracia no país centro-americano:
“Gostaríamos de escutar um presidente Lula muito mais contundente na condenação não apenas das das violações aos direitos humanos como também dos rumos autoritários do regime de Ortega, como o presidente Boric fez”, disse Baltodano.
“A democracia na América Latina não está assegurada, como vimos com as tentativas de golpe no Brasil, felizmente não consumadas. Tomar uma posição mais clara sobre a realidade política da Nicarágua não é somente um ato de solidariedade e de princípios. O Brasil, como todos os países democráticos da América Latina, devem levantar a bandeira da democracia como um mecanismo de autodefesa contra aventuras totalitárias”, disse Sáenz.
Mudança deve vir de forma pacífica, não pelas armas
Para a ex-combatente Mónica Baltodano, a atual ditadura nicaraguense deve ser tirada do poder de forma pacífica, de preferência através de eleições livres, democráticas e justas, mas, como este caminho está bloqueado pelo regime Ortega no momento, que controla o Conselho Eleitoral, a Assembleia Nacional e o Poder Judiciário, pode ocorrer novamente uma rebelião cívica, como ocorreu em 2018, brutalmente reprimida pelo governo.
“Ninguém na Nicarágua está pensando ou falando em retomar a luta armada dos anos 1970, que derrubou a ditadura Somoza, mas, diante da repressão implacável do regime e do absoluto controle sobre todas as instituições, não se descarta que ocorra uma nova rebelião da sociedade civil, como houve em 2018, quando os atos pacíficos contra o governo foram brutalmente reprimidos”, disse.
Em 2018, 350 pessoas foram mortas, 2.000 ficaram feridas e 800 foram presas em atos pacíficos contra o governo Ortega. “Aquela tentativa de rebelião foi esmagada a ferro e fogo, mas pode ocorrer novamente. O apoio da comunidade internacional, por meio da criação de um grupo de observadores de vários países para acompanhar de perto a situação dentro da Nicarágua, é fundamental”, propôs Baltodano.
“A Nicarágua é hoje um imenso quarto escuro onde se vive a ubiquidade do medo. Medo de pensar em voz alta, de perder o emprego, os bens pessoais, a empresa e até mesmo a aposentadoria. Medo de viajar, porque podem nos tirar o passaporte e não se sabe se vão nos deixar voltar. Medo do futuro que leva milhares de compatriotas a emigrar. Medo de que chegue a polícia e nos prenda, como já aconteceu com 120 presos políticos. Medo porque não há Justiça à qual possamos apelar. Medo de conviver em sociedade, medo até mesmo da família, porque não se sabe quem pode nos denunciar. Há medo até de ir à missa, vivemos em uma sociedade em que até Deus se tornou suspeito. Os que estão no poder são os que têm mais medo de expressar uma opinião diferente. Enfim, há um controle absoluto do universo subjetivo dos cidadãos, de suas consciências e até de seus fantasmas”, concluiu a cientista social.
Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.